Imigração: nova agência que substitui SEF é a solução?

Portugal precisa de trabalhadores imigrantes. Deve ter as portas plenamente abertas ou critérios mais restritivos? Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do PS e ex-secretário de Estado da Internacionalização, e Gonçalo Saraiva Matias, presidente da FFMS e ex-consultor do Presidente da República para assuntos jurídicos, debatem o tema num país com falta de mão-de-obra.


“Somos um país que acolhe pessoas de todo o mundo”

EURICO BRILHANTE DIAS

Líder parlamentar do PS

O país precisa de imigração e acho que aí temos um grande consenso. Sabemos que a imigração é fundamental para que o país possa crescer e para que renove a sua população e que a imigração é importante para tornar a nossa comunidade mais cosmopolita e diversa porque a diversidade traz riqueza e o contacto com culturas, línguas e saberes diferentes fortalece de forma muito substantiva o tecido social. Fortalece, se nós combatermos as máfias, o que implica termos fluxos legais de imigração.

Muito daquilo que vemos como aspetos mais negativos, que não têm que ver apenas com o contexto habitacional e até de trabalho de muitos dos imigrantes, são as condições que merecem ser vigiadas para que sejam garantidos todos os direitos humanos e de trabalho e de habitação, em particular. Nós precisamos que os fluxos sejam regulares e legais, limitando o efeito das máfias. E aquilo que nós temos tido é que, cada vez que restringimos e fechamos, há um negócio paralelo que floresce, que é ilegal e altamente lucrativo para as máfias que se organizam.

Na minha experiência no passado recente como secretário de Estado da Internacionalização, fui vendo em diferentes pontos do globo alguma pressão sobre os serviços consulares portugueses para que viesse imigração, para virem trabalhadores e o setor agrícola é dos que mais pede. A pressão, muitas vezes, era ilegítima porque ilegal e porque as condições de acesso ao país tinham um quadro de restrição que permitia ser ultrapassado de forma ilegal, gerando dependências muito prejudiciais até para a própria integração dos imigrantes em Portugal.

Eurico Brilhante Dias: “Cada vez que fechamos as fronteiras, há um negócio paralelo e ilegal que floresce”

O país tem uma história de abertura, que é um património coletivo da comunidade e que contribui para a riqueza do país. Este país aberto ao investimento e ao comércio, era também um país aberto ao acolhimento de pessoas vindas das mais diferentes áreas do globo. Essa abertura, que está de mão dada com a tolerância a vários níveis, faz com que o país seja olhado a partir do exterior como um país aberto e por isso capaz de gerar soluções para realidades diferentes. Esta abertura do país como país tolerante vale investimento estrangeiro e escolha de imigrantes altamente qualificados, em vez de menos habilitações académicas e menos qualificados. Todo o fluxo que tivemos de nómadas digitais, de trabalhadores altamente qualificados que escolheram Portugal para trabalhar, tem muito que ver com essa capacidade de nós continuarmos a mostrar que o país é aberto e tolerante. Claro que há problemas para resolver, mas nós devemos olhar para os problemas e não criar mais problemas, que seria o fechamento do país, o que ninguém quer.


“É necessário controlo das fronteiras e mais regulação”

GONÇALO S. MATIAS

Presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos

É evidente que o país precisa de imigrantes. É um facto indesmentível, basta olhar para os números. De acordo com o Censos, Portugal perdeu cerca de 200 mil pessoas nos últimos dez anos, tem vindo a perder pessoas quer pela via natural, quer pela via migratória e, nos últimos dois ou três anos, só foi possível equilibrar o saldo natural à custa do saldo migratório. Isso significa que a única forma, a curto e médio prazo, que o país tem de estancar a chamada sangria demográfica é através da imigração. Depois há uma série de fatores como a natalidade média das famílias imigrantes, o empreendedorismo das famílias imigrantes, os contributos para a segurança social. Portanto, há uma série de fatores que mostram que a imigração é altamente favorável e, para um país como Portugal, neste momento, é indispensável.

