Os Inimputáveis. Crimes de loucura

Estão apartados da sociedade, depois de serem dados como ‘dementes inimputáveis’. Não têm consciência do mal que fizeram. Mas também aqui se sente o peso das gerações: antes o hospital era habitado por criminosos de sangue, hoje são os que roubam para comprar droga.

No dia em que nasceu, Manuel engravidou a irmã, Maria de seu nome. E pela vida fora todas as mulheres ansiavam pelo seu sémen para procriarem um menino sagrado. Todas menos a sua – Luzia. E numa noite em que, para se libertar da teia do ciúme onde se ia enrolando, a quis muito, ela negou-se-lhe: «Vai fazer com a égua». Ele foi: subiu para um fardo de palha e cobriu a fêmea, que relinchou satisfeita. E assim nasceu o seu filho Manuel Jorge, com pernas de cavalo e corpo de gente: «Era parecido comigo, mas uma mulher levou-o para o amamentar e nunca mais o vi», recorda Manuel, com o olhar coberto pela mesma névoa dos recém-nascidos, preso ao bloco de notas da jornalista. O corpo, frágil pela escalada da idade, agita-se, o olhar nervoso procura alguém de confiança: «Enfermeiro Norberto, veja se ela está a escrever, senão não conto mais nada».

Conhecimento antigo

Norberto Andrade, 63 anos, enfermeiro, conheceu-o aqui no hospital, o antigo Júlio de Matos, no início da década de 90. E se com ele se tivesse cruzado três décadas antes não teria encontrado diferenças, a não ser as físicas: mais robusto e ágil, capaz de andar pelo seu próprio pé. E de fazer ainda serventia como pedreiro, ou cuidar dos coelhos do hospital com o mesmo afinco com que, em tempos idos, quando o patrão ainda era vivo, lhe engordava os bácoros da quinta em Lousã, concelho de Castelo Branco. Mas Manuel Barba Meneses Tavares Proença Vaz Preto Giraldes, grande agricultor da região, foi assassinado enquanto ele ressuscitava – e nesse estado se desencontrou da vida.

O enfermeiro Norberto, que lhe conhece os meandros do cérebro, tenta retirá-lo da birra a que se remetera. Colegas curiosos ocupam lugares na sala, onde impera o televisor, sempre ligado. Regateiam-se afetos. O enfermeiro adocica a voz quando se lhe dirige: «Senhor Manuel, quem é que antes de ser já o era?». Mas o ancião, sentindo que perdera a atenção que antes lhe fora dedicada em exclusivo, amuou e rejeita abrir portas à mística que o envolve: «Por hoje, acabou. Dessas coisas não falo, são minhas».

Demente perigoso

Com 92 anos, mais de metade da vida internado, Manuel também vive de recordações. Velhas como trapos para uns, mas quentes como brasas no seu cérebro, onde a corrida infernal para o vazio ainda galopa.

Tende a desfazer-se das memórias recentes, a não ser quando elas se cruzam com as pautas da sua origem. Por aqueles dias, os ponteiros enferrujados do relógio que o ligam à vida tinham-se escangalhado e tivera de ser hospitalizado. Norberto e a equipa que estava de turno tentaram a reanimação. Manuel não esqueceu. Estivera a manhã toda a resmungar e a birra súbita dá-lhe para castigar Norberto: «Você bateu-me, vocês deram-me muita porrada». O enfermeiro, de voz cálida, acaricia-lhe o rosto, aliviado por não o ter perdido: «Foi para o acordar, senão morria». Mas a frase, pronunciada como um pedido de desculpa, levanta o génio bravio do homem: «Aí há dias morri e fui para o Céu. Mas ia pensando: ‘Morro, não morro?’ E os enfermeiros bateram-me e o corpo morto ressuscitou. A minha cabeça é santa».

Não foi a primeira vez que lhe aconteceu. Talvez nem seja a última. Mas quando, no primeiro ano da década de 60, alguma coisa se desadaptou na sua estrutura, alguma coisa que até aí funcionara normalmente, muitos lhe chamaram ‘selvagem’, ‘demónio’, ‘assassino’, ‘louco’. E a aldeia onde nasceu fechou-lhe as portas – até hoje. O juiz declarou-o ‘demente inimputável’ e perigoso, e determinou o seu internamento em «manicómio criminal», no Pavilhão de Segurança do Hospital Miguel Bombarda, mais conhecido por Redondel, mercê da sua arquitetura circular, um local de más memorias, abandono e sofrimento.

