Municípios: “Ninguém está satisfeito com esta descentralização”

Há vantagens na municipalização? Frederico Alexandre Rosa, presidente da Câmara Municipal do Barreiro (PS), defende que sim, mas faltam meios. Rogério Bacalhau, presidente da Câmara Municipal de Faro (PSD), critica a forma como está a ser conduzida a descentralização.

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“Descentralização aproxima o decisor da decisão”

Mais que municipalização, que é um termo de que pessoalmente não gosto, diria que sou, claramente, a favor de uma descentralização de competências. Mas a descentralização de competências não pode ser um fim em si.
Ela tem de ser acompanhada com meios, com ferramentas e também com investimentos do Estado Central, mas tem por base algo com que concordo plenamente: aproximar o decisor da decisão e dar o contexto da distância das instituições em relação às pessoas porque são elas que vão sofrer com essa decisão.

Por isso, esta descentralização de competências para os municípios é, na minha opinião, central, mas ainda tem muitos passos para dar.
Tem de ser aprofundada e concretizada (não diria dos dois lados da barricada porque acho que estamos todos na mesma barricada) dos dois lados desta moeda: aquilo que são as ferramentas que os municípios têm de passar a ter e também aquilo que são as obrigações que o Estado tem de assumir e concretizar.

Posto isto, acho que é um caminho que vai claramente melhorar o contacto e a vida das pessoas com a proximidade da decisão e com a proximidade e a diminuição do tempo entre onde se toma a decisão e onde se operacionaliza a decisão.

Este passo, que é um passo de gigante, também teve de ser acompanhado de uma grande ação pedagógica, para que toda a gente perceba do que estamos a falar.

A educação é um exemplo flagrante e foi a descentralização com mais impacto nos municípios. Há um passivo enorme nos equipamentos escolares e os municípios ganharam todos verbas, no início, muito diminutas.
Se calhar, estas verbas eram diminutas por falta deste conhecimento específico e o que é facto é que depois fez-se um caminho, juntamente com a Associação Nacional de Municípios, que é de sublinhar.

Houve uma grande união entre todos os autarcas e conseguiu-se chegar a este caminho. Os municípios conseguiram ter verbas para poder fazer a manutenção, mas nós sabemos que o panorama dos equipamentos escolares no país não requer manutenção,; requer uma requalificação total.
Essa parte da descentralização, que não cabe aos municípios, tem de ser efetivada. É preciso continuar. É muito importante o reforço das verbas e este caminho tem de ser feito e aprofundado.

Agora, se me pergunta se, no início do processo, as verbas eram suficientes, a resposta é não.

“Ninguém está satisfeito com esta descentralização”

Acho que ninguém está satisfeito com esta descentralização, mas continuo a dizer que foi um passo de gigante aquilo que se fez porque quebrou-se a barreira da transferência de competências, ou seja, da transferência de poder. Ninguém gosta de perder poder e a administração central já demonstrou, ao longo dos séculos, que não gosta, mas os municípios também não.

Há muitos municípios que ainda não fizeram transferência de competências para as freguesias e, portanto, isto não é um problema da administração central; é um problema de um país porque somos muito centralizados. Mas, termos dado este passo, criando em 2019, 2020, 2021 um leque muito vasto de legislação e ir implementando paralelamente; agora, a partir deste ano, é universal.

Acho que foi um passo de gigante exatamente porque o que fizemos aqui é aproximar a decisão do problema. Dou um pequeno exemplo: os funcionários assistentes operacionais das escolas. Quando um se reformava, a escola tinha de comunicar à direção, à delegação regional, que comunicava à DGEST [Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares], que entrava num processo e, provavelmente, um ano depois teria uma substituição.

Nós temos um concurso sempre aberto e, se a reforma sai no dia 30, no final do mês, no dia 1 temos uma pessoa lá. Portanto, é esta operacionalização de quem tem capacidade de decisão e que pode intervir que, de alguma forma, fundamenta esta transferência de competências.
Não gosto do termo municipalização. Ela foi muito usada pelos sindicatos, dando uma conotação negativa como se o poder local não fosse dos poderes mais eficientes e eficazes que nós temos no país em termos de poderes públicos.