Há uma teoria das fronteiras abertas, muito atraente para quem a lê, mas é uma teoria impraticável e utópica porque não é possível a um país como Portugal, que se situa na União Europeia, que tem as condições geográficas e socioeconómicas que conhecemos, abrir as fronteiras sem mais. É necessário que as fronteiras sejam controladas, por duas razões fundamentais: uma tem que ver com o interesse e a segurança nacionais e outra com as condições de vida e dignidade dos próprios migrantes.

Gonçalo Saraiva Matias: “Não há uma instituição para atração de talento e a nova agência deveria ter esse papel”

Nesta perspetiva de regulação das fronteiras está também uma consideração de garantia de dignidade de quem recebemos. Não é aceitável receber pessoas sem termos condições para lhes oferecer. Infelizmente, alguns casos que temos visto recentemente mostram isso. Pessoas que foram recebidas em Portugal sem condições de dignidade e que causaram escândalo público.

Ora, isto implica planeamento, regulação e Portugal, assim como a União Europeia, tem falhado nas condições de receção. Portugal tem uma entidade – os Serviços de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) -, que é fundamental para esta área, não apenas para garantir dignidade aos migrantes, mas também o interesse nacional. O SEF tem estado, na prática, bloqueado nos últimos dois anos e já reconheceu que tinha 300 mil processos pendentes.

“Uma agência que trata do acolhimento de pessoas não pode ser simultaneamente uma polícia”

Teremos, em breve, a Agência para a Integração, Migrações e Asilo que recebe parte das funções do SEF, mas foram-lhe atribuídas competências para selecionar um tipo de imigração de que precisaríamos?
GSM – Era fundamental a criação de uma agência em Portugal, mas não pode ser só uma mudança de nome. Há um aspeto positivo na criação desta agência que é a separação das funções de polícia das funções administrativas. Porquê? Porque uma agência que trata do acolhimento de pessoas e com funções administrativas no acolhimento de pessoas não pode ser simultaneamente uma polícia. A polícia tem funções que são próprias até de política criminal e não podem estar misturadas. Aí estou plenamente de acordo.

Agora, acho que há um potencial numa agência deste tipo (o Canadá é um bom exemplo disso) que não está a ser aproveitado. Por exemplo, o potencial de atração de talento. Existe hoje no mundo uma corrida pelo talento. O talento é um bem escasso e não é só nos imigrantes altamente qualificados; mesmo naqueles que não são altamente qualificados também há talento, treino, que é importante para Portugal, neste momento. Uma agência deste tipo tinha obrigação para se projetar nessa atração de talento para Portugal.

O Eurico, que foi secretário de Estado para a Internacionalização, conhece bem uma instituição que faz isto bem que é o AICEP (Agência para Investimento e Comércio Externo de Portugal) e faz a atração de investimento para Portugal. Não temos nenhuma instituição em Portugal que tenha um serviço correspondente no que diz respeito à atração de talento e de capacidades individuais. Esta agência podia e devia ter esse papel, na minha perspetiva.

A agência que vai entrar em funcionamento, em final de outubro, tem pendentes centenas de milhares de processos. Como é que se vai resolver esta situação a curto prazo?
EBD – Temos de ir resolvendo esse assunto e um dos problemas é esse mesmo. É uma certa cultura de bloqueio que é muitas vezes institucional, mas que está na cultura das próprias organizações e, em alguns aspetos, dos serviços consulares, o que é profundamente negativo. E é contra essa cultura de bloqueio que temos de ir transformando. A pedra de toque da reforma é essa: uma separação clara das funções policiais das funções de acolhimento. Portugal era um caso praticamente único de ter uma polícia que tinha funções de acolhimento e que era uma terceira polícia, para além da PSP e da GNR, excluindo aqui a Polícia Judiciária que naturalmente tem competências de outra dimensão. O país precisa de imigrantes e os últimos dados são muito relevantes. Nós temos vindo a reequilibrar o saldo migratório. Ainda no ano passado (2022), tivemos uma variação positiva de 87 mil cidadãos a viver em Portugal, muito por efeito do saldo migratório.

