Seca: Dessalinizar a água do mar é a solução?

Em debate, Joaquim Poças Martins, engenheiro e ex-secretário de Estado do Ambiente, e José Pedro Salema, presidente da EDIA.

Para combater a seca, é ou não viável investir em centrais que retiram o sal da água do oceano para abastecer as populações? Devemos apostar em ter, por exemplo, 30% da água vinda da dessalinização?

Joaquim P. Martins: “A dessanilização faz sentido no Algarve e no Alentejo”

A dessalinização é uma de seis soluções que temos para resolver os problemas de água em qualquer sítio do mundo. Cada país tem à sua disposição seis torneiras para obter água: água da chuva, água que vem de Espanha, a reutilização, a dessalinização, a água virtual (importação de água indireta, ou seja, quando se compra um quilo de carne estamos a deixar de usar, em Portugal, 15.000 litros de água) e a eficiência. Hoje em dia, conseguimos dessalinizar a 50 cêntimos o metro cúbico. Quem faz isso? Israel, Singapura, Austrália. É o valor a que as Águas de Portugal vendem a água aos municípios.
Em Portugal, a dessalinização faz sentido no Algarve, no Alentejo e não faz sentido em mais lado nenhum. É uma solução que tem de ser adequadamente aplicada; mesmo no Algarve só é precisa porque a água não está a ser bem usada porque estamos a usar água a mais, a viver acima das posses e vamos ter de nos virar para o mar.
Haveria outras alternativas, sim, mas penso que, neste momento, é inevitável, atendendo à capacidade de gestão, ter alguma dessalinização no Algarve. A central do Algarve é a primeira no continente. Há uma em Porto Santo, mas é pequenina e antiga. Temos de ver quais são as melhores experiências internacionais…
Antes da pandemia, dei uma volta por alguns sítios do mundo em que procurei como é que geriam a escassez em países mais ricos e mais secos do que nós.
Na Namíbia, bebiam água que foi esgoto (fazem isso há 50 anos); reutilizam água para beber . Na Austrália, dessalinizam 30% de água porque não estão dispostos a ter problemas como tiveram em 2017, com Bentleys e Porsches parados ao pé de fontanários para encher bidões. Decidiram construir dessalinizadoras, sem PRR nenhum, apenas pagas pelas tarifas. Mas as dessanilizadoras têm de funcionar: para a água custar 50 cêntimos o metro cúbico, têm de funcionar 24 horas por dia, 365 dias por ano.
Em Singapura, já fazem isso há imenso tempo. Em Israel, onde 90% da população é abastecida com água dessalinizada, separaram a componente agrícola da componente doméstica. Essa seria uma boa estratégia para Portugal.
Portugal não tem problemas de abastecimento de água nas cidades. À exceção de casos pontuais, designadamente o Algarve, Viseu e Bragança, devemos procurar que seja possível dizer, daqui a uns anos, que Portugal também não tem escassez de água nos campos. Neste momento, Portugal tem escassez de água nos campos; não tem nas cidades. Desde 2017, temos secas e ninguém tem falta de água exceto o Algarve, Viseu, Bragança e alguns núcleos muito isolados do Alentejo. E, para todas estas situações, há soluções.

José P. Salema: “Aproveitamos só 10% da água. Precisamos de mais Alquevas”