Por isso, prefiro chamar uma descentralização, um reforço do poder local. Quando liga reforço do poder local, isto não é em detrimento da administração central que continua a ter as competências de continuar a trabalhar connosco.

Temos de estabilizar esta descentralização e aprofundá-la. Há muito mais coisas que podem ser descentralizadas. A questão aqui é que o país não estava preparado para esta descentralização. Na área social, o próprio Governo e a Segurança Social não tinham sequer uma ideia de como é que as coisas funcionavam. Havia concelhos onde um técnico tinha mil processos de RSI [Rendimento Social de Inserção] em acompanhamento e, no concelho ao lado, tinha 30.

Rogério Bacalhau: “A maioria das despesas estavam e estão suborçamentadas”

Os autarcas, sendo PSD ou PS, conseguem entender-se, por exemplo, nas comunidades intermunicipais que têm sido uma nova plataforma?
RB – Até hoje, acho que sim porque uma das grandes virtudes dos autarcas é que põem sempre em primeiro lugar os seus munícipes, o seu município e até a região. Estamos muito próximos e estamos habituados a resolver problemas e a receber problemas todos os dias. Portanto, obrigamo-nos a isso.
A maioria (para não dizer todas) das decisões da CIM do Algarve (a AMAL) são tomadas por unanimidade. Negociamos, vemos qual é a melhor forma e, nas outras CIM, penso que acontece o mesmo.
Agora, há aqui uma questão, que eu gostava de deixar bem vincada: uma coisa é a descentralização para poder local; outra coisa é uma regionalização, uma outra forma intermédia de exercer competências.
Em Portugal temos a administração central, o Governo e o poder local. Não temos nenhum poder intermédio e, na maioria dos países, isso existe.
Há uma tentativa, que eu acho gorada, de atribuir poder às CCDR [Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional], mas que ainda ninguém percebeu o que é que isso significa e que poderes são.

– Isso seria uma regionalização encapotada?
RB – Se não houver regionalização, podemos dizer isso. É, pelo menos, um reforço dos poderes das CCDR e uma transferência de poderes da administração central para um órgão regional.
No caso do Algarve, a CCDR coincide com região e, portanto, aqui até é fácil pensarmos neste modelo. Agora, a descentralização está a efetivar-se, estamos a estabilizá-la e estamos a criar as condições para que ela seja efetiva.
Quanto é que o orçamento de Estado gastava com a manutenção dos edifícios escolares? Oito milhões de euros por ano. Não é por acaso que temos o parque escolar nas condições em que está, a precisar de melhorias efetivas.
A Associação de Municípios assinou um acordo com o Governo em 451 escolas e ainda faltam aqui meia dúzia delas ou uma dúzia que têm de ser intervencionadas até 2030. Metade das minhas EB2,3 e Secundárias estão nessas circunstâncias e cada uma delas vai custar seis ou sete milhões. Uma tem uma intervenção em projeto para seis milhões e as outras duas para sete.

– Então tem de ser a administração central a intervir?
RB – Tem de ser a administração central. Foi isso que ficou acordado. Nós fizemos os projetos, vamos fazer a obra, mas com dinheiro da administração central. Nós próprios não sabíamos muito bem o que era preciso porque, quando o Estado tem no seu orçamento oito milhões de euros para a manutenção, isso denota que a maior parte destas despesas estavam suborçamentadas e ainda hoje estão.
Há duas grandes mais-valias desta descentralização, no meu ponto de vista : uma é aproximar a decisão do problema e a outra é que foi necessário pensar no que é que o país andava a fazer e nas necessidades.
Quando digo que passámos de oito para quase 50 milhões para a manutenção, é aquilo que a administração central transfere para os diversos municípios.
Hoje, temos isso padronizado. Antes o governo decidia que naquele ano eram 8 milhões e punha lá 8 milhões e depois ia tapar uns buracos. Se no ano seguinte fosse 9 milhões e depois 7, era igual. Portanto, hoje pelo menos temos isso feito.

Frederico A. Rosa: “Tem de haver um reforço de competências para as Câmaras Municipais”

O que se tem estado de alguma forma a fazer, do meu ponto de vista mal, tem que ver com as CCDR. O ano passado saiu um diploma que referia que até final deste ano as primeiras CCDR tinham de se adequar a isto, saindo um conjunto de matérias que tinham de ser transferidas para as CCDR. Penso que isso, até final do ano, se vai operacionalizar, mas ninguém sabe muito bem de onde é que vêm os orçamentos, as atribuições que são e por aí fora.
E agora aconteceu uma coisa muito mais estranha.