Os limites da liberdade

Entretanto, com o passar do tempo, foi a palavra que serviu para atenuar o estigma. Com a desativação do Miguel Bombarda, em 2000, e a posterior fusão com o Júlio de Matos, para onde acabariam por transitar os doentes, caiu o rótulo das duas instituições – que passaram a ter uma única designação: Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, dirigido por Isabel Paixão. E o antigo pavilhão-prisão é agora apenas um número – o 28 – entre os vários edifícios de dois pisos que acolhem diversos tipos de doentes e compõem aquilo que aparenta ser um bairro simpático, pintado a rosa e serpenteado por velhas árvores.

Cercado por rede fina de arame, quase impercetível, apenas o portão de alta segurança recorda os limites da liberdade. Do outro lado, jovens de cigarro a bailar nos lábios passeiam no amplo espaço arborizado que ladeia o edifício, sem temerem o frio cortante do início do inverno. Na quadra natalícia, muitos daqueles que a justiça rotulou de ‘inimputáveis perigosos’ – pessoas que por força de uma anomalia psíquica cometeram crimes sem terem noção da culpa – aguardam com esperança que o tribunal autorize que se reúnam aos festejos com a família.

Para Manuel Cruz, 59 anos, diretor do Serviço Regional de Psiquiatria Forense do CHPL, o 28, a palavra faz toda a diferença: «Nesta área podemos definir três fases. A primeira é a dos finais do século XIX, em que estes doentes eram considerados temíveis, juridicamente, levando a medidas de exclusão que os isolavam da sociedade. A segunda é a da perigosidade. Mas como para a Medicina é impossível medir essa perigosidade, que é o que a Justiça pede para determinar o fim da medida de segurança imposta ao doente, hoje falamos em ‘avaliação de risco’. Ou seja, avaliamos as probabilidades de existir risco em determinadas situações ou comportamentos que possam originar respostas nos doentes que tenham esse colorido de perigosidade».

Um abismo entre duas gerações

Pelas 11h30, a voz de um enfermeiro de turno avisa pelo altifalante que chegou a hora do almoço. No longo corredor que dá para o refeitório, os doentes, com o passar dos dias, vão-se habituando à jornalista.

Os mais novos, que começaram por reagir com desconfiança, quebram o gelo, contam as suas histórias e um deles ergue com mágoa uma pergunta: «Acha que eu sou um inimputável perigoso?». Por ali não se sentem os efeitos dos fármacos, nem se encontram olhares esgazeados, perdidos no vazio, ausentes. De outros tempos. A não ser na população mais velha, antigos residentes do Redondel, para quem a revolução dos novos medicamentos na psiquiatria já não chegou a tempo. Indivíduos entre os 70 e os 90 anos unidos pelo mesmo irredutível inimigo que não conseguiram vencer e que os levou a matar.

Um abismo separa as duas gerações. Os mais velhos esperarão aqui o seu dia, pois a família rejeita-os, teme-os. Os mais novos, em grande maioria, tendo perdido a marcha numa sociedade mercantil que devora os mais fracos, terão melhor sorte. A miséria pegou-se-lhes à nascença e, nas drogas ou no álcool, ou em ambos, tentaram sacudi-la.

27 anos, analfabeto

Paulo, 27 anos, não sabe ler nem escrever. É um entre vários. Aos 8 anos, na primária, já consumia. Era raro o dia em que aparecia na escola. De uma enfiada de cinco irmãos, cresceu nas ruas de Olhão às três pancadas, enquanto a mãe lavava pratos num restaurante e o pai, pedreiro, partira sem olhar para trás, deixando à mulher a carga da filharada.

Hoje, pela manhã, recebeu a notícia da morte da mãe. Foi-lhe permitido sair – e aguarda sem entusiasmo a chegada de um irmão que o levará à cerimónia fúnebre.

