Germano de Sousa: Líder dos laboratórios denuncia “concorrência desleal”

Laboratório conta com 528 centros e é procurado por mais de 10.500 doentes por dia. Pai e filho revelam como ganharam o desafio da pandemia e como enfrentam “concorrência desleal”.

O grupo enfrentou períodos duros como a pandemia e, na segunda metade de 2023, como está o desafio do crescimento?
JGS (filho) – Para começar, somos um Grupo 100% português, 100% médico e 100% familiar. Isto são os pilares. Ser 100% médico é excelência, é levar a excelência médica laboratorial a todos os portugueses. Nós designamo-nos como o laboratório de Portugal.

Todos na família somos acionistas, somos todos médicos e a nossa preocupação é servir os portugueses com excelência laboratorial. Só por termos estes pilares de diferenciação que nos definem é que pudemos responder da forma como respondemos na pandemia, de uma forma muito rápida, cometendo os menores erros possíveis e conseguindo criar a dimensão para darmos a resposta que demos ao país.

Na Covid, 18% dos testes foram feitos pelo nosso grupo, no país todo. Com a nossa dimensão (mais de 1630 colaboradores) e mais de 530 postos de colheita, fechámos 300 postos normais (colheita de sangue) e abrimos 200 postos Covid para dar apoio aos municípios que nos pediam ajuda e organizações como bombeiros, escolas, etc.

Doutor Germano de Sousa, quando criou o grupo, porquê a aposta em áreas como genética laboratorial, anatomia patológica ou patologias clínicas?
GS (pai) –Antes de 1974, tinha sido proibido pela PIDE de entrar nos hospitais. Quando vim da guerra em Angola, fui fazer a universidade que eu sempre gostei: laboratório, biologia, medicina laboratorial e entrei para o internato.

Depois, entro nos hospitais como assistente, mas percebi que o salário que então ganhávamos não dava para sustentar uma família e tinha dois miúdos pequenos em casa. Precisava de fazer qualquer coisa e meti-me num laboratório. Foi assim que comecei porque havia necessidade de ir buscar mais alguns proveitos. Há colegas meus que estão no banco A e no banco B e têm cá fora um consultório. Eu limitei-me a fazer aquilo que qualquer colega da minha especialidade faz: montar um laboratório.

Fiz a minha carreira académica (sou professor associado) e isso significava uma qualidade acrescentada à realidade dos laboratórios de então. E começámos a crescer porque a procura foi enorme. Os meus colegas confiavam em mim, sabiam que os meus resultados eram de alta confiança e começaram a enviar os doentes para serem estudados por mim. Os meus filhos foram também crescendo, foram para Medicina e depois para a minha especialidade. Fizeram muito bem, mas não os empurrei para nada [risos]. A partir daí, foi muito mais fácil fazer crescer o laboratório.


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Como professor na Faculdade de Ciências Médicas, preocupei-me em procurar os ramos que mais interessam à classe médica e estimulei o crescimento de um laboratório de genética, de genómica, de oncogenómica ou genómica do cancro, etc, o que não faz sentido, se não for acompanhado de um laboratório de anatomia patológica. Quanto à patologia clínica (que tem vários setores, bioquímica, hematologia, hemato-oncologia), foi-se desenvolvendo até chegarmos à situação em que estamos hoje: somos um laboratório nacional procurado por mais de 10.500 doentes por dia.

Os dados relativos a doentes e análises impressionam, mas, quanto à faturação, foi de 169,7 milhões em 2021 e caiu para 117,9 milhões, em 2022. Foi o efeito da pandemia?
JGS (filho) – É normal, é o ano Covid. A curva arranca em 2020 e 2021 foi um ano de trabalho incrível. Fomos ao limite da nossa capacidade, montámos 3 laboratórios de propósito para Covid, fazíamos turnos de 24 sobre 24 horas, com uma resposta incrível e a faturação disparou. Obviamente, 2022 já é um ano de normalização dos números, mas, mesmo assim, somos um laboratório com uma dimensão importante…

Com uma quota de mercado na liderança, acima dos 16%, com 528 centros…JGS (filho) – Sim, neste momento, mas estão sempre a aumentar.

Quando se olha para a quota de mercado, percebe-se bem que é um mercado de enorme concorrência. Como lidam com a concorrência?
JGS (filho) – Sim, concorrência forte e também internacional. Os portugueses e os médicos confiam em nós e temos feito o nosso caminho. Essa capilaridade (número de postos) é para estarmos sempre próximos das pessoas. Mais de 520 postos são muitos postos. Onde há pessoas, nós estamos lá. Onde há bairros, nós estamos nos bairros. Há toda uma escala e um trabalho de logística forte. Temos dezenas e dezenas de rotas de carros todos os dias para que os sangues cheguem aos laboratórios principais, em Lisboa, Porto e Açores.

