António Caeiro: ‘Vi altares com estátuas de Buda e de Mao misturadas’

Antigo correspondente em Pequim, conhece a China como poucos. A propósito do seu livro Peregrinação Vermelha, António Caeiro fala sobre a energia que sentiu quando chegou a Pequim em 1991, a longevidade do PC Chinês e «a agradável falta de sabor» de um escorpião frito.

No final de 1990, António Caeiro, então correspondente da Lusa em Cabo Verde, recebeu um convite para ocupar o mesmo cargo em Pequim. «Nem hesitei». Foi com a mulher e o filho e, já na China, nasceu um segundo filho, que hoje tem 24 anos e fala fluentemente chinês. Ao todo, António Caeiro passou 19 anos naquele país, pelo que «conhece a China moderna como poucos portugueses e Europeus a conhecem», diz Durão Barroso.

Regressado há Europa há meses, o jornalista acaba de publicar Peregrinação Vermelha – O Longo Caminho até Pequim (D. Quixote), um livro sobre os contactos entre Portugal e a República Popular da China nos anos em que os dois países não tiveram relações diplomáticas (1949-1979).

O seu livro apresenta-se como «uma história da atração portuguesa pelo maoismo». Também se sentiu atraído?

Não. Nunca pertenci a nenhuma organização maoista nem me identifiquei como maoista, mas fazia parte do ar do tempo. A revolução cultural começou em 66, tinha eu 17 anos.

Quando e como germinou a ideia de escrever este livro?

Como correspondente, a minha área era a atualidade, mas ia colecionando histórias, falando com pessoas que tiveram alguma relação com a China nesse período em que Portugal não teve relações diplomáticas com a China. Portugal foi dos últimos estados da Europa Ocidental a estabelecer relações diplomáticas com a República Popular da China [RPC].

Apesar de Macau…

Portugal foi o primeiro estado europeu a ocupar uma parcela do território chinês e o último a deixar. E eu tropeçava nesta contradição, que é tipicamente chinesa. O corpo diplomático no Oriente escrevia para Lisboa para se reconhecer a RPC, apesar de o novo governo chinês ser comunista. Por outro lado, ouvi uma vez o Pacheco Pereira dizer que parte da elite portuguesa foi maoista durante a juventude, dezenas de ministros de vários governos, e isso impressionou-me.

Uma das pessoas de quem se fala é Durão Barroso.

Sim, muitos foram maoistas no início dos anos 70.

E assumem isso abertamente?

Acho que sim, embora eles hoje sejam outras pessoas.

Quando olhamos para estes jovens maoistas vê-se que havia um grande desconhecimento.

Sabia-se muito pouco. A China era uma entidade mítica em direção à qual projetavam os seus anseios de libertação. O que sobressaía nos relatos que nos chegavam era a rebelião de jovens guardas vermelhos a contestarem a autoridade no seu país.

O angolano Viriato da Cruz acabou por pagar essa ignorância com a própria vida.

Viriato da Cruz foi poeta e um dos fundadores do MPLA. Depois saiu de Angola e acabou por ir viver para Pequim em 66. No dia 1 de Outubro de 66 ele está na tribuna na Praça de Tiananmen ao lado de Mao, falando para mais de um milhão de chineses. Mas começou a desencantar-se e entrou em rutura com o maoismo no pior sítio para o fazer: a China. O passaporte dele caducou e os chineses nunca lhe deram um título de viagem para ele sair. Ele e a mulher estavam alojados numa espécie de resort, com grandes jardins, um supermercado, uma piscina, e viviam tão isolados que a mulher dele partiu uma estátua de gesso do Mao na esperança de serem expulsos. Mas em vez de serem expulsos foram para um sítio ainda mais inóspito. Ele passou mal, adoeceu e acabou por morrer em Pequim em 73. Essa foi a história que me doeu mais escrever.

Em que ano foi à China pela primeira vez?

Cheguei em janeiro de 1991.

O que encontrou quando lá chegou?

Estávamos na ressaca da repressão do movimento pró-democracia da Praça de Tiananmen. O ambiente ainda era muito crispado e parecia que a China ia mergulhar outra vez no seu crónico isolamento. Mas senti logo uma enorme força, dada pelos quase 1400 milhões de pessoas. As autoridades, então, iniciaram um ciclo de reformas económicas. Foi como se houvesse um contrato não escrito em que diziam: ‘Nós deixamos que vocês enriqueçam, mas não ponham em causa o nosso poder’. E assim tem vindo a acontecer: a China, outrora pobre e isolada – muito pobre, mesmo – é a segunda maior economia do mundo, o maior exportador, o maior mercado automóvel.

