Ferrovia: Bitola ibérica ou europeia?

O investimento na ferrovia está a aumentar em Portugal, mas a opção do Governo pela bitola ibérica é a aposta correta? José Carlos Barbosa, engenheiro da CP e deputado do PS, é a favor. Fernando Nunes da Silva, professor e presid. ADFERSIT, é a favor da bitola europeia. O debate é aceso.


“Todas as ligações a Espanha estão em bitola ibérica”

JOSÉ CARLOS BARBOSA

Deputado e quadro da CP

Se Portugal tivesse zero quilómetros de infraestrutura ferroviária ou fossemos fazer de novo uma infraestrutura ferroviária, claramente que iríamos ter a bitola europeia como padrão. O que acontece é que já temos mais de 3000 quilómetros de rede ferroviária nacional e, se nós construirmos uma rede de alta velocidade em bitola europeia, estaremos a criar não apenas uma ilha como um arquipélago de ilhas porque, ao nível operacional, a coisa fica muito mais difícil.

Hoje, já existe tecnologia para alteração de bitola e, facilmente, os comboios alteram a bitola em andamento e não há qualquer constrangimento à interoperabilidade. A outra questão é que todas as ligações a Espanha estão em bitola ibérica.

Se nós quiséssemos construir uma linha de alta velocidade nova, chegaríamos à fronteira e os nossos comboios teriam de alterar a bitola para bitola ibérica. Por exemplo, do lado de Vigo, entre Vigo e Ourense está em bitola ibérica e depois de Ourense está em bitola europeia. Os comboios têm de alterar a bitola.

A linha de alta velocidade será feita por fases e a primeira será Porto-Soure. Ao concluirmos a primeira fase, começamos logo a operar com os comboios lá e a tirar partido da alta velocidade. Ela não será uma linha desligada da rede. Por isso, a única forma de tirarmos partido efetivo de cada uma das fases é ela manter-se em bitola ibérica.

Depois há aqui outra questão de fundo. O projeto TGV nunca foi consensual, andamos há 30 anos a discutir o TGV e a única forma de torná-lo consensual é evitar que o interior não fique a ver os comboios a passar. Em alguns pontos da rede, por exemplo, os comboios que vêm da Guarda chegarão a Coimbra e entrarão na linha de alta velocidade até Lisboa, o que irá aproximar todo o país da capital e também do Porto.

Do ponto de vista económico, não há problema nenhum da bitola para a questão das mercadorias. Nós temos 150 carruagens preparadas para andar a 200 Km/h, mais as locomotivas, temos nove alfa pendulares para andar a 220 km/h e depois há desvios; os comboios mudam para os seus itinerários, não há qualquer atraso. A ADFERSIT faz um comunicado a discutir o parafuso e não fala da parte operacional.

Uma linha de alta velocidade Porto-Lisboa tem capacidade para passar 10 a 15 comboios por hora, grosso modo, a cada seis minutos passa um comboio. Neste momento, não se consegue fazer essa oferta porque não vai haver procura para isso e não se vai tirar partido de toda a capacidade da rede.


“A interoperabilidade obriga a termos bitola europeia”

FERNANDO NUNES DA SILVA

Professor e especialista em transportes

Uma das causas de o país estar a ficar cada vez mais para trás na Europa é porque não somos capazes de manter uma estratégia durante o tempo necessário para que ela se concretize. Provavelmente, todas as pessoas que vou referir não souberam defender os interesses do país, estavam tecnicamente mal aconselhadas ou defendiam propostas irrealistas…

Primeiro governo de Cavaco Silva (1985-1987) com ministro Oliveira Martins: despacho da nova rede de ligação europeia deve ser feita em bitola europeia, seguindo as recomendações da Comissão Europeia. Nos outros governos de Cavaco Silva, o ministro Ferreira do Amaral mantém a bitola europeia e avança com estudos e projetos nesse sentido. Segue-se governo de António Guterres, com os ministros João Cravinho e Jorge Coelho (PS), que mantém bitola europeia e desenvolve projetos.