Portugal tem, nas primeiras torneiras referidas (na água da chuva e na água que escorre de Espanha), um recurso muito importante. Nós temos qualquer coisa com 45 a 48 mil milhões de metros cúbicos de afluências a Portugal. Às nossas bacias chega um volume que é cerca de 10 vezes maior do que o consumo anual. Nós aproveitamos apenas 10%. Será sempre nesta ordem de grandeza e depende, naturalmente, da secura ou da humidade do ano. Num ano mais húmido, essa percentagem diminui; num ano seco, aumenta.
Há importantes recursos superficiais por aproveitar. Um sistema de águas superficiais, como o Alqueva, consegue produzir água para os seus clientes a um custo em torno dos cinco cêntimos. Ora, isto é um décimo daquilo que as melhores dessalinizadoras do mundo são capazes de fazer. As dessalinizadoras no Médio Oriente ou no Dubai, em Singapura ou em Israel, têm uma escala muito grande, estão vocacionadas para volumes enormes e associadas a custos com eletricidade também muito baixos e só assim é que conseguem produzir uma água tão barata.
Em Portugal, a dessalinizadora que vamos ter no Algarve, em princípio, não conseguirá fazer tão bem. Se calhar, sairá a 80 centímetros ou a quase um euro por metro cúbico em termos de custo. Comparado com o custo de um sistema superficial é insuportável para o cliente agrícola.
Em Lisboa, em nossa casa, bebemos água e pagamos um ou dois euros por metro cúbico. É a menor das contas que temos em nossa casa, mas para a agricultura isto não é verdade. Para algumas culturas, a conta da água tem um peso muito significativo e não podemos dizer: “olhe, em vez de comprar a água a 5 cêntimos compra a 50 cêntimos” porque depois não vamos comprar os melões ou as cebolas ao mesmo preço no supermercado.
Há algumas grandes barragens ainda por fazer porque podem oferecer garantia de abastecimento plurianual, em que consigamos passar um período de seca de dois ou três anos. É de infraestruturas como o Alqueva que precisamos porque está preparado, quando está cheio, para aguentar o fornecimento completo, durante três anos. O projeto Tejo tem o seu Alqueva (Ocreza), onde há uma grande mãe d’água que regulariza o fluxo. Mas há outras. No Mondego, há uma barragem que ficou por fazer, em Girabolhos. Em Vila Nova de Foz Côa, por causa das gravuras, não fizemos uma barragem importantíssima para a regularização do Douro. Foi substituída pela Baixo Sabor e a Foz Tua… Há alguns sistemas que podiam ser utilizados e, eventualmente, conectados.

Joaquim Poças Martins: “Há ilusão de abundância. Água é gratuita, 90% dos consumos não são pagos, nem medidos”

Há uns anos houve alguns movimentos contra a dessalinização. Há algum lobby contra esta ideia? A dessalinizadora pode ser feita?
JPM — Os lobbies são legítimos. A água é uma questão política e quem tem de tomar as decisões tem de atender a todos os lobbies e depois decidir adequadamente. Há o lobby da dessalinização, há o lobby ambiental, há o lobby agrícola, há montes de lobbies. Aliás, em Bruxelas têm de estar registados e um problema que há em Portugal é que muitas pessoas falam, mas não fazem registo de interesses. Eu, já agora, quero fazer o meu registo de interesses no setor da água: nenhum. Ou seja, só utilizo a água que uso em casa, a opinião que expresso é a minha opinião e não estou ligado a outro tipo de interesse.
A dessalinização em Portugal, neste momento, para o Algarve é importante, mas é importante porque fomos incapazes (e vamos ser incapazes, nos próximos anos) de gerir a água de forma racional. Se geríssemos a água de forma racional, porventura não precisava de dessalinização porque Portugal tem água que chegue, é mais do que suficiente.
Há países muito mais secos do que nós e mais ricos, que gerem melhor água. Israel, por exemplo, Singapura… há outros sítios que são mais secos e que gerem melhor.

— Mas o que é que falha em Portugal nessa má gestão?
JPM — É uma coisa simples: é uma ilusão. Na água, há factos, há ilusões e há soluções. Temos uma ilusão de abundância. Para nós, Portugal tem muita água. A água é gratuita, quase ninguém paga nada pela água, 90% dos consumos não são pagos nem medidos. Temos 200 entidades gestoras que têm perdas acima de 20%.
Este país tem escassez e um país que tenha escassez, pelo menos mediria a água que consome. Já não digo pagar; estou a dizer medir porque aquilo que eu não meço, e claramente não pago, eu não poupo. Nós podíamos usar a água que temos de uma forma muito melhor. Tanto nas cidades como nos campos podemos viver com menos água.
Como não temos sido capazes de ser eficientes, vamos ter de recorrer a outro tipo de soluções e a dessalinização é uma delas. Temos outra que também não estamos a usar, que é a reutilização das águas residuais. As águas residuais em Portugal correspondem a cerca de 600 milhões de metros cúbicos por ano. É mais do que Alqueva e não estão a ser usadas; estão a ser lançadas nos rios e no mar. Já gastámos 70 cêntimos em cada metro cúbico dessa água; estamos literalmente a desperdiçá-la, incluindo no Algarve. Há imensa coisa que podemos fazer…