Ainda hoje reparei que as minhas calças eram ‘made in China’.

A China tornou-se a fábrica do mundo. Mas isso está a mudar, porque há uma classe média cada vez mais próspera, os salários aumentam. O operário chinês ganha hoje o triplo do que ganha um operário vietnamita. A China como país de mão-de-obra barata é algo que está a acabar.

À medida que o nível de vida vai aumentando, é expectável que os trabalhadores deixem de se sujeitar a certas condições?

As condições de trabalho são extremamente duras. Horários de 10, 12 horas, dormitórios muitas vezes sem condições de segurança. Depois tudo àquela escala, fábricas com centenas de milhares de pessoas. Essa é a grande incógnita: como é que uma sociedade cada vez mais próspera e portanto mais livre pode ser governada à maneira antiga por um regime de partido único? Várias pessoas consideram que é uma contradição que mais tarde ou mais cedo vai rebentar, mas a curto prazo não se vê como isso vai acontecer. Não é seguro que o Partido Comunista Chinês [PCC] venha a bater o recorde do PC Soviético, que esteve 74 anos no poder, mas já lá vão com 66 e a avaliar pelo discurso oficial eles preparam-se para isso. A máquina de propaganda centra-se em dois centenários: o da fundação do PCC, em 2021; e o da proclamação da RPC.

Preveem portanto uma grande longevidade do regime.

Sim. Uma das coisas que eles têm estudado a sério são as razões que levaram ao colapso do comunismo na União Soviética e procuram aprender com isso.

E evitar os mesmos erros?

Em 2011 ou 2012, quando foi a Primavera Árabe, os governantes chineses estavam seriamente preocupados, até porque circulavam na internet apelos para manifestações. A China reunia algumas das características dos países árabes, nomeadamente do Egito – regime autoritário, partido único e corrupção. Mas tinha uma coisa que os outros não tinham, que era um grande desenvolvimento económico. Ao contrário de um jovem egípcio, um jovem chinês, embora a vida seja dura, vive hoje incomparavelmente melhor e com mais oportunidades do que os seus pais.

Disse que há fábricas com centenas de milhares de trabalhadores. Testemunhou essa realidade?

Sim. A siderurgia de Pequim, que agora já desmantelaram, tinha centenas de milhares de pessoas.

Era quase uma cidade.

Tinha cantinas, escolas, sistemas de saúde. Era a respetiva comissão de planeamento familiar que distribuía os preservativos aos trabalhadores. E toda a gente pertencia a uma unidade de trabalho. Chegava-se a um hotel ou a qualquer sítio e perguntavam o nome e a unidade de trabalho a que pertencia.

A primeira impressão que teve quando chegou à China correspondeu às suas expectativas?

Na altura eu estava em Cabo Verde como correspondente da Lusa, e esperava fazer uma carreira por África. De repente falaram-me em ir para a China e não hesitei, disse logo que sim. Nem tive tempo de me preparar. Passei por Lisboa para me abastecer de roupa de inverno, porque em Cabo Verde andava sempre de camisa de manga curta e em Pequim estavam não sei quantos graus negativos. Não ia com nenhuma expectativa particular, a não ser desembarcar no Oriente.

Como era o dia-a-dia em Pequim?

A vida quotidiana era difícil. De noite a cidade era escura, quase não havia cinema, não havia esplanadas.

O diplomata João de Deus Ramos, que cita no seu livro, descreve-a como «uma cidade soturna e poeirenta».

Quando eu fui já não era tanto assim, mas ainda acabava tudo muito cedo. As pessoas jantavam às cinco e meia, seis horas. Os espetáculos noturnos começavam às sete. O último serviço noticioso na televisão também era às sete. Não tinha nada a ver com o que é a vida noturna em Pequim ou em Xangai. Não havia os supermercados nem os centros comerciais que há hoje. Depois era tudo um bocado complicado, por causa da burocracia chinesa. Os jornalistas e os diplomatas viviam em condomínios designados pelo governo. Não obstante isso, para um repórter, era como estar numa mina de ouro. É preciso começar a escavar, mas a pessoa sente que o ouro está ali. Hoje é quase consensual que a ascensão da China é uma das grandes histórias do século XXI. Assisti a mudanças sociais, políticas, psicológicas, artísticas, a um ritmo avassalador, estonteante, vertiginoso – até para os próprios chineses.

