Sócrates pensava que escapava por falar em código

José Sócrates estava convencido de que, se usasse sempre palavras em código e nunca falasse em euros ao pedir dinheiro ao seu amigo Carlos Santos Silva, a Justiça não teria matéria para o acusar – segundo se pode depreender das conversas telefónicas que teve com amigos e que foram intercetadas na Operação Marquês, que investiga…

Sócrates pensava que escapava por falar em código

A crença do ex-primeiro-ministro na sua inimputabilidade revelou-se a propósito de conversas que manteve em volta do julgamento dos também socialistas e seus amigos Armando Vara e Paulo Penedos, em 2014, no âmbito do processo Face Oculta. Nas alegações finais do julgamento deste caso, em março daquele ano, o procurador da República João Marques Vidal fez questão de salientar que o governo de Sócrates sabia das escutas telefónicas que a Polícia Judiciária realizara aos  suspeitos. E ainda que, por essa razão, estes tinham deixado de usar os telemóveis habituais.

Indignados com procurador de Aveiro

Esta acusação foi considerada “grave” por Pedro Silva Pereira, antigo ministro de Sócrates e seu amigo, que, numa conversa com este, atacou o magistrado do Ministério Público (MP) por lhe imputar o crime numa sala de audiências sem possuir provas.

José Sócrates quis saber então se a suspeita de conhecimento das escutas recaía sobre si ou sobre o seu governo, ao que o parceiro socialista respondeu que era sobre o Executivo. Mas o que Silva Pereira narrou de seguida deixou Sócrates num enorme pasmo: a acusação pedira pena de prisão para Vara. Perante a reafirmação de Silva Pereira de que fora mesmo “pena de prisão efetiva”, pois “querem-no ver dentro”, Sócrates comentou: “Esse procurador está a revelar uma visão peculiar do mundo”. E adiantou que ia ligar a Edite Estrela, à época eurodeputada, já que esta lhe enviara uma mensagem a dizer que só o então presidente honorário do PS, António Almeida Santos, podia “meter uma cunha”.

O ex-primeiro-ministro perguntou ainda a Silva Pereira se as alegações de Marques Vidal tinham passado na televisão, sugerindo que talvez se pudesse apresentar uma queixa contra ele, “para dizer quem sabia e provar”, mas o seu antigo braço-direito no Governo retorquiu que as alegações no julgamento do Face Oculta ainda não tinham terminado e melhor seria “deixar correr”.

‘Mensagem pública de amizade’

Nos dias seguintes, Sócrates falaria várias vezes ao telefone com Edite Estrela, e no início de abril almoçaria com Almeida Santos na Quinta Patiño, em Cascais. Mais tarde, após a sua prisão, a deputada socialista chegou mesmo a pedir que as escutas em que intervém e que constam da Operação Marquês sejam destruídas.

Preocupado com o mesmo assunto andava também o bloguista António Peixoto – um defensor do socratismo na internet, que no dia seguinte, perguntou ao ex-líder socialista se, acerca “daquilo do procurador do Face Oculta, deve-se dizer alguma coisa ou é melhor estar calado agora”. Sócrates respondeu-lhe que falariam disso depois e que esperava “uma oportunidade para dizer umas quantas coisas a esse gajo”, o procurador Marques Vidal, que acusou de “abusar do seu poder” por ter feito escutas telefónicas aos suspeitos quando estes falavam com um primeiro-ministro, o que não podia fazer sem pedir autorização ao Supremo Tribunal de Justiça. “Ele é um procurador não é um ativista político, ou não devia ser”, rematou Sócrates.

Quando a sentença do processo Face Oculta foi proferida, no início de novembro de 2014, determinando penas de prisão efetiva para Vara e Penedos, Sócrates e os amigos agitaram-se de novo.

O ex-governante, que fazia então um comentário político semanal na RTP, entendeu enviar a partir dessa tribuna uma “mensagem de amizade pública” aos seus “camaradas” condenados, falando ainda dos “pistoleiros do costume”, que segundo ele o tinham tentado envolver no processo, e alegando que as escutas em que fora intercetado tinham sido “transcritas de forma ilegal”. Armando Vara, esse, mereceu palavras pessoais.

