Governo pode mudar símbolos nacionais? É tabu?

Em debate, Carlos Coelho, designer e presidente da Ivity Brand Corp., e também Paulo Fidalgo, especialista em marcas e presidente da agência Marketividade.

O Estado pagou 74 mil euros a um designer para mudar a imagem gráfica da República, mas o novo símbolo está a gerar controvérsia. Afinal, é tabu mexer em símbolos nacionais? Em debate, Carlos Coelho, designer e presidente da Ivity Brand Corp., e também Paulo Fidalgo, especialista em marcas e presidente da agência Marketividade.

Carlos Coelho: “Se não se mexer nos símbolos, não há evolução”

Não é tabu mexer em símbolos porque senão não haveria evolução. A questão não está na vontade de olharmos para aquilo que representa o país e encontrarmos uma forma mais contemporânea de o representar. A questão está na forma como o fazemos. Uma marca pública, uma marca de um país, não é um interesse particular, é um interesse coletivo, é um interesse de todos e, portanto, o processo terá de ser conduzido com (não sei se) um consenso e com uma forma mais participativa.
As razões pelas quais se fazem não podem ser de natureza técnica (e as invocadas não são sequer tecnicamente muito válidas), mas sim de uma intenção de fazer com que o país possa, de facto, mostrar a atualidade que tem. Não acho que seja tabu. Acho que, se houver algum tabu, é que estes projetos sejam feitos em tão secretismo e de uma forma tão pouco participada.
Aquilo que foi dado saber é que a ideia é simplificar. E, portanto, a simplificação resulta num minimalismo com uma simbologia muito básica, muito primitiva. Essa não é uma razão para fazer uma marca.
A simplicidade não é, por si, uma intenção. Se eu tenho um país que está simplificado, então eu vou representá-lo de uma forma simples. Não é o caso. E, portanto, o caso é que há a expressão de um designer, que conheço e que prezo, que tem uma forma minimalista de olhar para os projetos que faz (é autor do projeto Porto.) e fez Portugal, ponto…
Basicamente, foi o que ele fez. Foi olhar para o país com o seu olhar, que é legítimo e é respeitável, mas que não corresponde àquilo que deverá ser, no meu entender, a evolução que devíamos ter dos símbolos. Que merecem discussão, mas merecem não ter este tipo de polémicas, e serem alguma coisa que nos represente.
As coisas não têm de permanecer estáticas, mas têm de ser feitas com o cuidado que exige uma causa pública, que não é a mesma coisa que o interesse particular.

Paulo Fidalgo: “Deve ser tabu e um obstáculo ao capricho e à tolice”

Sim, deve ser tabu. Devemos sacralizar o suficiente para criar um obstáculo poderoso ao disparate, ao capricho, à tolice e à facilidade. É isto que subjaz nesta discussão, que exprime exatamente a falta de tabu. Alguém acha que a bandeira nacional ou o símbolo representativo da república pode ter um autor? Isto não é marca, isto não é nada, isto é um capricho sem nenhuma função. As marcas não são desenhos, as marcas são um complexo de signos que representam para as pessoas qualquer coisa que tem interesse e significado. A marca tem de estar na cabeça, no coração das pessoas. Não é na prancha do designer.
Em primeiro lugar, há uma questão de legitimidade. Há uma confusão na governança em Portugal que não sei como é que começou. Não há ninguém no Estado que tenha o poder de fazer. Isso não existe. O que eles têm é o dever de fazer. Toda a ação política se baseia numa legalidade. A minha primeira pergunta é: quem é que encomendou isto? Com base em quê? Em termos de legitimidade, isto não é possível fazer-se, porque há um diploma legal que estabelece algumas regras para os símbolos nacionais. Ou isto é um símbolo nacional e está ao abrigo desta previsão legal, ou não é um símbolo nacional e é outra “macaquice” qualquer que nem sequer dá para discutir.
Depois há uma outra questão mais substantiva, mais importante na prática, que é a utilidade. Em marcas, há um princípio básico: aquilo que não soma, subtrai. Aquilo que não acrescenta, tira valor. Há uma simbologia de partida, seja ela qual for. O que é que esta acrescenta? Que significados novos, mais ricos e mais colados ao produto, que neste caso é Portugal, traz? Não se percebe.

