Regresso do serviço militar obrigatório? Sim ou Não?

Em debate, Francisco Proença Garcia, professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, com várias obras publicadas na área militar e geopolítica, e Marcos Perestrelo, ex-secretário de Estado da Defesa dos governos de António Costa e de José Sócrates, jurista e deputado.

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Francisco Proença Garcia: “É preciso pensar numa nova forma de serviço militar”

A pergunta é extremamente simples, mas a resposta é muito complexa. Depende sempre do contexto de segurança em que estivermos a falar. No atual contexto, devemos debater o modelo de serviço militar e as condições que são dadas a esse serviço militar, se ele deve ser obrigatório ou não para suprir as atuais faltas de recursos, quer financeiros, quer humanos. Mas, se o contexto de segurança se alterar – e o contexto de segurança na Europa tem-se alterado significativamente -, devemos pensar noutras modalidades de serviço militar, caso o atual modelo não consiga cumprir esses compromissos internacionais.
Sou a favor do serviço militar obrigatório, dependendo sempre do contexto de que estejamos a falar. Quando terminou, em 2004, o contexto era favorável para não haver. Neste momento, penso que podemos começar a pensar numa nova forma de serviço militar, sobretudo para a alteração securitária no centro da Europa. Temos fornecido carros de combate, munições, qualquer dia fornecemos aviões, e quando nos pedirem homens, se o atual modelo de serviço militar não cumprir, o que é que vamos fazer?
É isso que temos de começar a pensar. Não quer dizer que seja para implementar já, mas temos de pensar sempre no futuro. E se esse compromisso tivesse de ser assumido no imediato, nós não teríamos capacidade para assegurá-lo.
As Forças Armadas deveriam ser atrativas enquanto carreira. Neste momento, estão menos atrativas face ao grande desinvestimento, mas é geracional. Nos últimos 30 anos tem-se desinvestido significativamente na capacidade de retenção e na capacidade de atração. As pessoas servem o Estado, mas têm de pensar nas suas famílias. E entre servir nas forças de segurança ou nas Forças Armadas, o diferencial é significativo. A opção vai sempre mais para as forças de segurança do que para as Forças Armadas porque compensa mais financeira e socialmente. Aquilo que temos de fazer é dar, no mínimo, condições semelhantes. Para serviço idêntico, prestação de serviço à pátria idêntico. Isso não está a acontecer.
Os mecânicos dos F-16, por exemplo, quando lhes oferecem quatro ou cinco vezes o vencimento, vão-se embora. Vão trabalhar para o outro lado. Não estou a dizer que os vencimentos tenham que ter esse nível, mas têm de dar alguma dignidade à função. Tem de se olhar para a componente social e para a dos equipamentos e dar perspetivas de retenção, porque senão os jovens não passam à reserva ou à reforma, Aqueles das especialidades que depois têm capacidade de inserção no mercado de trabalho fazem abate ao quadro.

Marco Perestrelo: “Não há capacidade de receber 100 mil jovens por ano”

O modelo de serviço militar de cada país tem muito que ver com os objetivos e o posicionamento geoestratégico de cada país. O nosso serviço militar obrigatório durou até 2004. Foi o processo de transição da inércia que vinha do período da guerra. Hoje, com os objetivos que Portugal tem, com o nosso posicionamento geoestratégico, as alianças em que estamos inseridos e nas organizações internacionais de que fazemos parte, não faz sentido falar de um modelo de serviço militar obrigatório.
Portugal não se sente ameaçado no plano militar, nem tenciona ser uma ameaça militar para ninguém. O debate do regresso ao serviço militar obrigatório, nos diferentes países europeus onde está a existir, tem muito que ver com esse sentimento. Ou são países que se sentem ameaçados militarmente ou países que querem ameaçar outros militarmente, como é o caso da Rússia em relação à Ucrânia.
É muito importante desligar o debate sobre o serviço militar obrigatório que, como digo, tem que ver com objetivos e posicionamentos geoestratégicos e políticos da crise que vivemos hoje, ligada às dificuldades do recrutamento e da retenção dos militares. São debates que devem ser separados, porque as dificuldades que as nossas Forças Armadas têm hoje de recrutamento e de retenção de militares têm de ser resolvidas dentro do modelo que existe. O modelo de serviço militar obrigatório não responderá às necessidades que as Forças Armadas têm. Nem há capacidade para receber, todos os anos, 90 ou 100 mil jovens nas fileiras das Forças Armadas.
Mesmo um outro debate, que seria a função que o serviço militar obrigatório teria de consolidação de um sentimento nacional, de integração nos objetivos e nos valores do país, hoje é descabido. Não podemos ter a ilusão de que vamos resolver os problemas de desenraizamento dos valores comuns do país em 4-6 meses ou num ano de serviço militar obrigatório, se não os fomos capazes de os resolver em 12 anos de escolaridade obrigatória. Eventualmente, é aí que devemos intervir para resolver esses problemas.
Há várias escolas que integraram na cadeira de cidadania, os referenciais para a educação para a cidadania desenvolvidos pelo Instituto de Defesa Nacional, em parceria com muitas autarquias. Isso é uma componente interessante.
A preparação militar é outra coisa. Essa é para quem quer servir e fazer a carreira militar.