Na vida que lhe calhou, Paulo apenas aprendeu a subsistir e, aos 11 anos, com outros da sua idade, começou com pequenos roubos destinados a arranjar dinheiro para acalmar a espinha dorsal do seu drama: a droga.

Com um ano apenas de internamento, ainda está com um pé dentro do mundo à parte em que cresceu: «Éramos cinco, mas eu era o boss, o mais velho. Andava armado. Nunca disparei, mas se tivesse de ser…». Acabou envolvido em assaltos à mão armada e foi preso. Reincidiu, o que levou ao seu internamento com uma medida de segurança de 8 anos. Os médicos não excluem a implicação forte dos consumos, que nunca ultrapassaram as ditas ‘drogas leves’ – canábis e haxixe – no desenvolvimento da psicobiologia psicótica.

Ouviu pela primeira vez ‘a voz’ em 2013, dois anos antes de ser internado. Tenta recordar esse momento, enquanto as mãos coçam o corpo de alto a baixo, como se as feridas o ajudassem a visitar-se: «Comecei a chamar pela minha avó, que já morreu, e falava com ela». Até que começou a sentir-se perseguido fora do núcleo familiar e conheceu o medo: «Um ninja dizia que ia buscar uma caçadeira para me matar!». Fechou-se em casa. No parco vocabulário, hoje, procura palavras para decifrar a sua conduta: «Foram as drogas e as más companhias. Já estive preso, mas prefiro estar aqui, sinto-me melhor aqui. Tenho quarto, comida…».

O crime mudou

Manuel Cruz, que esteve na origem da formação do novo projeto do CHPL – que passou pela reformulação total do novo pavilhão, humanizando-o, e tem como objetivo fundamental a reabilitação e reintegração dos doentes na sociedade –, faz o ponto de situação dos atuais doentes: «Enquanto no tempo do Miguel Bombarda as razões que levavam ao internamento destas pessoas se prendiam com crimes muito violentos, como os homicídios, hoje temos uma nova geração que pratica ilícitos menos graves, em que a droga ou o álcool, muitas vezes agravados pela falta de escolaridade, provocam psicoses psicotóxicas. Há uma população cada vez mais jovem com um comportamento muito primário, às vezes com um ligeiro grau de debilidade. Debilidade essa que tem a ver com a miséria em que vivem. Nesse mundo, as crianças aprendem apenas a utilizar uma inteligência operacional. Sem escolaridade, não têm a mesma capacidade de uma criança com um raciocínio normal, tornando-se antissociais. Crescem fora das regras, o que leva a comportamentos ilícitos».

Aduramane, 28 anos, guineense da zona de Bafatá, a cumprir uma medida de segurança até 16 anos, veio para Portugal com um irmão, para escapar ao destino dos pais que viviam de uma agricultura de subsistência.

Há cerca de nove anos instalou-se na casa de uns tios, que lhe arranjaram emprego na construção civil. Nunca foi avesso ao trabalho e, mesmo com a crise no imobiliário, safava-se bem. Foi aí, entre colegas, que o muçulmano começou a consumir, contrariando a sua religião.

De início, ficou-se pelas drogas leves, que misturava com álcool. Tenta recordar-se de quando ouviu ‘o outro’ pela primeira vez: «Foi quando fiquei desempregado e comecei na coca». A voz desconhecida passa a comandá-lo: «Ouvia duas pessoas a falar de mim na minha cabeça. Diziam que o meu tio me queria fazer mal e gritavam: ‘Mata, mata’». E ele obedeceu-lhes. Caíra a noite e na casa dos tios todos dormiam. Procurou uma faca na cozinha e dirigiu-se, sem vacilar, para o quarto do tio de quem mais gostava. Mas não continha a respiração agitada nem o corpo nervoso: «Dei-lhe com a faca no pescoço, mas ele não morreu. Era forte e conseguiu tirar-me a arma».

Viver na rua

A família, incapaz de lidar com a sua súbita violência, trancou-lhe a porta. Aduramane passou então a viver na rua. Arrumava carros e mantinha o vício. Em 2012, quando foi parar a um centro de abrigo, a voz desconhecida já se transformara em presença amiga: «Dizia-me que eu era muito rico, tinha casas, aviões, carros, era tudo meu. Mas tinham roubado o meu pai, eu tinha de lutar».