Carlos Coelho: “É válido que um Governo se queira expor de forma mais contemporânea”

— Será que haveria uma necessidade de mudar agora? Porquê?
Carlos Coelho — As necessidades de mudanças não são funcionais. Nós mudamos ou fazemos evoluir as marcas como uma forma avançada de evoluir a atitude. E, portanto, considero que pode ser válido que um Governo, que um ciclo da República, se queira expor de uma forma mais contemporânea. Não com esses argumentos muito básicos de que o digital agora precisa de formas mais simples e que tem de reduzir, etc.

— Há aqui outra questão, que é a nova imagem mais inclusiva, plural e laica. O que é que isso significa?
CC — Isso não significa nada, do ponto de vista do resultado concreto. Agora, é legítimo que, se qualquer um de nós tivesse essa responsabilidade de gerir um país, que eu quisesse que a imagem pudesse evoluir em relação àquilo que é a sua história. Quando nós olhamos para a história, a história é evolução. Sempre que nós evoluímos, estamos a escrever um capítulo dessa história. Não estamos a escrever a história inteira. Temos de ler o passado e dizer: “o que é que eu vou inscrever aqui nesta página, ou neste capítulo, que faça sentido na história? Vou retirar símbolos ou vou colocar outros, vou alterar as cores?

— Mas, nesse caso, pode haver também um pressuposto ideológico ou político-ideológico?
CC — Há sempre. Tenho sempre muita gente a chatear-me sobre estas coisas. Tenho um amigo particular que dizia que eu tenho de pegar nisto da bandeira, porque a bandeira atual é maçónica e não tem nexo… E, portanto, há sempre uma ideologia por trás.. Eu acho que não há tabu. E, precisamente, por não haver tabu, é que deve ser uma coisa mais transparente. Deve ser uma coisa para mostrar ao que vem. E não fazer alguma coisa que é, aparentemente, uma fantasia, e, portanto, é uma expressão visual da República de Portugal fantasiosa, mas que na prática a vai sobrepor a todos os outros símbolos.

– Pegando precisamente neste argumento de ser“mais inclusiva, plural e laica”. Há aqui um pressuposto de tentar afastar e renegar uma série de factos da História?

Paulo Fidalgo — Isso é a expressão paradigmática de uma nova ideologia, que é o wokismo, e que, para mim, tem o seu pilar argumentativo nesta nova disciplina que existe, que é a epistemologia do ponto de vista. É uma tentativa de organizar o conhecimento na base de opiniões. Ou seja, não há verdade, não há mentira. Há apenas opiniões. E, desse ponto de vista, a bandeira de Portugal tanto pode ser quadriculada, como azul às cores, como um barrete encarnado, porque é tudo um ponto de vista.
Eu acho que isso deve ser tabu. Se nós entramos num exercício onde quem está a governar pode exprimir-se, usando o nosso dinheiro, para nos tornar mais inclusivos, mais isto ou mais aquilo, a seguir há de ser mais azul, depois mais cor-de-rosa, depois mais batatas fritas, depois mais burros de Miranda. Não há um limite.
Eu não sou um conservador no sentido que não se poder mexer, mas deve haver um obstáculo conceptual. O que é que são marcas? Em Portugal, que marcas é que nós temos que cumpram a sua função? A marca tem de ter uma função, tem de ajudar a vender produtos e serviços. Para ajudar a vender, tem de os marcar, no sentido de os identificar, mas também de os carregar de valores. Em Portugal, há pouquíssimas empresas grandes, com significado, que tenham necessidade de todos os dias estar ali a tentar vender. As grandes marcas, aquelas que têm grande notoriedade em Portugal, ou foram monopolistas, ou têm mercados regulados, ou são rentistas. E, portanto, as marcas são a expressão daquilo que se pode chamar o corporate pride (orgulho corporativo). Eu tenho dinheiro, eu sou grande e, portanto, agora vou pintar-me de modernaço.
Nenhum destes pressupostos acontece nas marcas públicas. Oxalá houvesse um tabu porque, como não existe esta forma primária de legitimação pelo sucesso, tem de haver outros critérios. Tenho de cumprir primeiro um requisito que é o da utilidade. Há aqui muitas entidades que parecem sinónimas, mas não são. Uma coisa é pátria, outra coisa é nação, outra coisa é Estado, outra coisa é governo, outra coisa é ministério. E tudo isto se exprime também em termos simbólicos. Deveria haver uma arquitetura de marca em que, naturalmente, um serviço público até pode ter um logótipo, mas tem de estar em coerência com o sistema. Um ministério não é uma entidade autónoma, faz parte do Governo, da República Portuguesa e do Estado de Portugal.
É esta incoerência que se agrava cada vez que, por inspiração ocasional, alguém aparece a fazer qualquer coisa. Claro que há a autoria do design, mas o designer não é a marca. Nós podemos fazer desenhos e pintar as paredes todas com desenhos e aquilo nunca se transformar em marca. É decoração, mas não é marca. A marca tem de passar para os consumidores, tem de passar para os destinatários e eles têm de a assumir.
Do ponto de vista da correlação entre o peso que o desenho tem e os significados que lhe atribuímos, estamos longe de ter alguma coerência nesta solução. Desde logo, as cores que lá estão, têm realmente uma origem supostamente maçónica, numa alteração de regime.Foi uma maneira de quem, na altura, assumiu a autoria dizer “acabou a monarquia, não queremos mais reis, não queremos mais velhos regimes, queremos um tempo novo”. E marcaram-no de determinada maneira. Não é sagrado, aquilo foi feito por gente, portanto, é possível rever, mas não sem um processo específico de revisão. Não é possível chegar à esfera armilar, que tem uma determinada proporção relativamente às cores, e dar-lhe uma preponderância e fazer um círculo que, de alguma maneira, subtrai importância ao resto dos elementos. Também não é possível chegar lá e dizer “eu não gosto de castelos e esta coisa dos católicos e dos cristãos também não está com nada, toca a tirar”.
Qual é o significado do que lá ficou? Retirar não é uma forma de inteligência. Uma forma de inteligência é compreender o que lá está e fazer evoluir.
Aquilo ofende? Bem, primeiro falta provar. Não é uma sensibilidade pessoal, isso é conversa de taberna. É preciso compreender e depois fazer uma reflexão apoiada em critérios técnicos e dizer: “se calhar vamos fazer evoluir isto. Muito bem, então, o que é que nós queremos acrescentar? O que é que nós queremos substituir? Como é que isto evolui?” . O que não podemos é ser confrontados com interpretações individuais sobre a história, sobre os significados-âncora e sobre os valores pilares da marca.