JPM: “Alqueva pode ser o maior lago artificial vazio da Europa”

— Até para regas de jardim. Parece que só agora é que se descobriu que a água das ETAR (Estação de Tratamento de Águas residuais) pode ser usada para regas…
JPM — Isso já se sabe há muito. Concretamente no Algarve, há coisas simples que podiam ser feitas.
Primeiro, campos de golfe regados com água reutilizada. Segundo, piscinas: encham com água do mar. Terceiro ponto: os aquíferos, nem pensar deixá-los ir abaixo de determinar de nível. Seja em nome do que for, isso não pode ser admitido.
Há trabalhos que permitiram dizer que, em 2023, não há escassez de água em casa das pessoas. Caso contrário, em 2023, estaríamos aqui a discutir se temos água em casa das pessoas ou não.
Portanto, esse não é um problema. Quero acreditar que é possível, dentro de um ano ou dois, dizer que também não há escassez nos campos.

José P. Salema: “Este ano, com os preços atuais, o azeite de Alqueva pode valer mil milhões de euros”

As tarifas e as culturas no Alqueva são um tema sensível? Alguns agricultores poderão não conseguir suportar aumento da tarifa, mas ela está baixa na maior parte dos municípios?
JPS — O valor cobrado em Alqueva e a referência que utilizei é apenas para os custos de operação. Se contabilizarmos os custos de investimento, duplicamos esse valor. Mas há também de considerar, num empreendimento de fins múltiplos, como é o caso do Alqueva, os efeitos que foram alcançados na economia.
Houve um desenvolvimento económico extraordinário. Por exemplo, o investimento público estima-se que tenha um multiplicador de dois no privado. Os 2500 milhões que fizemos de investimento público, pelo menos o dobro foi o que fez o setor privado para beneficiar daquele novo recurso, não só na agricultura, mas na agroindústria, no turismo, na produção de energia… há investimento privado que acompanha.

As tarifas e as culturas no Alqueva são um tema sensível? Alguns agricultores poderão não conseguir suportar aumento da tarifa, mas ela está baixa na maior parte dos municípios?
JPS — O valor cobrado em Alqueva e a referência que utilizei é apenas para os custos de operação. Se contabilizarmos os custos de investimento, duplicamos esse valor. Mas há também de considerar, num empreendimento de fins múltiplos, como é o caso do Alqueva, os efeitos que foram alcançados na economia.
Houve um desenvolvimento económico extraordinário. Por exemplo, o investimento público estima-se que tenha um multiplicador de dois no privado. Os 2500 milhões que fizemos de investimento público, pelo menos o dobro foi o que fez o setor privado para beneficiar daquele novo recurso, não só na agricultura, mas na agroindústria, no turismo, na produção de energia… há investimento privado que acompanha.

— Mas o que se pode questionar é o tipo de cultura… ou não?
JPS — Isso podemos questionar. Por exemplo, o olival é muito criticado. Ora, o olival é feito na Península Ibérica há milénios; não é há décadas, é há milénios. É uma espécie mediterrânica, é autóctone da região e está perfeitamente adaptada. As necessidades hídricas da oliveira são das menores que nós temos entre as culturas com maior representatividade. Outra que tem menores necessidades hídricas é a vinha; outra mediterrânica e adaptada.
Questionar que Alqueva seja utilizado para fazer azeite, eu tenho dúvidas em compreender. Qual é o problema de sermos especializados na produção de azeite? Isso é positivo. Termos um saldo positivo na balança comercial do azeite é extraordinário. Este ano, aos preços que o azeite está, o azeite de Alqueva pode valer mil milhões de euros.
Também há um estudo que mostra que a contrapartida nacional, isto é, o esforço do orçamento nacional foi recuperado integralmente só na fase de construção em postos adicionais e em contribuições sociais do trabalho. O investimento foi grande? Sim, está pago há que tempos e continua a gerar receitas importantíssimas.