Como se adaptou à alimentação?

A comida chinesa é muito variada. O restaurante mais modesto tem uma ementa com centenas de pratos. Eles dizem que é a melhor comida do mundo. Não usam sal, mas têm uma panóplia de condimentos e de sabores. Mas claro que a pessoa não deixa de gostar de um bom bife com batatas fritas, e isso às vezes era difícil de satisfazer. Entretanto abriram muitos restaurantes espanhóis, mexicanos, franceses. O primeiro MacDonald’s que abriu em Pequim, em 1994 ou 95, foi notícia em todo o lado. Os chineses da nova classe média aderem, faz parte da sua iniciação na sociedade moderna.

Aprendeu a falar chinês?

Quando cheguei tive uma professora, mais para perceber por que os chineses falam como falam e escrevem como escrevem. É uma língua muito bonita. No dia-a-dia desenrascava-me, mas não sei ler.

Por onde se começa?

Eles têm um sistema de ‘romanização’ dos carateres chineses. A grande dificuldade são os tons, eles têm quatro tons. As primeiras aulas eram para isso isso – tentar apanhar o tom. Se a pessoa errar o tom diz o contrário do que queria.

Como ocidental, quais foram as coisas mais estranhas com que se deparou quando chegou à China?

Eu deixei de operar com essa ideia de ocidental/ oriental. Claro que há passados diferentes. A China viveu 30 anos num mundo à parte. Os chineses não viveram nem acompanharam coisas como a chegada do homem à Lua, os hippies, os Beatles, o Star Wars ou o Padrinho.

Aquelas referências comuns.

Esse desfasamento atirava-nos logo para dois mundos completamente diferentes. Lembro-me de estar numa casa com um grupo de amigos chineses e ocidentais e de haver lá um CD do Bob Marley. Um chinês, um bailarino, que até era um tipo viajado, disse: ‘Eu conheço esse tipo, morava lá na minha rua’. Isto passa-se nos anos 90, o Bob Marley já tinha morrido há muito tempo. Quer dizer, a única pessoa que ele tinha visto com aquele cabelo era esse homem que morava na rua dele.

Uma das críticas recorrentes feitas aos chineses é a falta de higiene. Isso nota-se?

Eles não são tão rigorosos na higiene como nós… Mesmo assim tem havido melhorias. Antigamente a gente entrava num restaurante e as mesas estavam cheias de restos. Os pratos eram muito pequeninos, portanto os ossos não cabiam.

E iam parar à mesa…

Eles têm fama e algum proveito. Os coreanos e os japoneses – que são obcecados com a limpeza – falam muito disso. Cuspir para o chão ainda é muito comum. Nos Jogos Olímpicos fizeram uma grande campanha. Mas desde a fundação da República que há campanhas para ensinar as pessoas a não cuspirem para o chão e o sucesso ainda não é completo.

No livro Disse-me um Adivinho, o repórter italiano Tiziano Terzani deixou um retrato pouco simpático dos chineses, dizendo que só querem fazer negócio. Também ficou com essa ideia?

Já tenho muita dificuldade em dizer ‘os chineses’. São 56 etnias e encontrei de tudo. Mas é verdade que se diz muito isso: ‘Só pensam no negócio, só pensam no dinheiro’. Compreendo essas observações. Eles são muito materialistas, a transcendência não tem para eles muito valor. Quando dão prendas às crianças são envelopes vermelhos com dinheiro lá dentro. Ao mesmo tempo são muito bisbilhoteiros, muito curiosos. Conhecemos um chinês e ao fim de dois ou três minutos ele é capaz de nos estar a perguntar quanto é que ganhamos.

Também há quem os considere cruéis por causa da forma como tratam os animais.

Isso também tem vindo a mudar. Quando cheguei a Pequim não havia cães. Os cães só eram permitidos nos arredores. Na cidade, por razões de higiene não havia cães. Depois começaram a autorizar cães – um cão por casal – mas era caríssimo. E hoje é rara a família que não tem cão. Ao mesmo tempo, o número de restaurantes que servem cão tem vindo a diminuir. As pessoas gostam muito de animais. Saem de manhã e vão passear os pássaros. Põem-nos em gaiolas muito bonitas, que penduram nas árvores a apanhar o sol, põem uma mantazinha à volta da gaiola para a manter aquecida, e depois picam a mantinha para entrar luz e eles cantarem, e ficam nos jardins a ouvir. O grilo é outro animal de estimação.