No dia seguinte à leitura da sentença do caso Face Oculta, Sócrates fez questão que o amigo soubesse que passara o dia inteiro a falar nele. Ao que Vara rematou com filosofia popular: “É a vida!”. Ao antigo dirigente socialista e vice-presidente do BCP foram imputados  três crimes de tráfico de influência, um deles por ter intercedido junto do então primeiro-ministro no sentido de manter Cardoso dos Reis como presidente da CP, contrariando a vontade de Ana Paula Vitorino, à época secretária de Estado dos Transportes, que queria afastá-lo e testemunhara no processo a esse propósito. Na leitura do acórdão, foi relembrada, aliás, uma escuta de um telefonema entre Cardoso dos Reis e Vara, em que este se oferece para interceder junto de Sócrates.

As queixas de Vara

Depois de fazer a resenha do acórdão a Sócrates, Vara apontou responsabilidades a Vitorino, dizendo que fora ela quem afirmara que Mário Lino, o ministro da tutela, fora contactado para esse efeito. E desabafou: “Eu que nunca falei com o Lino”. E Sócrates, a quem o processo Face Oculta muito apoquentara durante o seu segundo mandato, com o episódio um pouco apagado na memória, entrou em contacto com Lino, que sempre negou ao Tribunal ter havido qualquer conversa com o então primeiro-ministro.

Segundo o SOL apurou, Lino estava num jantar de apoio à candidatura de António Costa à liderança do PS, no Pátio da Galé, em Lisboa, organizado pela FAUL, quando Sócrates o abordou, questionando-o se alguma vez tinha estado em cima da mesa a substituição do presidente da CP. Aí, Lino rebobinou a memória: “A Ana Paula Vitorino falou com o gajo e disse-lhe que estava a pensar mudá-lo. O gajo ficou preocupado e ligou ao Vara. Vara ligou a Sócrates e Sócrates disse que ia ver. Depois ligaste-me a perguntar se eu estava a pensar fazer alguma coisa ao gajo da CP e eu disse que não”.

Os ‘25 quilómetros’ e as ‘fotocópias’

O tema, de resto, esteve sempre presente nas conversas entre Sócrates e Armando Vara. Um ano antes, quando lançou o seu livro, A Confiança no Mundo – Tortura em Democacia, Sócrates discutia com o amigo e interrogava-se sobre as portas que a democracia pode abrir para a implementação de novas ditaduras, dando exemplos do uso da tortura por parte da CIA os prisioneiros suspeitos de terrorismo na base-prisão militar dos EUA em Guantánamo.

Vara estivera nos EUA pouco depois de Bin Laden ter sido assassinado e uma coisa e outra deixam-no meditabundo: “A prisão, o ataque a Bin Laden, os voos para lá, dá que pensar”.

Daí a ligar as grandes misérias do mundo ao seu caso pessoal foi um pulo. Tinha uma sugestão para o amigo-escritor que chegava um pouco atrasada: “Gostei muito do livro, muito académico, mas podias ter falado das nossas circunstâncias, alvos de processos que envergonham qualquer Estado de Direito. Tudo é possível num estado de Direito, até aquela tortura miserável”. Sócrates prometeu pensar no seu caso, “para uma nova edição”.

O processo Face Oculta não largava as preocupações de Sócrates,  mas foi após a condenação de Vara que solicitou ao seu advogado, João Araújo, que consultasse o processo. E, e em conversa posterior entre ambos, o ex-governante mostrou-se perplexo quanto às razões que levaram à condenação de Vara por corrupção, por  receber ilicitamente 25 mil euros – já que, nas escutas em que foi objeto de vigilância, nunca havia falado em dinheiro, usando antes um código para se referir às quantias (como “25 quilómetros” ou “50 documentos” a serem divididos por duas pessoas).

Na sua opinião, dado nunca se ter falado em euros, não haveria fundamento para a sentença. À época, Sócrates solicitava por telefone ao seu amigo Santos Silva, que titula as contas bancárias com mais de 20 milhões de euros que as autoridades supõem pertencer ao antigo líder socialista, que lhe fizesse entregas de dinheiro, que designava por códigos como “fotocópias”, “livros”, “dossiês” ou mesmo “aquilo”.

Sócrates terá ganho então consciência de que a designação do dinheiro por outras palavras não poderia inocentar só por si uma pessoa, sobretudo quando existem meios de prova quanto à ilicitude das verbas. O antigo governante perguntou a Araújo a sua opinião sobre o acórdão do Face Oculta e revelou admiração quando o causídico, que seria poucos dias depois o seu defensor na Operação Marquês, lhe disse que a sentença estava bem fundamentada. Quis saber então se nas escutas do caso se falava em euros, tendo o advogado dito que não, mas que se referia “documentos”. Inquiriu como se fundamenta assim a prova de um recebimento de 25 mil euros e Araújo explicou que no processo havia uma convergência de elementos a apontar para essa conclusão.