Francisco Proença Garcia: “Há municípios onde as instalações militares são a maior empresa local”

FPG — O atual modelo de serviço militar é bom, mas depois tem de se dar condições para que ele seja seguido. E não é com o serviço militar obrigatório que vamos suprimir essas faltas. Têm de ser de facto separadas as águas. Quais as condições que damos ao atual modelo de serviço militar? As perspetivas, a capacidade de retenção dos jovens e a possibilidade de carreira.

MP — É muito importante a questão da retenção dos militares nas fileiras porque, mesmo depois de os recrutar, há muitos militares que, numa fase muito incipiente da carreira, querem sair por razões de natureza financeira, mas não só; também por alguma desmotivação das condições em que o serviço é prestado. Quer no recrutamento, quer na retenção, os problemas são diferentes, quando estamos a falar da carreira de praças, por exemplo, ou da carreira de sargentos ou de oficiais. O problema maior hoje está, sobretudo, na carreira de praças, onde os vencimentos são mais baixos, as condições de exercício das funções são muito difíceis e onde há uma precariedade institucionalizada. Com exceção da Marinha, que tem um quadro permanente de praças, a Força Aérea e o Exército, não têm ainda esse quadro permanente de praças.

— Em relação ao serviço militar obrigatório, o custo de incorporação de civis, designadamente no atual contexto de quartéis (muitos deles ao abandono) será assim tão incomportável?

MP — Não faz sentido. Voltaria à questão inicial: que modelo de Forças Armadas queremos, para os objetivos geoestratégicos que o país tem? Neste momento, não sentimos nenhuma ameaça militar, nem pretendemos ser ameaça militar para ninguém. O modelo de Forças Armadas que temos e o contingente que está definido são cerca de 30 mil militares, altamente profissionalizados. As missões que as Forças Armadas hoje desempenham, o nível de tecnicidade e a sofisticação tecnológica dos equipamentos com que se opera requerem militares altamente profissionalizados. O mecânico da F-16 é um mecânico altamente especializado, um mecânico aeronáutico é altamente especializado, que tem, eventualmente, lugar em qualquer companhia do mundo de reparação aeronáutica.


FPG — Ou no cyber. Como é que se retém um rapaz do cyber se lhe pagar mil euros por mês? Ele vai rapidamente trabalhar para várias empresas portuguesas que têm de pagar a um nível internacional.

Marco Perestrelo: “É importante haver uma força de reserva de instalações militares”


— A componente que há pouco estava a introduzir, temos instalações militares praticamente ao abandono…

FPG — O problema das infraestruturas tem que ver com o dispositivo que nós adotamos. Ajuda a fixar populações no interior do território e a função do Estado é garantir a equidade da distribuição da população. Há municípios onde as instalações militares são a maior empresa local. Isso ajuda a reter. O dispositivo que existe pode ser reajustado e/ou reequacionado, mas serve. Agora, nós temos é que pensar: para que é que eu quero um regimento tão grande, por exemplo, na Madeira? Bom, quando há problemas de inundações ou catástrofes naturais, onde é que as pessoas vão ser alojadas? Essas instalações têm sempre um aproveitamento na área da proteção civil e na área educativa.
Imagine que a situação de segurança internacional se altera significativamente. Depois, onde é que vamos treinar? Tem de haver instalações para, de repente, fazer um recrutamento e um treino. Se for necessário, as instalações têm de estar minimamente preparadas para acolher 2-3 mil pessoas.
O serviço militar obrigatório, no atual contexto, não se justifica. Temos de começar a pensar é se isto tudo descambar no centro da Europa, como é que vamos resolver o problema? Não é com os atuais efetivos que temos que vamos cumprir as nossas obrigações.

MP — Quando foi a Covid, alguns dos doentes foram colocados em unidades militares. Essa função de reserva é muito importante.
Em fevereiro de 2010, houve umas grandes cheias na Madeira. Muita gente ficou desalojada e foram todos alojados precisamente nas instalações militares do exército do RG3 [Regimento de Guarnição] na Madeira, porque estava constituído como uma força capaz de receber… A ideia de haver uma força de reserva também é muito importante ao nível das instalações.