Uma médica do centro de abrigo tentou deter o punho de sangue que o controlava. Chamou uma ambulância e o guineense foi internado na ala psiquiátrica do Hospital de Santa Maria. No outro dia, recebeu alta. Já desamarrado da cama onde pernoitara, aguardava que lhe entregassem a sua documentação – e por momentos ficou sozinho com outro doente ainda imobilizado. E a voz conhecida soltou-se de novo da sua febre: «Ouvi a voz do homem que me dizia: ‘Mata-me, mata-me, que estou cansado!’». O suporte do soro, em metal, foi o que tinha à mão.

Hoje, Aduramane discorre sereno sobre o que o juiz ditou. Os antipsicóticos injetáveis de efeito prolongado, com um comportamento semelhante ao da pílula, mantêm a crise sob controlo: «Hoje sei que o matei, e muçulmano não mata».

Natal com a família

Passou a hora do lanche e os doentes andam dentro e fora. O enorme espaço exterior, organizado por recantos que convidam à palestra ou a uma partida de futebol, serve para passar o tempo. Na esplanada contígua ao bar, uns fumam, outros aquecem-se no calor de um café. João, 40 anos, de sorriso pendurado, está de serviço à caixa. Hoje teve a confirmação de que vai passar o Natal com a família. Era do que estava à espera. A sua história é igual à de muitos dos 32 doentes do pavilhão 28. A droga conheceu-a cedo, tomou conta dele e fez o resto. Abandonou a escola, aos 16 anos já estava preso. Saía e retomava os consumos e os assaltos à mão armada.

Não olhava a quem roubava: família e amigos. Valia tudo, porque nessa jornada desligou-se de afetos. Esteve preso por cinco vezes, mas voltava sempre ao lugar que deixara desocupado. Tornou-se uma ruína. Até que, num assalto a uma vivenda, os donos acordaram, dominaram a sua carcaça a desfazer-se e chamaram a Polícia: «Por sorte, o juiz mandou-me fazer uma perícia psiquiátrica e mandaram-me para aqui. Tinha-me tornado bipolar».

Agora, é considerado um dos vários casos de sucesso do serviço: terminou o 12.º ano no Liceu Camões, bem como uma série de cursos que lhe abrem o caminho para a liberdade, como contabilidade e informática.

Manuel Cruz explica a evolução: «Para se conseguir trabalhar com estas pessoas é necessário ter os técnicos permanentes, como a psicóloga, a terapeuta ocupacional, etc. Faz-se o planeamento de reabilitação e tenta-se controlar a doença sempre a pensar na sua posterior inserção na sociedade – ao contrário do ‘velho’ Júlio de Matos, em que as pessoas iam ficando. O acompanhamento é diário, ao contrário de antigamente, em que o médico aparecia uma vez por semana. A partir do momento em que passam a estar mais autónomos, passam para residências, uma espécie de comunidade em que a vigilância é menor. Há quem já trabalhe no exterior – como é o caso do João, que está à espera de vaga para uma residência. Uma vez em liberdade, com a nova medicação, são os próprios centros de saúde da área de residência do doente que a controlam, pois isso não pode falhar».

Casos irrecuperáveis

A voz de um enfermeiro ouve-se de novo: hora da ‘janta’. Manuel, no alto dos seus 92 anos, é o único que não comparece. A força foi-o abandonando aos poucos, a memória petrificou.

Num país de lenta combustão, está condenado a uma espécie de pena perpétua. Manuel Cruz, mais uma vez, faz o exame de contraste entre as várias gerações: «Para já, há situações não integráveis. Pensar o contrário é uma ilusão. O Manuel, se tivesse havido uma intervenção mais cedo – numa idade mais nova e com medicamentos com menos efeitos colaterais, como os neuroléticos, que poupam a degradação cognitiva –, teria tido uma evolução muito diferente. Mas não havendo condições de suporte, como a família, não se pode atirar as pessoas para locais sem condições. A base da terapia está na criação de estabilidade nos processos afetivos que desfazem o núcleo psicótico. E essa base ele já estabeleceu com os técnicos, não a tem no exterior. Aliás, é ele próprio quem diz que não quer sair».

