Não tirou bilhete para a vida

Fernando Pessoa era uma daquelas figuras que vivia de costas voltadas para o dinheiro. Ele próprio dizia: «Não tirei bilhete para a vida». O bilhete era a cautela, claro, a sorte grande que ele nunca teve.

Além do mais era um dos grandes solitários. Talvez o mais brilhante de todos os solitários. «Vão para o diabo sem mim/Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!/Para que havemos de ir juntos?/Não me peguem no braço/Não gosto que me peguem no braço.Quero ser sozinho». E foi-o. Na vida, na poesia, na astrologia, nas invenções.

 Para mim há um livro extraordinário sobre Fernando Pessoa – Uma Quase Auto-biografia, de José Paulo Cavalcanti Filho. Leia-se: «Um traço pouco conhecido, em Pessoa, é o seu gosto pelas invenções. Foram muitas, quase todas concebidas na sua imaginação, devidamente catalogadas e logo abandonadas, sem conseguir com elas nenhum proveito económico». Lá está! Ele e o dinheiro: ambos sozinhos.

Pessoa tinha o hábito de redigir «listas de tarefas», assim mesmo, com este nome. Arrumava-se, portanto. Em 1913, numa das suas listas de tarefas para esse ano, a seguir ao item Death of the Envelope – uma forma de embrulhar a folha da carta que não exigia envelope – surgia algo de muito curioso: «Jogo de futebol para mesa». Ora bem, de que se tratava? Uma ideia que o próprio poeta sublinhava de «inovadora», baseada numa caixa de madeira atravessada por ferros nos quais se encaixavam jogadores também de madeira. Faz soar campainhas? Pois faz. Fernando Pessoa tinha sido o primeiro a inventar os matraquilhos. Mas a sua caixa de madeira nunca saiu da gaveta…

É neste momento que cabe falar de Alejandro Finisterra. Foi um Pessoa com sorte: era amigo de um marceneiro. Mas vamos à história.

Alejandro Campos Ramirez nasceu, como está bem de ver, em Finisterra, na Galiza. Finisterra: poucos nomes são tão autênticos. Alejandro veio ao mundo em 1919, isto é, seis anos depois de Fernando Pessoa ter escrito uma das suas listas de tarefas. 

Em 1936, em plena Guerra Civil de Espanha, Finisterra encontrava-se em Madrid. Tinha um jornal Paso a la Juventud que era vendido pelas ruas, cara a cara. Vítima de um bombardeamento, ficou vários dias soterrado debaixo dos escombros de um edifício. Perante a gravidade dos ferimentos, internaram-no no Hospital de Montserrat. Apaixonado por futebol, encontrou-se lado a lado com muitos outros feridos cujas mazelas só os deixavam falar do jogo e de forma alguma praticá-lo. É então que surge outra personagem importantíssima neste episódio que aqui vos conto: Francisco  Xavier Altuna.

Francisco era natural do País Basco e carpinteiro de profissão. Foi ele que, seguindo as instruções de Finisterra, fabricou a primeira versão do futbolín: isto é, dos matraquilhos.Homenzinhos de madeira rodopiavam dentro de uma caixa pontapeando uma bola de ping-pong. Entusiasmante! O problema, agora, era universalizar o jogo: todas as fábricas de brinquedos estavam dedicadas totalmente às brincadeiras da guerra. Ainda assim, Alejandro e Francisco patentearam a sua invenção em Barcelona, em 1937.

Alejandro Finisterra era uma alma livre e o franquismo não simpatizava com almas livres. Fugiu para França, passou a chamar-se Finisterre, andou pelo Equador, pela Guatemala e pelo México, escrevendo poesia, fundando jornais, promovendo revoluções.  Foi no Cabo de Santa Maria, na Guatemala, que aperfeiçoou a sua grande invenção e começou a comerciá-la. Tornou-se um êxito. Num documentário chamado Tras el Futbolín, dirigido pelo catalão Bep Moll, conta a sua vida aventureira e a forma como lhe surgiu a ideia do futbolín.

Para quem conhece a vida de Fernando Pessoa, a invenção de Alejandro não tem nada de verdadeiramente excecional. Já tinha sido, pura e simplesmente, inventada em 1913, embora sem sair do papel. O poeta estava tão adiantado no tempo que foram encontrados no seu espólio registos sobre resultados de futebol em Inglaterra, bem como a indicação do número de espetadores: já programava o número de potenciais compradores do seu jogo de matraquilhos.

Os bolsos de Fernando Pessoa estiveram, durante a maior parte da sua puída existência, tão vazios quanto repleta estava a sua cabeça. Era de insónias permanentes. Rabiscou mais ideias para jogos: um de críquete de mesa e outro de astrologia que funcionava ao estilo do velho Jogo da Glória. Nunca lhes registou patente. Não ficou rico. Quando um cauteleiro o abordou no Martinho da Arcada perguntando: «Senhor Pessoa, quer 400 contos?», respondeu – «Não obrigado. Pague dois cafés e guarde o resto para si».