Paulo Fidalgo: “Esta mudança é a expressão da nova ideologia que é o wokismo


CC — Se há alguma marca que temos valiosa no país, é a marca do país, porque é aquela que poderá acrescentar ou retirar valor a todas as outras marcas. Isso significa que este tema deveria ser tratado ao mais alto nível.
Por exemplo, tenho apresentado em algumas conferências um gráfico de produtividade que coloca Portugal em relação à Alemanha numa posição muito inferior. Uma das coisas que digo é: “isto é simples, não é porque os portugueses trabalham menos, é porque aquilo que um português faz numa hora, vale menos do que aquilo que um alemão faz numa hora. Vale menos pela qualidade percebida, não é pela qualidade intrínseca. O que é a qualidade percebida? É igual à marca, no sentido de que qual é o valor que alguém vai atribuir para poder comprar uma coisa.
O país, no seu todo, é gerido com uma marca, mas uma marca de um país não é uma marca comercial, no sentido estrito do termo. É uma marca coletiva e, sendo uma marca coletiva, não tem um diretor de marketing, não somos todos diretores de marketing. Todos podemos construir ou destruir.
Não está na Constituição e não está nas constituições das democracias uma responsabilidade, nem do governo nem da presidência, de tratar destes temas, porque são temas novos.
Hoje as guerras, infelizmente, fazem-se ainda com armas, mas as guerras civilizadas, do ponto de vista económico fazem-se com marcas. E, portanto, temos de ter um cuidado com a marca do país que permita que ela acrescente valor aos nossos produtos. Não sendo tabu, de todo, tem de se modernizar, mas simplificar a história do país a um minimalismo que não faz parte da nossa natureza é um erro profundo.