Do ponto de vista da gestão (incluindo equipas, logística e operacional), a pandemia foi a vossa maior dor de cabeça?
JGS (filho) – Grande desafio!

GS (pai) – Uma coisa que estava lá no fim do mundo, na China – e que pensávamos que aquilo não saía de lá -, de repente, saiu e foi para a Itália, Europa e Portugal. Nós percebemos que ou avançávamos ou coitadas das pessoas… não teriam ninguém que lhes resolvesse o problema. Ninguém estava capaz de resolver o problema, exceptuando um ou outro laboratório privado. O Estado não tinha condições para resolver o problema.

Comprámos várias plataformas diferentes, mas que permitiam, quando faltavam os reagentes de uma, recorrer aos reagentes de outra para continuar a aplicar a técnica do PCR ao vírus. Chegámos a ver coisas extremas: em Amesterdão, roubaram-nos encomendas…

JGS (filho) – Os reagentes não chegavam para o mundo. Havia uma gestão e uma política de interesses…

GS (pai) – Foi difícil, mas conseguimos porque investimos muito em plataformas caríssimas, mas com capacidade e isso permitiu-nos manter o ritmo necessário.

JGS (filho) – E havia a pressão dos doentes porque não havia capacidade de resposta para todos os pedidos. Nós tínhamos um limite diário do que conseguíamos fazer. Fomos sempre crescendo. Começámos a fazer 500/dia e acabámos a fazer 15.000/dia. A pressão dos doentes, dos pedidos de ajuda do país, foi ao limite. O que mais mexeu comigo foi a nossa capacidade logística e levámos a medalha! Os principais laboratórios portugueses conseguiram dar a resposta ao país. Nós tivemos uma dimensão muito grande, fomos o maior laboratório Covid e isso foi incrível. Conseguimos dar resposta ao que o país precisava.

O que muito me impressionou foi a resposta das pessoas. As nossas equipas, pilares autênticos a quebrarem, seja porque estavam doentes, seja porque tinham familiares com Covid, seja porque tinham de ficar em casa a dar apoio à família, seja porque quebraram por todas as razões, foi muito duro. Toda esta capacidade de conseguirmos suportar, substituir e conseguirmos que as pessoas voltassem a trabalhar…

GS (pai) – Convém lembrar que, no princípio, o Estado não tinha nada. Nós, os privados, conseguimos logo fazer 80% das análises do país. Depois o Estado começou a fazer a sua parte…

JGS (filho) – E os hospitais públicos faziam testes para os doentes internados. Ponto final. Nunca fizeram para o ambulatório. Tive aqui dias com 2000 doentes à porta. O ambulatório foi todo absorvido por nós. Muito duro, muito duro… Um dia, pediram-nos ajuda para colher todos os alunos de todas as escolas do país e de todas as creches. Imagine o que tivemos de fazer. Temos centenas de técnicos, mas tivemos de deslocá-los para a logística das escolas. Havia dias com 150 técnicos em escolas, com todos os processos logísticos inerentes. Foi uma loucura.

Isso também acontece graças à capacidade instalada de equipas, laboratórios, inovação, I&D. Neste momento, em que é que o grupo Germano de Sousa é claramente diferenciador e inovador?
JGS (filho) – Isso é importante quanto a desafios futuros. Temos investido fortemente. A diferenciação é esta conexão entre a biologia molecular oncogenómica com a anatomia patológica. Portanto, diagnóstico de cancro. Estamos a falar de predição de doença e de uma medicina de precisão, ou seja, estar no the state of the art no diagnóstico oncológico, a todos os níveis.

Temos laboratórios dedicados também à medicina e genética preditiva – e isto tem sido o nosso maior investimento. O futuro da saúde do país tem de ser olhado assim: olhar para o país como um todo e investir na predição da doença e na precisão do diagnóstico e da terapêutica. Se me disser que há duas medicinas: para quem tem capacidade para pedir esta medicina e para quem não tem, há!

Consigo detetar, por exemplo, um cancro antes de ser cancro, quando as células ainda se estão a multiplicar, e antes de ser uma massa tumoral e identificá-la. Isto hoje já é possível e ter uma terapêutica específica. No futuro, esta medicina de conseguirmos predizer a doença – que hoje é muito cara – vai deixar de ser cara. Vai ser vulgar fazer isto e dar acesso a todas as pessoas… e isto tem de ser pensado agora. O país tem de pensar isto agora. Porquê? Já existe a tecnologia…

Sem estigmas público-privados?
– JGS (filho) – Completamente! É olhar para o país.