Depois veio o governo de Durão Barroso que mantém a opção bitola europeia. Houve cimeiras ibéricas que discutiram os assuntos e o seu funcionamento. A seguir vem o governo Sócrates, com o ministro Mário Lino e, a seguir, ministro António Mendonça, atualmente presidente da Ordem do Economistas (ambos PS), que mantém a bitola europeia. No governo Passos Coelho, o ministro António Mexia (depois presidente da EDP) mantém bitola europeia e pega no projeto que tinha sido desenvolvido no tempo de Sócrates, na ligação Poceirão-Gaia em bitola europeia, e prepara o lançamento do concurso para a sua construção.

De repente, aparece um governo António Costa que decide alterar isto tudo. Com que base? Com que estudos? Com que custos? Não só altera isto como momento está num processo de negociação com a União Europeia para que esta financie estas obras porque há decisões da Comissão Europeia no sentido de o financiamento das novas linhas da rede transeuropeia de transportes obrigarem à interoperabilidade e a interoperabilidade obriga a termos bitola europeia, obriga a ter um sistema de sinalização e de comunicação entre a via e o veículo europeu, que é uma coisa complicada, e há alguns problemas de protocolos e de alimentação.

Quando é referido que os espanhóis, nos últimos troços, estão a fazê-los em bitola ibérica é por uma razão extremamente simples: foi o Governo português que assim o exigiu e disse que ia manter a bitola ibérica nas suas ligações. Portanto, os espanhóis, e muito bem, não iam gastar a fazer uma nova linha até à fronteira, de Ourense para a frente, para depois não ligarem ao outro lado.

JCB: “Em 2018, a ferrovia quase colapsou”

A bitola ibérica é defensável a nível técnico, mas, para passar para França, não será normal que tudo funcione em bitola europeia?
JCB – Houve aqui exemplos de vários governos, como se eles fossem donos da razão, não é? E o que nós percebemos é que, ao longo dos anos, houve um forte desinvestimento na ferrovia e, em 2018, a ferrovia quase colapsou. E porquê? Porque desinvestiram no material circulante, nas oficinas, no pessoal, tudo para cortar custos. Isso fez com que perdêssemos milhares de passageiros. No ano de 2022, atingimos um valor que já não atingíamos há 20 anos. O que fizemos? Recuperámos comboios e oficinas, contratámos trabalhadores. Há projetos de governos que dão errado e há projetos de governos que dão certo e este Governo é o que mais tem investido na ferrovia.

Na ADFERSIT, a discussão devia ser por onde é que passa o comboio, qual é a velocidade do comboio, onde é que ele deve parar, que tipo de material circulante, quem a deve operar e não a bitola. A bitola é um falso problema, até porque os principais operadores (a própria Medway) dizem que a bitola não é problema nenhum nas mercadorias…

FNS – Eu estou a falar de passageiros, depois falarei das mercadorias.

JCB – Nós damos exemplos de governos anteriores que tinham o seu cavalo de Troia e a sua política, mas os portugueses sabem os resultados dessas políticas.

FNS – Está a criticar também governos dos partidos socialistas?

JCB – Também há alguns de governos socialistas… sim, sim, vários.

FNS – A maioria dos anos que refere é de governos do PS.

JCB – Claro, mas não podemos fugir à realidade. Houve um forte desinvestimento da ferrovia…

FNS – Pronto, foram todos uns idiotas… Só este agora é que é bom.

FNS: “É preciso ter ligações Lisboa-Porto num tempo concorrencial com o automóvel”

O foco do debate é a opção pela bitola ibérica ou europeia…
FNS – É preciso ter ligações Lisboa-Porto num tempo compatível e concorrencial com o automóvel…

JCB – Desculpe, a gente não vive de infraestrutura; a gente vive de serviço. O serviço cria valor, infraestrutura cria despesa. Vocês estão focados na infraestrutura, na bitola. A bitola, a bitola… como se a bitola fosse a mãe de todos os problemas. Mas a bitola não é um problema!

FNS – 18 anos na CP e não sabe que o transporte ferroviário é o único em que a ligação entre o serviço e a infraestrutura é determinante?

JCB – Vocês estão a querer criar uma sub-rede dentro de uma rede e a criar uma ilha operacional.

FNS – Não, de modo algum!

