As receitas para a despesa do Estado

O que queremos para o Estado? A eficácia recente ou a justiça incómoda da transparência?

Dedicamos o último artigo a demonstrar que o melhor modelo para a determinação das funções que atribuímos ao Estado consiste na alocação da despesa pública. É através dela que o Estado desempenha as suas funções políticas, soberanas, económicas e sociais.
Optar por uma certo montante e mix de despesas é optar por um determinado modelo ideológico de Estado e isso deveria ser o melhor contributo do debate orçamental.
Este foco na despesa, essencial à boa governação, não nos poderá, nem deverá, desconsiderar a preocupação com a receita. Primeiro, porque toda a despesa tem de ser financiada; isto é, toda a função do Estado tem de ser paga. Segundo, porque o modelo de financiamento da despesa pode tornar uma função justa e necessária numa função injusta e obscura pelo simples efeito do modelo de financiamento.
Vamos olhar para a justiça relativa do modelo da receita, como forma de avaliar a prioridade dos serviços prestados pelo Estado.
A receita mais justa é o preço do serviço pago pelo seu utilizador. Este princípio denominado utilizador/pagador tem a vantagem de fazer incidir o custo apenas sobre quem utiliza, evitando assim que os não utilizadores o paguem. O Estado presta inúmeros serviços que podem ter preço. A educação, a saúde, a mobilidade e até a segurança são serviços personalizados que podem ser “preçados”.
Nalguns casos, o preço poderá ser demasiado alto (é o caso da saúde ou da educação), o que justificaria que só parcialmente o utilizador o deveria pagar. Noutros casos, só em certas situações é possível “preçar” (é o caso do policiamento de eventos desportivos ou musicais versus o policiamento geral). Em todos estes casos,deveríamos “preçar” até ao limite socialmente aceitável para não deixar para um modelo mais injusto o custo do serviço público.
Ora, nos últimos anos, foi exatamente o contrário o que se passou. O fim generalizado das taxas moderadoras e a redução das portagens, por exemplo, visaram transferir para outro modelo de financiamento custos incorridos neste serviço personalizável.
Uma segunda solução de financiamento é o custo ser suportado pelo utilizador beneficiário. Isso é particularmente útil quando não é possível identificar o utilizador, mas apresentar um “proxy” de utilização. É essa a ideia base da maior parte das contribuições sociais, mas também é isso que acontece com algumas receitas consignadas como o caso da CSR, onde o consumo de gasolina ou diesel suportava os custos com a rede de estradas nacionais.
O racional consiste em assegurar que quem mais gastava combustível era quem mais beneficiava deste serviço público de infraestrutura de mobilidade. Não sendo perfeito, sempre seria melhor que atribuir esse custo indiscriminadamente. Nos últimos anos, este racional perdeu força, quer pela incorporação da receita da CSR no Orçamento, quer pela sua não aplicação aos veículos elétricos, quer até pelas dificuldades do conceito na legislação comunitária. Estes custos tenderão assim a ser suportados por outras receitas. Mesmo as contribuições sociais que cresceram, cobrem hoje menor percentagem das respetivas despesas.
A terceira solução, já não atende à ligação entre serviço e beneficiário ou utilizador, mas baseia-se na capacidade contributiva do cidadão. É o princípio do utilizador/contribuinte.
É muito mais injusto, mas assenta numa ideia racional de que se alguém tira para si rendimento do trabalho ou do capital investido não só tem mais deveres com a sociedade como retira maior proveito dela. Logo, deve contribuir mais para o financiamento desses custos. Daí que estes tipos de impostos (diretos), em muitos casos, admitam taxas progressivas que penalizam os maiores rendimentos.
Este tipo de receita serve para cobrir despesas/funções do Estado que, por alguma razão, não foram pagas nem pelo utilizador (a portagem que foi reduzida ou a propina não atualizada) e serve para cobrir despesas não pagas pelo beneficiário (manutenção de estradas não pagas pelos camionistas ou automobilistas) e que deverão de ser pagas pelos contribuintes em função dos seus rendimentos.
Nos últimos anos, a receita dos impostos diretos foi perdendo importância relativa representando em Portugal apenas 27,4% da carga fiscal contra uma média europeia de 33.6%. E a redução fiscal que se anuncia para 2024 ainda reduzirá esta percentagem.
Por fim ,temos a tributação indireta como forma de cobrir a despesa do Estado. A menos transparente, mas a mais eficaz. A que tributa tudo por igual. São os impostos indiretos que afetam o consumo, que oneram transações ou que incidem sobre patrimónios.
Neste caso, a única forma de descriminar já não é o rendimento mais o bem possuído, transacionado ou consumido. Sendo o mais eficaz dos modelos de financiamento das despesas do Estado, este é seguramente o mais injusto pelo seu afastamento entre as funções financiadas e o seu modelo de financiamento. Aqui, o comprador do peixe paga a insuficiência do pagamento da portagem, permitam o exagero do exemplo.
Ora, a receita dos impostos indiretos, não só tem crescido nos últimos anos, mas já representa 42,9% do mix da receita fiscal contra 33,5% da média europeia, tornando Portugal o quinto País com maior carga fiscal indireta da Europa. E este valor vai agravar em 2024.
Este é o retrato das tendências para as receitas do Estado, nos últimos anos. Uma clara opção pela eficácia em detrimento da justiça relativa. Preferir o utilizador/contribuinte ao utilizador/pagador. Alargar a receita indiscriminada, reduzindo o custo do serviço. Foi uma opção ideológica, cheia de pragmatismo e até populista, onde a gratuitidade aparente transforma o cidadão num mero contribuinte. Como seria de esperar, a solução foi eficaz. Como seria de esperar, as funções do Estado foram desvalorizadas.
Talvez seja tempo de parar para refletir. O que queremos para o Estado? A eficácia dos últimos anos ou a justiça incómoda da transparência? O embuste da gratuitidade ou a coragem na alocação dos custos? Veremos.

Gestor e ex-CEO do Novo Banco