A cigarra

Em termos de reformas, os sucessivos governos têm sido verdadeiras cigarras.

O Orçamento de Estado para 2024 prossegue a política orçamental do passado recente, prevendo um superavit, tal como se estima para o corrente ano, alicerçado num forte crescimento das receitas do Estado (e, entre elas, dos impostos, sobretudo os indiretos) que, mesmo com uma despesa a voltar a níveis preocupantes, permitem um resultado muito saudado pelos mais incautos (e pelos mais desatentos), permitindo uma continuação da redução do peso da dívida. Porque haverá um superavit e porque se espera (logo veremos) crescimento real positivo e, fruto da inflação em queda, mas ainda relevante, um crescimento nominal do produto significativo.
A despesa estimada para 2023 deverá atingir os 113,2 mil milhões de euros. Os gastos mais relevantes são as prestações sociais, que valem quase 40% do total, de onde se destacam as pensões de reforma. Também os gastos com pessoal pesam, devendo atingir 27 mil milhões de euros, o equivalente a 24% do total. Já para 2024, o peso da despesa pública no PIB deverá aumentar para 44,5% (será de 42,6% em 2023). Em termos nominais, a proposta de Orçamento de Estado (OE) para 2024 prevê que a despesa cresça 9%, mais do dobro do PIB nominal (4,4%), atingindo 123,02 mil milhões de euros. Mais modestamente, o Investimento Público orçamentado é de apenas 3,3% do PIB, bastante abaixo dos valores habitualmente registados até 2011, mas, ainda assim, quase 1 p.p. acima dos valores historicamente baixos da segunda metade da década passada (e muito abaixo da média do período 1995-2022, que se situou em 4,3%).
A parcimónia que se vem revelando no investimento público não tem paralelo na admissão de novos funcionários. A despeito das notícias sobre falta de médicos, falta de professores, falta de praças nas forças armadas, só para referir alguns dos casos noticiados, a verdade é que o número de funcionários públicos voltou a crescer em 2022 e 2023. Ultrapassou os 740 mil em março deste ano, um record desde 2011.
A subida da despesa não se tem processado de forma uniforme. Há situações tão distintas como as que se verificam nas forças armadas, de penúria generalizada, e o serviço nacional de saúde, onde apesar dos inúmeros problemas existentes e da redução importante da oferta que se verifica neste momento, a prodigalidade do governo tem sido notória. De facto, segundo a Direção Geral do Orçamento, entre 2015 e 2024, as despesas com o SNS deverão registar uma subida de 72%, sendo que o orçamento para 2024 prevê uma subida nominal de 10% face a 2023, ou seja, mantem-se um crescimento nominal acima do crescimento global da despesa das administrações públicas.
Perante este crescimento generalizado da despesa nos últimos anos, surge necessariamente a questão do entendimento da degradação da prestação de serviços públicos em áreas essenciais do serviço do estado. É certo que o governo tem sido contido para além do desejável no investimento público (que agora tenta compensar com o encaminhamento das subvenções do PRR para as áreas de sub-investimento recente) e que os salários dos funcionários, que representavam 25,8% da despesa primária em 2015, tinham caído ligeiramente para 25,3% em 2022, esperando-se uma ligeira recuperação em 2023 e 2024. Por outras palavras, como é que é possível que se verifique uma tao evidente degradação dos serviços na educação, no SNS, na justiça e em muitas outras áreas dos serviços públicos, apesar do governo gastar mais, nalguns casos muito mais? As razões são obvias, ainda que a sua solução nunca tenha sido realmente tentada nas últimas décadas.
Fui um dos que alertei que a estratégia de consolidação orçamental seguida desde 2015 iria trazer sérios problemas aos portugueses muito antes da materialização dos constrangimentos devastadores que enfrentaremos se continuarmos a ignorar os avisos e os alertas. O desinvestimento público em todas as áreas e a falta da dotação e reestruturação dos mais variados serviços iria tornar-se evidente em poucos anos. Ora esses anos já chegaram, e o mal-estar na educação, na saúde ou na justiça são só um exemplo da degradação da qualidade de prestação dos serviços e condições de trabalho que iriam inexoravelmente acontecer com a estratégia financeira seguida: contenção orçamental em certas rubricas, como o investimento ou mesmo os salários dos mais qualificados, e quanto ao mais, tudo na mesma. Para tal, é preciso que, independentemente dos ciclos eleitorais, se ponha finalmente em curso uma verdadeira reforma da administração. Não é necessariamente uma alteração do que deve estar na administração ou devolvido ao mercado. Mais importante, e mais facilmente “consensualizável” dados os resultados medíocres da situação atual, é criar condições para gerir mais descentralizadamente, mudar os processos e as orgânicas relativas aos vários serviços e promover uma política moderna de recursos humanos que promova o mérito e a dedicação e não o nivelamento por baixo a que vamos assistindo. E já agora, que tome em conta que Portugal em 2023 já não é o país que era em 1856, quando se fez aprovar a atual rede de poder local.
Em termos de verdadeiras reformas, os sucessivos governos, e o atual em concreto, têm sido verdadeiras cigarras. Daí estarmos como estamos: despesa a crescer e qualidade dos serviços a diminuir. E com tendência para piorar, se nada de relevante for feito. Sem reformas e sem estratégia de ataque aos problemas estruturais que nos atingirão nesta década e, mais intensamente, nas próximas, nomeadamente em função do envelhecimento da sociedade portuguesa, a crise social tornar-se-á inevitável e sem paralelo nos tempos da democracia.

Economista e Professor Catedrático da NOVA SBE