JCB – O filet mignon da Península Ibérica é, neste momento, Porto-Lisboa. O eixo atlântico é a zona onde vivem mais pessoas da Península Ibérica e não existe qualquer rede de alta velocidade. A ADFERSIT esquece isso. Isto vai ser feito por fases. A primeira ligação será Porto-Lisboa e deve ser a ligação prioritária.

Mas mantendo o atual traçado ou criando um novo?
JCB – Mantendo o atual traçado e criando algumas saídas para que utilizemos as estações centrais. Na Europa, a estação representa a centralidade, é um shopping, é um ponto de encontro. A proposta da ADFERSIT é criar uma rede fora da rede e meter as estações fora da cidade.

FNS – Isso não é verdade!

JCB – É criar uma rede e bitola diferentes.

FNS – Isso é o mal da discussão política em Portugal. O engenheiro Carlos Barbosa, se estivesse a discutir comigo como engenheiro, estava a ter outro discurso. Agora está a discutir como deputado.

JCB – Não, não, não! Estou a falar como engenheiro.

FNS – Não está a falar como engenheiro. A ADFERSIT nunca defendeu que as estações ficassem fora do sítio. Nunca defendeu.

JCB – Então como é que faz?

FNS – Muito simples: terceiro carril. Não há problema nenhum, em termos de passageiros. A Espanha utiliza terceiro carril, por exemplo, nas ligações entre Barcelona e França… Há quantos anos e quanto é que se gastou na reformulação da Linha do Norte para estarmos, neste momento, com um tempo de percurso inferior àquele que existia no início do século?

Há mais de 30 anos…
FNS – Desde 1987! Em 1987, a CP, com este tipo de raciocínios, tomou uma decisão (que foi catastrófica) que fazia por fases, para melhorar imediatamente e repercutir as melhorias que se fizessem no resto da rede. E o que aconteceu?

Desde 1987 ainda estamos a melhorar a Linha do Norte. Já gastámos mais dinheiro na Linha do Norte do que construir uma linha completamente de raiz ao lado.

JCB – Não vou entrar na crítica que faz ao pensamento da CP porque está à vista de todos e é reconhecido pela maioria que gosta de comboios. O trabalho feito, nos últimos anos, tem sido de recuperação da CP, ao contrário de muitas pessoas que acompanham a ADFERSIT que passaram pela CP e que fecharam oficinas e encostaram material circulante.

FNS: “O problema da Linha do Norte é ter os suburbanos misturados com intercidades”

JCB – Nós não podemos criar uma ilha operacional. Se tivermos a mesma rede, os comboios entram e saem dentro da rede de alta velocidade e criam redundâncias. Um dos problemas da Linha do Norte é que não tem redundância. Quando há cheias, por exemplo na zona de Coimbra, a Linha do Norte fica completamente inoperacional porque não temos qualquer tipo de redundância. A Linha do Oeste será modernizada e entre Caldas da Rainha e Louriçal terá velocidades até 200 km/h, o que criará uma redundância e depois a rede de alta velocidade poderá criar mais redundâncias…

FNS – Então vamos ter uma linha separada da atual. Essa tal linha de alta velocidade não é na atual. É que há bocadinho disse o contrário…

JCB – Não, não, não disse isso! Diz que é uma linha Porto-Lisboa e só quando acabar a linha Porto-Lisboa é que começam a passar lá comboios. Então como é que faz isso? Como é que faz o Porto-Soure?

FNS – Tem aqui a Linha do Norte. Está a construir esta linha, tem aqui a estação atual, o que você diz é que quando faz isto, faz um ramal para fazer a ligação… Depois, continua aqui, exatamente da mesma maneira. O que é que isto tem que ver com a bitola ibérica, explique-me.

JCB – O senhor faz uma linha Porto-Soure em bitola europeia…

FNS – Sim, senhor.

JCB – Como é que no outro dia mete lá comboios a circular? Como, se não os tem? O quê, compra com bitolas variáveis?

FNS – De eixos variáveis, claro.

JCB – Defende a compra de comboios de bitola variável?

FNS – Claro, sim. Como é evidente. Na fase inicial, sim.

JCB – E todos os comboios que a CP tem prontos a operar a 200 km/h, o senhor encosta-os…

FNS – Então, mas a alta velocidade é a 200 km/h?