PF: “Os símbolos também servem para integrar novos portugueses”

PF — Estas formas de mudança ou de intervenção sobre a marca são puramente administrativas. Não têm ligação a coisa nenhuma. Há um senhor holandês que tem trabalho académico bastante fundamentado sobre as marcas país e tem, aliás, sido conselheiro de vários países. Uma das coisas mais óbvias que ele descobriu e que nós também já sabíamos, é que não há marca sem notoriedade.
A crise financeira que atravessámos teve um valor incalculável do ponto de vista da notoriedade para a marca. Portugal foi, pela primeira vez durante um período largo, notícia nos principais media internacionais, porque estávamos em bancarrota. Aparentemente há uma contradição. Então isto cria valor ou desvalor? Na verdade, criou valor. Criou valor de notoriedade. Valeu mais do que não sei quantas campanhas que nós possamos fazer. A questão é: se houver uma noção do que é a marca e se houver uma responsabilidade no Governo sobre a condução do sistema de marcas, se calhar esse pode ser um bom pretexto para criar um fluxo de ideias e de comunicações que rentabilizam esse investimento involuntário, criando valor. A verdade é que o turismo em Portugal explodiu por causa disso. Ou, pelo menos, em parte por causa disso. Porque a bancarrota trouxe um atributo que era o atributo de preço. “Os tipos estão à rasca, logo são baratos”. E encheram-nos.

CC — Isso é o que é válido para todos os países. A notoriedade dos países faz-se pela profundidade das notícias. As notícias normalmente são negativas. A Islândia tem sucesso no turismo e teve um vulcão.

PF — Ou seja, não é um tema administrativo. Não é mudando o desenho.

CC — Não é um tema administrativo. Esses são os fatores de não gestão. Há uma diferença entre notoriedade e valor. Eu posso ser muito conhecido por fazer asneiras. Criou notoriedade, baixou o valor. Teve sucesso porque era mais barato.

PF — Isso já não é verdade. Estou a dizer que acrescentou valor na área do turismo. Criou uma perceção de preço e de necessidade que trouxe as pessoas.Aliás, vê-se isso hoje na cultura digital. Vês aí pessoas que não respeitas porque não lhes reconheces inteligência nem nada, mas elas têm um milhão de seguidores.

CC — Seria uma coisa para outro tema. Eu não consigo perceber o que é criar valor num país que não cresce há 20 anos. Não entendo. Acho que tem criado valor para uma série de coisas, mas não se manifesta na prática. Isso não concordo mesmo. Acho que criou fluxo, notoriedade, trouxe pessoas, cosmopolitanismo, mas ainda não trouxe valor.

PF — Resolvemos um problema financeiro.

CC – Não é financeiro. É mesmo uma questão de perceção de trabalho de marca. É quanto é que valem as coisas que estão marcadas com a nossa bandeira, que estão marcadas com Portugal. O que é que isso significa? Nós temos mesmo de trabalhar o significado e o valor de Portugal. Este tema não deve ser tabu.

PF — Isso estou de acordo. O tabu aqui é meramente instrumental.
Estes chamados símbolos nacionais, além da proteção legal, têm outra função, que é serem uma espécie de símbolos também para a integração dos novos portugueses.
Eu estou disponível para trocar de símbolos por outros aos quais reconheça o mesmo tipo de representação. Mas , o que é que nós dizemos a um senhor que veio do Sri Lanka, que está a conduzir um Uber e que agora até é português? Ou a um brasileiro ou a uma família de brasileiros que vieram e querem ser portugueses? Há aqui uma confusão mental que nunca mais vai ser bem resolvida.
Porquê? Porque nós não temos nada para lhe oferecer, não temos significados. As coisas têm uma continuidade. As pessoas podem aceitar ou rejeitar, mas têm de compreender. E não é retirando o significado que nós criamos um quadro mental e emocional para receber novos portugueses.
Os novos portugueses, que eu muito aprecio, a quem agradeço o trabalho, têm de ser integrados, porque se não forem integrados, um dia desses andamos a discutir outras coisas mais complicadas.
Agora, o que é que isto tem a ver com o logótipo? Tudo, porque a falta de reflexão sobre as coisas é que depois dá origem a vazios de mercado que trazem aqueles que gritam mais, aqueles que falam mais alto, aqueles que ameaçam mais e nós não queremos isso.
Queremos um país de pessoas inteligentes, de pessoas que podem programar a sua vida para os seus filhos, para a sua própria permanência neste território. São os portugueses que precisam de Portugal; não é Portugal que precisa dos portugueses. Portugal não existe sem portugueses. Portanto, nós temos de defender os portugueses neste sentido mais global. Sim, inclusivo. Mas não é com uma epistemologia do ponto de vista em que cada um tem um ponto de vista.