– GS (pai) – É um grande desafio. Primeiro de tudo, não ser ganancioso e ser médico. Nós não somos gananciosos! Não necessitávamos de levar os preços exorbitantes que os estrangeiros levavam. Mandava-se fazer lá fora, depois vinham e o laboratório que estava cá ainda punha mais não sei quanto.

Conseguimos produzir resultados que salvaram muitas vidas, procurando que a margem fosse baixa. Não me importei nada; sabia que depois o número iria aumentar. Falei com o meu filho e com a minha filha, dizendo: ‘nós temos de marcar a diferença’.

JGS (filho) – Temos uma equipa muito diferenciada; é uma aposta em ter os cérebros e um laboratório tecnologicamente ao nível mundial. Portugal tem sempre a questão da dimensão e da escala, no país e fora dele. É muito duro porque são anos de muito investimento para conseguirmos ter esta escala…

Esse é o desafio: pensar o país com os laboratórios privados, criar centros de excelência, sem gestão por ilhas e fornecer serviços a largas dezenas de hospitais públicos e privados.

É possível internacionalizar este negócio?
– JGS (filho) – Temos a área molecular internacionalizada e muitos laboratórios confiam em nós. Espanha, Quénia, Angola e Moçambique, obviamente…

GS (pai) – Para internacionalizar no sentido que está a dar (com a marca Germano de Sousa), temos pensado nisso, mas, por enquanto, eu gostava de perceber, antes de mais, o que vai acontecer aqui no nosso país. [risos]

E porquê? Em que variáveis?
GS (pai) – As variáveis são difíceis. Para internacionalizarmos, estamos a bater-nos contra alguns “monstros”. Estão aqui em Portugal à vontade, fazem-nos concorrência à vontade e são capazes de ir aos hospitais vender os seus testes, sem concurso, nunca percebi como, quando por lei tem de haver concurso…

Há uma concorrência desleal de algumas multinacionais?
GS (pai) – Há uma concorrência que eu considero desleal.

JGS (filho) – Inclusive a deslealdade da política fiscal europeia. Quanto às regras, se o valor não fica no país, se os impostos não são pagos em Portugal, estamos a esvaziar o país de ativos.

GS (pai) – Não temos nada contra os laboratórios estrangeiros que vêm para aqui e montam um grande laboratório, mas não é isso que, nalguns casos, se passa. A empresa X que tem a representação do teste Y não tem de fazer laboratório nenhum e vai vender diretamente o teste aos hospitais e a outros lados que depois mandam para fazer lá fora, quando a lei obriga a ter laboratório. Por isso disse que isto é tudo um salve-se quem puder!

Mas há (ou é suposto haver) regulação?

GS (pai) – É suposto haver, não. Há regulação. As regulações servem para passar pelos buraquinhos das redes e fazer o que se quer…

A questão fiscal é crucial para maior competitividade de grupos como este?
GS (pai) – Se eu tivesse a minha sede na Holanda, eu pagaria 10% de imposto. Em Portugal, quanto estamos a pagar? 23%. Por sua vez, os reagentes, que têm um IVA especial em toda a Europa, aqui têm um IVA de 23%…

JGS (filho) – O próprio Governo tira competitividade a este setor e a outros mais ainda. Tudo a pagar IVA de 23% de consumidor final para um reagente de um resultado de uma análise de saúde, quando em Espanha pagam 7%?

Há um trabalho de reforma em diversas áreas da saúde (por exemplo, na fiscalidade) que pode ser crítico nos próximos anos para grupos portugueses como o vosso?
JGS (filho) – Claramente, esse é um grande tema. As regras do jogo, sabemos quais são, mas, se não há uma relação séria com preços de transferência entre países… não paga impostos cá, paga impostos na fonte, no país que lhe interessa mais. Conseguimos fazer coisas muito positivas, temos de continuar a ser competitivos e somos competitivos em todas as frentes.titivos e somos competitivos em todas as frentes.

À minha maneira

Como definem o vosso modelo de gestão e liderança? Quais são os vossos valores?
JGS (filho) – Somos médicos especialistas e a nossa gestão é muito especializada. Não podemos cometer erros naquilo que é estar na linha da frente no investimento, nas tecnologias e naquilo que está a acontecer na medicina onde acontecem, todos os dias, coisas novas incríveis. Temos de estar muito por dentro e estudar e só depois somos gestores médicos, trazendo isto para o laboratório e para o nosso cliente/doente.

Não é uma gestão puramente financeira e de compras; é uma gestão claramente médica. E, sendo nós acionistas diretos e gestores médicos, a gestão não é feita para mostrar ao meu acionista ou para valorizar as ações na bolsa ou para fechar o trimestre bonito.