Defendo um sistema inovador de pontos que permita saber quais são as competências das pessoas que vêm porque há risco de uma abertura descontrolada. Seria uma solução para garantir que essas pessoas, quando chegam a Portugal, têm todas as condições e para sabermos quem são, em que condições vêm, que qualificações possuem e que receção vão ter no nosso mercado de trabalho.

“A política de imigração não pode alimentar máfias”

Continuamos a ter muitos jovens a emigrar…
EBD – Sim, mas isso não é sempre necessariamente mau. O número médio de filhos por mulher em idade fértil também aumentou em 2022 que é um aumento significativo. Felizmente, as senhoras em idade fértil estão a ter mais filhos e estamos a aumentar a população por via do saldo migratório. Na atração de talento, há um trabalho muito combinado entre o que faz o AICEP e o Turismo de Portugal na promoção de Portugal como território para desenvolver atividades profissionais. Estamos a acolher profissionais que vêm, mas que trabalham para entidades exteriores. Os nómadas digitais vêm, mas trabalham para entidades externas e recebem o seu salário de entidades com sede no exterior. Há muito portugueses que hoje trabalham em Portugal de forma remota para entidades que estão localizadas noutros países, como os Estados Unidos da América, Reino Unido, outros Estados da União …

O turismo, tal como acontece com a agricultura, precisa de mais de 40 mil pessoas. Temos de ter as portas abertas a estas pessoas?
EBD
– Temos de ter as portas abertas. Quando se fala da política de portas aberta, ela é vista muitas vezes de uma forma muito negativa. A política de imigração não pode alimentar, e vou pôr isto de uma forma muito radical, sistemas paralelos que alimentam máfias que geram dependências.

Aquilo que nós já sabemos é que quando mais o sistema for pouco transparente e claro, mais alimentamos quem tenta fazer passar e acaba por fazer chegar ao nosso território gente em condições muito frágeis e dependentes. Precisamos de libertar quem quer imigrar para Portugal desse conjunto de entidades. Não é apenas em Portugal. Espanha tem o mesmo problema, a Itália também e a Grécia tem questões muito diferentes, dada a proximidade da Turquia e dos países do Médio Oriente.

Admite que é necessário gerir a perceção da opinião pública nacional (e não vamos falar do partido x ou y ou de movimentos populistas e xenófobos) que pode reagir mal a este fenómeno?
EBD – Isso é verdade. É preciso ir desmontando esses argumentos, muitas vezes intolerantes. É normal. O ser humano tem alguma aversão ao que não conhece e que lhe é estranho. É preciso construir uma cultura de acolhimento e de tolerância e, muitas vezes, esses partidos políticos e essas organizações procuram semear a intolerância a partir do desconhecimento. É preciso destacar, como temos feito no parlamento, o enorme contributo que os imigrantes dão para o nosso sistema de segurança social que vai muito além dos benefícios que recebem.

Há pouco disse que a emigração de portugueses para o exterior não era necessariamente negativa, mas claro que é péssimo um português que sai por necessidade. Um português que diz que quer sair porque o país não lhe oferece as condições de desenvolvimento da sua vida pessoal, familiar e profissional no seu território… sair “obrigado” é péssimo.

Essa era a crítica do Partido Socialista a Passos Coelho, na Troika…
EBD
– A política de captação de investimento direto estrangeiro é nuclear para a qualificação do território, das cadeias de valor onde estão empresas portuguesas e para ter salários médios superiores. Sempre que atraímos investimento, ele paga em termos médios salários muito superiores à média. Portanto, é muito importante ligar esta política à retenção e atração de talento. A possibilidade de nos movermos no espaço europeu é uma das grandes vitórias da nossa democracia. Não devemos desvalorizar isso. Claro que partir por obrigação é mau.