Na área da saúde, o que estava prevista era as ARS [Administrações Regionais de Saúde] passarem para as CCDR mas afinal vão criar uma coisa chamada Unidades Locais de Saúde em que tudo o que era da ARS fica lá, portanto, já não vai nada para as CCDR, ou seja, andamos aqui para trás e para a frente, não sabemos muito bem aquilo que queremos, e é isto que é importante definir. .

– A propósito do papel das CCDR, que obviamente têm uma intervenção enorme na ação diária dos municípios, O que é que vos poderá afastar do Terreiro do Paço?
FAR – O que nos afasta do Terreiro do Paço, não pode ser apenas uma coisa formal ou informal, tem de ser algo sistematizado e padronizado e é aí que estes vários níveis de governação onde as CIM, as áreas metropolitanas, mas também o reforço de competências para as câmaras municipais e para as juntas de freguesias, tem de ser perfeitamente articulado.

FAR: “Gostava de ver cumprida a lei das finanças locais e 6% de IVA na luz”

Faz sentido termos 308 municípios ou admitiriam, por hipótese, o cenário de fusões de municípios em algumas regiões, por uma questão de gestão e de eficiência?
FAR – Não me sinto legitimado a responder para além do meu território e, no meu território, a resposta é obviamente que não. Não me sinto sequer capaz de pensar no meu território perdendo a identidade que tem. Essa, para mim, é uma questão que não se coloca.
Antes desse cenário, há outros que, se calhar, gostava de ver cumpridos, nomeadamente, a lei das finanças locais ou questões que sei que unem muitos autarcas como, por exemplo, a reversão de uma medida que já vem do tempo da Troika que é a iluminação pública com IVA a 6%; ou das refeições escolares, que eu subscrevo também, porque sei que é algo que os autarcas sociais-democratas têm defendido e, na verdade, é algo que todos têm vindo a defender.
Para chegarmos um dia a essa pergunta, há muitos passos que precisamos de dar porque essas são as ferramentas que verdadeiramente operacionalizam um bom governo local, um governo com meios, com ferramentas, para poder perspectivar o território.
O passo mais importante (dizendo desde já que não vejo o Barreiro a ser fundido com outro concelho) era que, tal como a descentralização, fossemos capazes de dar este grande passo e depois fazer o caminho que nos levou até aqui.

RB – Há um lado que me diz que devíamos pensar nisso… Quando nós temos territórios, municípios, com 2000 pessoas de população, se calhar leva-me a pensar que este município podia ser integrado no outro e passavam a ser mais fortes e ,inclusivamente, esse município final poderia ajudar melhor aquele porque teria mais recursos.
Mas aqui a eficiência de recursos é na qualidade de vida que a gente pode proporcionar àquelas pessoas, é nesse sentido. Se pensarmos desta forma, não se justifica ter este município. Mas depois há o outro lado da moeda: se eu não tiver este município, aquele território provavelmente desaparece.
Se pensarmos que há municípios destes em que o maior empregador é a câmara, onde é a câmara que, ao fim e ao cabo, zela por aquele território, isso faz com que as poucas pessoas que lá estejam ainda lá permaneçam, leva-me a pensar que não .
Portanto, não é uma pergunta de eficiência; é uma pergunta que vai muito mais além, pensando nas pessoas, no próprio território que ficaria (não digo) abandonado. porque o autarca teria também aquele território para gerir, mas, ao repartir por todos, teria menos condições para isso. Não é uma pergunta fácil, não é uma pergunta que eu possa e que queira responder.
Se um dia tivesse essa questão para tomar uma decisão, certamente diria que não porque a salvaguarda do território e das pessoas que vivem lá, nestes casos em particular, será muito mais importante do que alguns cêntimos ou euros que iríamos poupar. Não é uma matéria fácil.

– Para as responsabilidades que têm, os autarcas em Portugal deveriam ganhar mais? Sim ou não?
RB – Eu acho que sim.
FAR – Claro.