Eu faço sempre uma gestão de muito mais médio e longo prazo, conservadora, mas, ao mesmo tempo, com capacidade de assumir riscos com investimentos com poucos erros. Não tenho margem para errar muito. Somos a cara da marca; somos a cara do negócio. Os nossos números contabilísticos e fiscais têm de estar imaculados e não podemos cometer erros de investimento. Não podemos perder o pé; senão, tudo se desmorona. Somos uma família, somos portugueses e o que criámos não pode ser posto em causa.

Sim, conseguimos

Além da pandemia covid-19, qual foi a maior ameaça que enfrentaram e como é que a superaram?
– GS (pai) – Em 2003, de repente, somos informados de que apareceram investidores, fundos, que estavam a querer comprar tudo o que mexia neste país. E compraram. Compraram tudo, exceto nós. Nós fomos – não direi, ameaçados de pistola em punho – confrontados com ofertas interessantes do ponto de vista financeiro, dizendo: “vocês não vendem isto, mas sabem que vamos tomar conta disto tudo e vocês vão ter de se transformar num pequenino laboratório.” Nessa altura, eu era ainda bastonário da Ordem dos Médicos, disse: “não vendo, nem por nada”. Chamei este senhor e a minha querida filha e disse: “meninos, vamos fazer frente a esta gente?”; “vamos embora, pai!”. Apertámos o cinto, Deus sabe o que nós passámos, e conseguimos impor-nos de tal modo que hoje podemos dizer que somos o laboratório maior de Portugal. Mas o período de 2003/2005 foi muito duro.

– JGS (filho) – Uma publicação da bolsa de Londres escreveu que, no negócio da saúde, tínhamos dos melhores rácios financeiros, etc., e ganhamos sempre muitos prémios. Temos uma gestão de investimento forte, mas sempre com a cabeça no lugar e não perdendo o pé. Os números são lindos e, como tal, todos acham que isto é para comprar e que nós vamos vender.

– GS (pai) – Os nossos resultados são praticamente todos reinvestidos. Em máquinas, tudo… Nós queremos continuar. Um dia hei-de fechar os olhos, mas os meus filhos continuam.

– JGS (filho) – É isso. A última compra grande foi este edifício (Lumiar, em Lisboa). Pusemos um excelente refeitório para os trabalhadores, condições de trabalho únicas para as equipas todas e as pessoas têm espaços de trabalho bons e até a forma como estão no local de trabalho é mais agradável, tudo positivo. Há espaços de trabalho e espaços de silêncio, temperatura e luz, num espaço não laboratorial.

Portugal 2043: “As pessoas vão chegar aos 100 anos com boa qualidade de vida

Como gostariam que o país estivesse daqui a 20 anos?
– JGS (filho) – Sou um bocadinho ingénuo e zero político, mas já tentámos fazer coisas bonitas nos hospitais públicos e ajudar ao nível laboratorial. Portanto, percebo a dificuldade que é conseguir olhar para o país como um todo. Olhando para o país, a aposta é nos centros de excelência, onde os privados estão na linha da frente. Esta medicina de tapar buracos… Claro que temos medicina de excelência em mil áreas, mas ainda não está a chegar a todos os portugueses.

Se Portugal não estiver já a trabalhar hoje para construir um modelo que pode ser referência para o mundo… Somos um país fantástico para ser referência mundial na prevenção, na predição de doença e na medicina de precisão. Há áreas em que o orçamento vai diminuir muito e outras vai aumentar, mas vamos conseguir dar uma melhor saúde aos portugueses. E aí vai refletir-se na esperança média de vida dos portugueses. É olhar já para as pessoas nesta perspetiva, aumentando a esperança média de vida e com qualidade de vida.

– GS (pai) – Em 2043, gostaria imenso de estar lá para ver como é que seria. Hoje, é possível prolongar a vida do homem. Com as descobertas de vários investigadores, estou convencido de que, em 2043, as pessoas vão chegar aos 100 anos com boa qualidade. Não são 100 anos paralíticos, numa cadeira de rodas, mas 100 anos com a pessoa a mexer-se.

– JGS (filho) – Alguém que tenha 80, como o meu pai, hoje já é a quarta idade. A longevidade começa nos muitos novos, nas crianças, nos jovens. As crianças que nascem hoje, em média, vão chegar acima dos 100 anos…

– GS (pai) – Por isso é que temos de estar preparados para este futuro.

– JGS (filho) – E o país tem de pensar isto. Tem de haver grupos de trabalho, gente desinteressada da política, que pense a sério sobre isto: onde é que nós vamos estar daqui a 20 anos.