Reflexões de um conselheiro de Putin na primeira ida à ONU

‘A semana da Assembleia Geral da ONU é uma orgia de poder, mas também um banho de humildade’

Por Simão Infante – o colaborador ocasional

De repente, os grandes deste mundo tornavam-se nossos pares. Mas eles já formam um ‘clube’, porque estão lá há algum tempo, conhecem-se, aprenderam os códigos básicos. Ora, nós somos principiantes atirados para o palco. No seu país, cada um pode ser respeitado ou temido, mas aqui é apenas um recém-chegado. É preciso começar do zero, reaprender tudo, desde a forma como se caminha até à forma como se cumprimenta. As reuniões do G8, as assembleias da ONU, os fóruns de Davos: cada ocasião tem os seus rituais. Os seus novos amigos são afáveis, cada um deles parece ansioso por o ajudar. Mas não tenha ilusões. Cada um deles tem um plano para o lixar.

A semana da Assembleia Geral da ONU é uma orgia de poder, mas também um banho de humildade. Aqui, homens habituados à realização imediata dos seus desejos reaprendem as virtudes da espera: os desfiles de carros blindados e guarda-costas criam intermináveis engarrafamentos na Segunda Avenida, delegações colidem nos corredores apinhados do Palácio de Vidro, chefes de governo, habituados aos salões dourados, amontoam-se atrás de painéis temporários para conduzir negociações importantes. E no meio de tudo isto, é claro, os americanos encontram sempre uma forma de se mostrar superiores. Um dia estávamos a deixar o hotel para ir à CNN quando o agente dos Serviços Secretos designado para a nossa delegação nos obrigou a parar: quando o Presidente dos Estados Unidos se desloca, ninguém mais pode dar um passo. Ainda me lembro da expressão do Czar enquanto esperava que os nossos carros fossem novamente autorizados a avançar. 

O Presidente Clinton teve a gentileza de vir ter connosco ao hotel Waldorf Astoria. Apresentou-se com aquele ar antiquado, o lendário aperto de mão – com as duas mãos a envolverem as nossas como uma jiboia –, a voz rouca e o sorriso bem-humorado do rancheiro do Midwestern que contava as histórias da sua vida junto à lareira.

No entanto, cometeu um erro nesse primeiro encontro . Perguntou ao Czar sobre Ieltsin, o seu velho amigo Boris. E não se apercebeu de que, ao fazê-lo, estava a reativar a memória de uma humilhação que nenhum de nós jamais conseguiria digerir. Os russos estão habituados a sacrificar-se, mas também a respeitar e ser respeitados. 

Em toda a nossa história, os nossos governantes foram tratados como grandes e nunca ninguém se atreveu a reivindicar superioridade sobre eles. Ora, tentem imaginar esta cena. 

Um dia de outono, em Nova Iorque. Os Presidentes americano e russo acabam de concluir um acordo na Biblioteca Franklin D. Roosevelt e estão de pé no exterior para uma declaração à imprensa. Colunas neoclássicas, bandeiras, uma guarda presidencial em uniforme completo e, sob o pódio, duas abóboras em homenagem ao feriado bárbaro que, como habitualmente, os americanos conseguiram infligir ao mundo. Clinton fala brevemente, depois passa a palavra a Ieltsin, que começa a arengar à multidão, claramente não muito sóbrio. Enquanto a voz do nosso Presidente ressoa, Clinton irrompe em gargalhadas. Isto é invulgar, mas não importa: o homem mais poderoso do mundo também pode rir.

O problema é que Clinton não para. Não consegue parar: o velho urso, apanhado, ridículo, fá-lo literalmente rir. Clinton tem lágrimas nos olhos, o rosto escarlate, está em plena gargalhada. Pregados à televisão, nós, russos, imploramos-lhe interiormente que pare. Conhecemos Ieltsin, os seus hábitos, as suas fraquezas. Mas este é o Presidente da Federação Russa, o maior Estado do planeta, uma superpotência nuclear! Nada. Clinton já não se pode controlar a si próprio. Agora também ele está cambaleante, a dar palmadinhas nos ombros de Ieltsin, que, embora bêbado, parece ligeiramente embaraçado. Uma nação inteira, cento e cinquenta milhões de russos, mergulha na vergonha sob o peso do riso do Presidente americano.

Esta foi a cena que surgiu na mente do Czar quando Clinton lhe perguntou sobre o velho Boris. E isto decidiu-o logo a deixar claro que as coisas seriam diferentes com ele. Acabaram-se as palmadas nas costas e as grandes gargalhadas. Clinton ficou obviamente desapontado. Pensava que a partir de Ieltsin todos os presidentes russos não passariam de bons carregadores de hotéis, guardiães dos maiores recursos mundiais de gás em nome das multinacionais americanas. Regressámos a Moscovo menos sorridentes do que quando chegámos. Mas o que esperavam eles?
‘Se canibais tomassem o poder em Moscovo – disse o Czar no voo de regresso a casa – os Estados Unidos reconheciam-nos imediatamente como um governo legítimo, desde que não tocassem nos seus interesses e continuassem a tratá-los como patrões’.

O problema é que eles pensam ter ganho a Guerra Fria. Mas a União Soviética não a perdeu. A Guerra Fria terminou porque o povo russo pôs fim a um regime que o oprimia. 

‘Não fomos derrotados, libertámo-nos de uma ditadura. Não é a mesma coisa. O Ocidente também contribuiu para a democratização da Europa Oriental, mas não deve esquecer que a maior contribuição foi dada pelos russos. Fomos nós que derrubámos o Muro de Berlim, não eles. Fomos nós que dissolvemos o Pacto de Varsóvia, fomos nós que lhes estendemos a mão como sinal de paz, não de rendição. Seria bom se, de vez em quando, se lembrassem disso.»