JPM — Relativamente a Alqueva, não tenho nenhuma dúvida (e nunca tive) que Alqueva é um bom investimento e ainda bem que foi feito. Questiono é se não poderia estar a ser usado para outro tipo de coisas e para contribuir mais para a segurança alimentar. A agricultura vale 1,5% do PIB; o Alqueva vale 600 milhões de receitas, talvez com um contributo para o PIB de cerca de 300 milhões.
Eu fiz o meu liceu em Évora e vivi no Alentejo durante muitos anos; lembro-me o que era o Alentejo sem Alqueva. Hoje está diferente e está melhor. Não concordo que se organize um país à volta de um setor agrícola e não há espaço para mais Alquevas. A segurança alimentar do país é sobretudo dependente dos cereais, que nós não temos, e Alqueva não está a produzir cereais. Precisávamos de cinco Alquevas para sermos independentes em termos de cereais, mas não haveria agricultores que fizessem cereais àquele preço porque não é rentável.
Isso leva-nos ao preço da água. Era bom que houvesse uma taxa moderadora para que o consumo de água passasse para metade ou para um terço. Com isso, evitávamos a situação que se está a passar agora em Espanha, que vive acima das suas posses em termos de água, tem situações de escassez terríveis. Quanto às perdas, acho totalmente inaceitável que haja perdas que chegam aos 80%.

JPM: “Não se vai buscar água ao Douro para trazer para sul! Nunca será feito.”

Quanto às perdas no país, como é possível captar água, tratar e transportar até à torneira e, pelo meio, perde-se 30, 40, 50%? Como é que isto não é uma prioridade nacional?
JPM — Isto é água não faturada. A tal água que nunca chega a casa das pessoas tem duas componentes: os roubos de água e as não faturações. O que é a água não faturada? É a diferença entre a água que vou buscar e aquela que faturo. No setor agrícola, esse valor é 90% porque, em Portugal, só se faturam 450 milhões de metros cúbicos de água, que é até menos do que aquilo que tem Alqueva. Ninguém factura e a utilização é 10 vezes maior. Usando o mesmo critério para o setor agrícola (que consome dez vezes mais do que o doméstico), as perdas são de 90%.
No setor doméstico, é perfeitamente possível, em dois a três anos, passar a perdas a 10% ou 15%. Isto faz-se com medidas de gestão. Para chegar a 20%, não é preciso gastar dinheiro. O presidente da Câmara de Faro, numa recente intervenção, dizia: “Eu não preciso dinheiro a fundo perdido; deixem-me só eu poder pedir dinheiro ao banco para resolver os meus problemas de água como peço para a habitação porque isto paga-se com pêlo do mesmo cão.” Ou seja, é possível chegar a menos de 20% das perdas sem gastar dinheiro.
No setor público, o abastecimento público pode melhorar, mas todos em Portugal temos de melhorar. Para encontrar soluções, a água une. Todos gostamos do país, estamos num país fantástico. Temos um país em que a água chega para todos, mas não me venham dizer que se vai buscar água, por exemplo, ao Douro para trazer para o sul! Isso não vai acontecer nunca porque é de tal maneira tolo que nunca será feito…

— Nem em situações extremas?
JPM — Não há água no Douro Internacional. Perguntem às pessoas lá. Se vamos fazer um transvase, sejamos ambiciosos. Não paremos no Douro porque não tem água suficiente; vamos para o lago Genève.
Se estamos a falar de uma solidariedade norte-sul, para haver um transvase tem de haver um sítio onde haja água a mais. Em Trás-os-Montes há água a mais? Essa água, se fosse transportada para sul, custava dezenas de cêntimos o metro cúbico. E vai comprar com os três cêntimos em Alqueva? Quem vai pagar a diferença? Vão ser as pessoas? Não há dinheiro público, é dinheiro de impostos.
O transvase norte-sul, do ponto de vista ecológico, é um disparate completo, já não se faz em 2023, em democracia. Os grandes transvases foram feitos em ditadura. Se usarmos melhor a água, conseguimos manter o nível de vida das pessoas. Não podemos resolver os problemas do futuro com as soluções do passado