“É necessário um sistema de pontos para saber as competências das pessoas que vêm”

O Gonçalo defendeu três medidas para a nova agência que entra em funções em final de outubro, mas há o risco de a agência não conseguir resolver o problema da imigração?
GSM – Há milhares de pessoas que estão há dois anos à espera de ser entrevistadas pelos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras. Isso causou enormes dificuldades ao nosso sistema, causa uma má imagem externa ao país (incluindo em futuros potenciais imigrantes que podem não vir para Portugal porque receiam enfrentar um sistema deste tipo) e também causa dificuldades no plano das máfias que temos de combater. Ainda este verão, vimos uma intervenção das autoridades policiais que teve exatamente que ver com isto: as máfias prometiam um processo mais expedito, quando isso não era nem legal, nem possível, aproveitando essa demora no tempo. Acho ser imperativo que a agência comece as suas funções liberta deste peso burocrático e administrativo e que se faça alguma coisa que garanta que estes processos pendentes são resolvidos. Depois devia ter outras competências que têm que ver com a atração de pessoas e com o próprio sistema de vistos.

A política migratória é, em si mesma, uma forma de atração. Volto a dar o exemplo do Canadá. O Canadá desenvolveu uma das políticas mais sofisticadas do mundo porque tinha a concorrência dos Estados Unidos. Com um monstro, no sentido positivo, de capacidade económica e de atração como os Estados Unidos, este país (com uma economia sofisticada, mas mais fraca) teve de se desenvolver e teve de atrair. Portugal está na União Europeia, tem de tirar partido das suas valências para conseguir atrair esse talento. Valências que todos reconhecemos: a tranquilidade de vida, a segurança, o clima, todos esses aspetos que são inquestionáveis. Mas depois não pode, ao mesmo tempo, dar um sinal negativo de uma política migratória burocrática, demorada e não compatível com os novos tempos.

A minha proposta é uma política migratória célere, rápida, transparente. Por exemplo, quando houve esta necessidade de trabalhadores no turismo e na agricultura, houve uma abertura da nossa lei de imigração – ao longo do último ano isso aconteceu, quer com o visto para a procura de trabalho quer com a abertura no quadro da CPLP. Não estou contra tudo isso, mas é necessário que estas aberturas se façam com capacidade de triagem, de seleção, por exemplo, com um sistema de pontos que permitisse saber quais são as competências das pessoas que vêm porque há risco de uma abertura descontrolada. O que estou a dizer não é o fechamento; é uma abertura feita de forma muito cuidadosa para garantir precisamente os direitos humanos de quem nos procura.

Concorda com o sistema de pontos, Eurico?
EBD
– Com o sistema de pontos não sei, mas acho que, paradoxalmente, o Gonçalo acabou por me dar razão. Não podemos ter um sistema em que as pessoas esperam dois anos por uma entrevista e um sistema burocrático cujos procedimentos são pouco percetíveis, para os imigrantes como para as entidades empregadoras, que têm dificuldade de relacionamento com o SEF. Da minha experiência de acompanhamento de empresas, tive empresários (de empresas de todas as dimensões, pequenas, médias, enormes à escala do mercado português) a dizerem-me: “o SEF não responde”.

Mas porque é que estas situações ocorrem há tanto tempo?
EBD
– Porque os recursos não são ilimitados e porque, por exemplo, nos vistos Schengen, o SEF não intervém – são de curta duração, até 90 dias. Já os vistos nacionais não, esses têm intervenção do SEF. O Governo agiu bem, separou as funções policiais das funções de acolhimento e lançou um acordo de mobilidade com a CPLP muito importante.

O Governo avançou também com o visto de procura de trabalho para desbloquear um sistema que não pode continuar a funcionar da mesma forma. Estes atrasos continuam a alimentar uma rede enorme quando temos dois setores fortemente pressionantes, a agricultura e o turismo, mas onde precisamos também noutros setores como sistemas de informação, tecnologias de informação e comunicação ou a indústria portuguesa. Também confio que o mercado acaba por fazer ajustamentos e acaba por expulsar, se a oferta for excessiva em relação à procura, e as pessoas acabam por procurar outras soluções…

O mercado vai resolver o problema?
EBD
– Sozinho, não.
GSM – Não, o mercado não vai resolver o problema. Nós aqui estamos a falar de uma ação fundamental do Estado que é a ação reguladora. O Estado não se pode demitir da sua função reguladora. Acho que o Estado deve regular, regulando bem, e aqui nem sempre tem regulado bem.