Alguma vez comeu cão ou outra coisa estranha por cortesia?

A primeira vez tinha convidado um jornalista chinês e disse-lhe:’Eu escolho o restaurante, tu escolhes a ementa’. Ele viu que havia cão e não resistiu, como se fosse cozido à portuguesa… E eu comi. A cozinha chinesa manipula muito os sabores. Cheguei a comer peixe que parecia carne e vice-versa. Também comi gato ou escorpião em banquetes.

Como é cozinhado o escorpião?

É frito. Caracteriza-se por uma agradável falta de sabor. Mas come-se, não tem problema nenhum. Está toda a gente a comer e por isso parte-se do princípio que é seguro…

E nas refeições normais, o que se come?

A carne mais consumida é a de porco. Aliás os economistas andam sempre atentos aos preços da carne de porco. Num período de crise pode aumentar 25%.

Durante estes anos em que viveu na China absorveu hábitos chineses?

Alguns. Quando convido alguém para jantar evito os temas contenciosos para não passarmos o jantar a discutir.

Isso é um hábito chinês?

É. Não contar coisas desagradáveis aos outros. O chinês, pode-lhe ter morrido o pai e a mãe e ele estar com cancro, que nunca lhe dirá isso. Se está consigo não é para falar de coisas desagradáveis. Há outros hábitos. Eles bebem sempre água morna ou quente. Eu também faço isso. Não quer dizer que não goste de uma cerveja ou de um gin. Mas água fria já me custa a beber. Estranho, não é? E talvez um certo sentido de poupança. Os chineses têm grandes hábitos de poupança. Alguns não diziam quanto ganhavam, diziam quanto poupavam. Mas não sou a melhor pessoa para avaliar a influência que a China teve em mim.

Os seus amigos às vezes chamam-lhe a atenção, fazem comentários?

Talvez. Por falar nisso: no verão passado um casal chinês veio a Lisboa e ficou em minha casa. E eles diziam que a minha casa era mais chinesa que a deles. No frenesim modernizador, eles estão a desfazer-se daqueles móveis antigos, com boas madeiras, e nós vamos aos armazéns comprar e restauramo-los. Há ainda outra coisa. Pequim é muito seco. Para lhe dar uma ideia, tínhamos de ter em todas as salas e quartos um humificador. Havia eletricidade estática por todo o lado, e a defesa era beber chá. Eu passava o dia a beber chá.

Fez alguma viagem memorável na China?

Fiz várias, mas vou citar duas. Assim que abriram o caminho-de-ferro Pequim-Hanói (porque houve um período em que a China e o Vietname, embora fossem ambos comunistas, estiveram em guerra) fiz essa viagem com o meu filho mais velho. É uma viagem de três noites, atravessa-se o Rio Amarelo, o Yangtzé, depois o sudoeste da China, a fronteira com o Vietname e finalmente a chegada a Hanói. Parámos na terra natal do Mao, a banda toca aqueles acordes de ‘O Oriente é Vermelho’: ‘Dongfang hóng, tàiyáng sheng, Zhongguó chu…’. Uma viagem épica. E num registo completamente diferente, a inauguração da linha de alta velocidade, que entrou em funcionamento a 1 de Julho de 2011, o dia em que o PC comemorava 90 anos. Esse comboio é o grande orgulho da China, é a nova Grande Muralha. Parecia que estava a viajar para o futuro.

Uma última pergunta. À luz do que sabemos hoje, não considera chocante que a efígie de Mao continue a presidir à Praça de Tiananmen?

A avaliação oficial do PCC, que foi adotada em 81, é que os contributos de Mao superam de longe os erros. E ao nível mais popular é quase um santo. Na província vi altares com estátuas do Buda e do Mao, tudo misturado. Mao fez coisas terríveis, o Grande Salto em Frente causou talvez a maior fome por razões políticas de que há memória – 30 a 40 milhões de mortes – e a revolução cultural, outra barbaridade, mas os mais velhos dizem: ‘No tempo do Mao não havia a corrupção que há hoje’. E o Mao tornou a China respeitada no mundo. Um ano depois de tomar o poder, entrou em guerra com os EUA na Coreia. A China era muito pobre, mas desafiava as grandes potências. No ano passado houve um locutor que disse umas piadas sobre o Mao num jantar, uma coisa privada, mas alguém filmou, e ele teve um processo e foi despedido. Nesse aspeto, Mao permanece intocável.