Manuel continua sentado numa poltrona e janta aí. O enfermeiro Norberto, enquanto não muda de turno, desafia-o: «Então, senhor Manuel, quem é que antes de ser já o era?». O ancião esqueceu a birra e está virado para a conversa. Há muito que se dera nele uma transformação: uma passagem do mundo considerado normal para um mundo mais fácil, em que todas as dimensões foram abolidas. «A minha cabeça é santa. O corpo de Deus incorporou em mim. Fui ressuscitado por cima. Por isso nasci menino Jesus e agora tenho o corpo de Deus» – diz levantando a voz, com o olhar muito aberto à conta do seu próprio espanto.

Ciúmes da mulher

Certo é que Manuel teve uma vida normal entre os homens, até 8 de outubro de 1960. Jornaleiro, como o pai, cedo assentou na quinta do maior agricultor da região: Manuel Barba Meneses Tavares Proença Vaz Preto Giraldes, que vinha de uma família com pergaminhos e era dado como benemérito dos pobres. Manuel, esse, por todos era visto como homem de trabalho e respeitador. Mas sem mais mudou o comportamento, passando a dar-se às coisas sobrenaturais. Colocava galinhas vivas em água a ferver para as livrar dos maus espíritos, e um dia foi apanhado a cavar em redor do cruzeiro da freguesia numa tentativa inglória de destruir o demo.

Tinha-se convencido de que a mulher, de quem tinha duas meninas pequenas, o traía – e isso empurrou-o para a queda inevitável. Com a responsabilidade de engordar os bácoros da quinta, começou a encontrar obstáculos sobrenaturais ao seu trabalho. Os porcos, gulosos de bolotas, deixam de pegar na comida. Emagrecem. Eram as bruxas que os tinham enfeitiçado. Mas o demónio, para melhor o enganar, matou-as.

Depois, o demo começa a inculcar-lhe que a mulher, Luzia, se deita com o feitor da quinta. Têm início as agressões domésticas. E um dia, com uma enxada, dirige-se ao ‘Janota’ – como apelidava o feitor – e tenta matá-lo. O homem cai, mas consegue defender-se a tempo dos dedos de aço que lhe ameaçam o crânio. O povo, que até aí o tinha por um dos seus, fica de atalaia.

Em casa, o clima endurece. Receando pela vida, Luzia abandona o lar e abriga-se na casa dos pais. Pede a Vaz Preto que interne o marido – e o homem diligencia nesse sentido. Mas o demo não larga Manuel, que apanha a mulher a ser tentada, desta vez pelo patrão: «Vi-o a puxar-lhe um beijo e pensei: ‘Pronto, já tenho os cornos’».

A consumação do crime

Era segunda-feira, 3 de outubro, quando chegou a ambulância que levaria Manuel para um hospício em Coimbra. Foi aí que o camponês avistou uma serpente roxa, da largura do seu punho. Fugiu, escondeu-se. Mas, ainda nesse dia, voltou encantado pela cobra.

Seriam 23h quando, na cozinha, as criadas deram por ele: «Preciso de falar com a senhora!». D. Alda amamentava um menino e manda dizer que não o pode receber. Na cabeça de Manuel, o mundo organizava-se em torno das suas convicções: «O menino era meu. A senhora um dia pediu: ‘Manuel faz-me um filho!’. E o patrão não se importou, porque nasceu o menino Jesus».

Levava na mão um pão e não acatou a resposta. Vaz Preto estava na antecâmara do quarto de dormir e nem teve tempo para reagir. Com uma força que parecia não ser deste mundo, Manuel desferiu-lhe golpe atrás de golpe, sem parar.

Na aldeia, as gentes clamaram por vingança e os jornais regionais deram conta da nefasta ocorrência: «Causou a mais viva impressão em toda a nossa província a terrível tragédia que enlutou a família Vaz Preto, em que perdeu a vida, vítima de brutal agressão de um criminoso demente, o nosso querido amigo Sr. Manuel Barba de Vaz Preto Giraldes».

Manuel continua hoje a negar o crime, como o fez à época perante o juiz: «Ele não morreu, foi um boneco que foi a enterrar. Eu é que morri e depois acordei vivo».