Marco Perestrelo: “As maiores dificuldades de retenção estão na carreira de praças”

O principal problema é de falta de praças. Não havendo recrutas e com o sistema a funcionar com voluntários, há mais oficiais do que soldados? Ou, na gíria popular, há mais chefes do que índios?
MP — Não, não há. É preciso ter em conta que o nível de qualificação atualmente necessário para o exercício de determinadas funções nas Forças Armadas já não é muito compatível com funções menos especializadas. Hoje, o nível de especialização e o nível de formação que é necessário para operar determinadas funções, aumenta a necessidade de ter, por exemplo, mais sargentos e oficiais. A pirâmide já não tem uma estrutura como tinha no século XIX.

FPG — Normalmente, olhamos para as unidades de infantaria, do combatente ao atirador, mas as unidades não são só de infantaria. Requerem mais especialização; logo, mais técnicos especialistas, mais sargentos e mais oficiais. No targeting, por exemplo, não é um rapaz que faz o serviço militar obrigatório que entra nessa tecnologia. Leva meia dúzia de anos de preparação. Depois, as pessoas querem ser reconhecidas funcional e socialmente. Por isso, há mais sargentos e mais oficiais.

MP — Um F-16, por exemplo, é uma unidade militar altamente sofisticada. Tem um comandante, um piloto, que é oficial, tem mecânicos, que são, provavelmente, sargentos, e tem não sei quantos praças. Provavelmente, numa equipa de um F-16 há mais sargentos do que outra coisa qualquer.
Não se pode estar a exigir a uma pessoa um nível de formação sofisticado e depois não lhe dar o estatuto correspondente. E isso acontece em inúmeras funções. Não é uma função indiferenciada. As Forças Armadas, hoje, não são um batalhão de infantaria.

— Na guerra “tradicional”, em que havia vários soldados, e, portanto, batalhões ou baterias, percebe-se que existia uma grande cadeia de comando. Agora é diferente?
FPG — Não é completamente diferente. Depende sempre do tipo de unidade de Forças Armadas. Se estivermos a falar de uma unidade de infantaria, é lógico que aí há mais soldados, um nível equiparável de sargentos e menos oficiais.
Às vezes, os média dizem que a pirâmide está invertida, mas não. A pirâmide é diferente porque as necessidades e a prestação de hoje têm de ser diferentes, Há menos praças, mas mesmo esses têm de ter alguma especialização.
Já não há ninguém com a quarta classe ou com o nono ano. Têm funções menores, mas com perspetivas de um dia terem funções melhores. A pirâmide não está invertida.

MP — As maiores dificuldades de recrutamento e de retenção estão na carreira de praças. Se olhar para a pirâmide, mesmo que hoje seja uma pirâmide deformada, falta mais gente na base do que nas estruturas intermédias. Apesar de tudo, no topo e na estrutura intermédia, ou seja, nos oficiais e nos sargentos, como há profissionais que fazem toda a sua carreira nas Forças Armadas, aí as oscilações são menores.
Na base da pirâmide, pelo menos de seis em seis anos, há uma grande rotação, que são aqueles que chegam ao fim do contrato.

FPG — É preciso depois dar capacidade de reter esses praças e dar-lhes perspetivas de carreira. As pessoas não entram para estar toda a vida na base da pirâmide. Todos nós temos aspirações, mesmo com a idade e com a formação que vamos tendo…

FPG: “Temos de mobilizar os jovens adultos que estejam na idade de combater”

— Se houvesse um conflito militar ou uma situação de emergência, o cidadão que tenha 30 ou 40 anos e que é chamado tem o direito de dizer não?
FPG — Se houver uma situação de emergência e uma mobilização, a lei prevê isso. Se houver mobilização, tem de ser incorporado e tem de treinar. É indiferenciado da idade, da situação profissional, mas isso são casos de exceção. Temos de ter capacidade de mobilizar os nossos jovens adultos, até aos 35 ou aos 40, que estejam na idade de combater, para ajudar a formação.
Agora, quando falamos de serviço militar obrigatório, temos de ver outras formas de os jovens prestarem serviço à sociedade.
Nós dizemos sempre que agora os jovens vão-se todos embora, depois de anos de formação em que investimos. Mas, ao longo da sua formação, podem prestar serviço à sociedade. Pode ser o serviço militar, de uma forma voluntária, ou outras formas de prestação de serviço à sociedade para compensar.


— De que forma, por exemplo?
FPG — Por exemplo, apoio aos mais velhos, nos bombeiros, na atividade social, mas têm de pagar, entre aspas, à sociedade, porque somos nós, contribuintes, que pagamos a sua formação.
É uma forma de eles, ao longo da formação, pagarem. É quase um serviço cívico, que não tem de ser serviço militar e que não tem de ser obrigatório. Mas, por exemplo, quando eles vão prestar serviço nos bombeiros, têm uma amortização das propinas, se forem criadas estas condições de benefício, de eles prestarem de uma forma voluntária algum serviço à sociedade que até pode ser um serviço militar.