A rábula do Certificado de PME

Quando toca a burocracia, nem com duas leis iguais o Estado arrepia caminho.

A proposta de Pacto Social apresentada pela CIP – Confederação Empresarial de Portugal, à sociedade portuguesa (que o governo até ao momento ainda não aceitou subscrever), é constituída por 3 eixos estruturantes, um deles composto por medidas que visam a redução da burocracia e a eliminação das inutilidades administrativas na relação entre as empresas e o estado.

Em concreto, a Medida 3 do Eixo da Simplificação propõe exactamente o seguinte: “Consagração da IES como meio privilegiado para o fornecimento de toda a informação para fins estatísticos e fiscais pelas empresas.”

Os mais distraídos poderão tender a negligenciar a real importância desta pretensão da CIP. E aparentemente o próprio governo, pelo menos até ao momento, tem estado bastante desatento nessa matéria.

Todavia, a carga burocrática e as redundâncias geram constrangimentos, causam prejuízos e contribuem de forma determinante para reduzir não só a produtividade das empresas como também a eficiência dos serviços públicos. Pelo que é vital enfrentar este problema.

Para que melhor se compreenda a dimensão e o ridículo da questão, ilustremo-la com um exemplo concreto, que não resisto à tentação de definir como a rábula do Certificado de PME.

Tal como é sabido, todas as empresas portuguesas estão obrigadas a submeter anualmente no Portal das Finanças a respectiva IES – Informação Empresarial Simplificada, a qual contém todas as informações essenciais e relevantes relativas à sua actividade.

Naturalmente, da simples análise da IES resulta de forma cristalina e linear se a empresa é ou não uma Pequena e Média Empresa (PME). Ainda assim, para que lhe seja formalmente reconhecida essa definição de PME, com as consequências, as obrigações e os direitos previstos na lei, a empresa terá em seguida de se dirigir ao site do IAPMEI, onde deverá introduzir uma parte dos mesmos dados que já fez constar da IES.

E apenas dessa forma, se respeitar esta redundância absolutamente inútil, poderá a empresa manter ou obter o seu “Certificado de PME”. O que significa que, para poder ser reconhecida pelo estado português como aquilo que efectivamente é segundo as leis da República, a empresa terá de prestar a um segundo organismo público as mesmas informações que declarara anteriormente a uma outra autoridade.

Entretanto, se essa empresa se encontrar envolvida em algum projecto de candidatura a fundos da União Europeia, estará obrigada a dar sequência à saga. Nessa eventualidade, terá ainda de se dirigir ao chamado “Balcão dos Fundos” (o antigo Balcão 2020), gerido também pelo estado português, e aí actualizar o “Certificado de PME” com base na atribuição desse mesmo estatuto por parte do IAPMEI, o qual fora concedido, recorde-se, com origem exactamente nos mesmos dados que constam da IES e estão na posse da Autoridade Tributária e Aduaneira.

Constata-se assim que cada empresa é obrigada a evidenciar três vezes em igual número de diferentes organismos públicos que é uma PME, despendendo horas de trabalho absolutamente improdutivas e inúteis que deveriam ser canalizadas para tarefas de efectivo valor acrescentado.
Mas infelizmente a rábula não fica por aqui. Com efeito, se a empresa apresentar a IES e em simultâneo não actualizar os seus dados no site do IAPMEI, o seu “Certificado de PME” obtido no ano anterior perderá de imediato a validade. E caso o projecto de candidatura a fundos da União Europeia em que a empresa está envolvida tenha sido apresentado em conjunto com mais 50 ou 100 outras empresas e entidades, o processo fica bloqueado para todas elas. O que atrasa investimentos, gera ineficiências, compromete a execução de fundos europeus e leva ao desespero empresários, gestores e trabalhadores.

Como se tudo o que antecede fosse pouco, acresce ainda que os dados de referência que o IAPMEI observa para o reconhecimento de uma empresa como PME são diferentes dos que a Autoridade Tributária e Aduaneira considera para o mesmo efeito.

Donde decorre que, para além de obrigarem as empresas a repetirem procedimentos e triplicarem diligências, os organismos públicos não se entendem entre si quanto às conclusões a extrair de factos absolutamente iguais.

Não violarei qualquer obrigação de sigilo se aqui escrever que, em audiência recentemente concedida pelo Presidente da Assembleia República a uma delegação da CIP que tive a oportunidade de integrar, a segunda figura do estado português confessou ter feito parte de dois governos em cujos Conselhos de Ministros fora decidido proibir que qualquer organismo público pedisse ou exigisse às empresas privadas informações que se encontrassem já na disponibilidade de outra entidade do estado.

Se assim foi, como não tenho qualquer dúvida de que o tenha sido, é caso para dizer que, quando toca a burocracia e vacuidades, nem com duas leis iguais e sucessivas o estado português arrepia caminho. Quando se fala na baixa produtividade do país, uma parte significativa da explicação está precisamente na soma de muitos detalhes quase anedóticos como este.

A proposta de Pacto Social da CIP visa ajudar a economia também neste domínio. Não há nenhuma explicação lógica para que ainda não tenha sido aceite.

Vice-Presidente Executivo da AIMMAP e Membro da Comissão Executiva da CIP

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