JCB – Mas pode utilizar comboios até 200 km/h…

FNS – Ah, então vamos meter numa linha de alta velocidade comboios com velocidades diferentes…

JCB – Também. Qual é o problema?

FNS – Qual é a empresa ferroviária do mundo que mete comboios de velocidades muito diferentes na mesma infraestrutura? Diga-me só uma.

JCB – Está completamente enganado.

FNS – O problema da Linha do Norte não ter capacidade entre Aveiro e Porto e entre Lisboa e o Carregado é devido ao facto de ter os suburbanos misturados com alta velocidade, com os intercidades, regionais… Esse é que é o problema.

Não é possível ter uma infraestrutura ferroviária com comboios de velocidades muito diferentes a operar na mesma linha. Isso vai prejudicar os comboios mais rápidos.

JCB – Nós temos de tirar o máximo da capacidade da rede e podemos trazer comboios que andam a 200 km/hora.

FNS: “A nossa ligação é a Madrid e as ligações estão em bitola ibérica”

Na visita do governo à linha ferroviária Évora-Elvas, o primeiro-ministro quis saber como mudar de bitola: “No dia em que haja essa mudança em Espanha e se possa fazer essa mudança aqui, desaparafusa daqui, aparafusa ali, é isto?”. E foi-lhe respondido: “É isso mesmo”. É assim que vai funcionar?

JCB – Isso foi uma forma simples de resposta. O que vai acontecer é que a primeira ligação é feita em bitola ibérica (Porto-Lisboa) e faz todo o sentido, para ligar ao resto da rede.

FNS – Mas depois vai mudar para bitola europeia. O Governo está a negociar com a União Europeia, não está? Eu vi a proposta de como é que aquilo ligava.

JCB – Não, o projeto está a ser feito em travessas polivalentes e, como é óbvio, se houver corredores internacionais, nós podemos duplicar a ligação entre Évora e Badajoz. Só tem uma via e podemos passar para uma segunda via em bitola europeia.

O presidente da Medway diz que a bitola é um falso problema. O ex-presidente da CP, Nuno Freitas, um dos maiores especialistas (senão o maior especialista português) em ferrovia, diz que a bitola não é um problema. Aliás, é um dos grandes defensores em mantermos a bitola para não criarmos um arquipélago, um conjunto de ilhas operacionais que criam dificuldades…

FNS – Mas estamos a criar um arquipélago…

JCB – Não! Vocês é que querem criar um arquipélago. Ao nível dos passageiros, só conseguimos ser competitivos numa viagem até 3 horas, ou seja, no máximo 700 quilómetros. Chegar a Barcelona já é uma miragem, é para pessoas que gostam muito de comboio. As pessoas vão continuar a utilizar o avião porque têm 5, 6 horas de viagem quando em 1h45 chegam a Barcelona. A nossa ligação é a Madrid. Neste momento, todas as ligações a Madrid estão em bitola ibérica.

FNS – As ligações a Madrid estão em bitola ibérica? Onde?

JCB – A ligação pelo corredor internacional sul está em bitola ibérica. Não foi inaugurada Plasencia-Badajoz? Estou a dizer alguma inverdade, alguma falsidade? Foi inaugurada no ano passado. Depois a ligação Madrid-Ourense em bitola europeia, mas Ourense-Vigo em bitola ibérica. E não foi por questões portuguesas, foi por questões operacionais da Galiza.

50% das nossas relações comerciais são com Espanha. Transportamos menos de 10% em transporte ferroviário e a nossa bitola é igual. Ou seja, o problema não é a diferença de bitola. O problema é a competitividade, é a falta de canais de rede. Se nós temos a mesma bitola na Península Ibérica para o transporte de mercadorias, porque é que nós não aumentámos o transporte e passámos do modo rodoviário para o modo ferroviário? Porque nos faltam canais ferroviários.

FNS – Em relação às mercadorias, nunca ouviu a nossa posição, como a da ANTRAM, que é manter a bitola ibérica. O maior operador do transporte de mercadorias (Medway) faz parte da minha direção da ADFERSIT e, em relação às mercadorias, o que diz é que não é necessário mexer na bitola nas mercadorias. Para passageiros, vamos comprar protótipos de alta velocidade, comboios que custam 25 milhões de euros.