O pecado original do investimento público

Os incentivos apontam para a máxima distribuição da riqueza atual em vez da poupança.

Dedicámos os últimos artigos a reflexões sobre o debate orçamental. Seria estranho não abordar separadamente o investimento público. Como rubrica contabilística, o investimento público só nessa altura é recordado. Depois do orçamento é imediatamente substituído pelos casos concretos sejam estadas ou hospitais, sejam barragens ou aeroportos.
Pode parecer estranho que em sistemas cujos governos operam sobretudo sobre promessas e expectativas de futuro não se dedique mais tempo a discutir os montantes de recursos que se alocam a esse futuro e as expectativas de retorno que se espera desse esforço. Só que isso implicaria criar um sistema baseado na avaliação do retorno do investimento e não no montante investido. É aliás o que acontece no domínio privado onde os gestores são avaliados pelo que criam para o futuro e não apenas pelo que gerem no presente. Aliás o investimento no domínio privado não é um custo do ano, mas uma responsabilidade amortizável.
Não é assim no domínio público.
Claro que no domínio público sempre se poderá dizer que as opções de investimento se baseiam em razões estratégicas. Mas mesmo as razões estratégicas são passiveis de mensuração. Claro que se poderia dizer que o investimento público segue critérios políticos e não financeiros. Mas mesmo por critérios políticos seria importante avaliar o custo de oportunidade que uma opção política implica no abandono de outra qualquer prioridade.
Não, infelizmente o principal motivo para a falta de aprofundamento sobre o retorno do investimento público reside nas normas de contabilidade pública de caixa, que teimam em considerar investimento despesa do ano. Esse modelo contabilístico, ainda que com diferenças para a contabilidade nacional e com indícios de mudança mais recente, mantêm o estranho conceito público que dinheiro investido é dinheiro gasto.
O resultado dessa contabilização tem sido óbvio.
Primeiro, todo o sistema de transparência centrou-se na correção da despesa e não na avaliação do retorno. As regras públicas de contratação foram-se apurando para validar o gasto imediato e não o retorno esperado. Adjudicar pelo preço mais barato é a regra e a ponderação de outros critérios nunca permitem o abandono do princípio do menor preço. E mesmo o efeito de follow up que se realiza felizmente, poucas vezes compara os benefícios concretizados versus os benefícios previstos.
Segundo, levou à constante procura de formas de contornar os limites ao endividamento orçamental da despesa através da desorçamentação (criação de empresas pública e organismos autónomos que mais não são que direções do Estado). É por isso que, ao contrário do que seria natural, estas situações sejam mais comuns mais em atividades de investimento do que em atividades de caráter concorrencial com a atividade privada. É o exemplo das PPPs.
Terceiro, implicou uma sobrevalorização da avaliação do investimento inicial (capex sobrevalorizado) e o esquecimento da avaliação das condições da operação (opex subvalorizado). E se esta regra funciona para custos diretos, tornou-se quase impossível de determinar para externalidades de outra índole. Por exemplo a proximidade ou nacionalidade das empresas adjudicantes deixou de ser critério por muito que tenha imenso valor para a estabilidade de um País ou região.
Quarto e talvez o mais importante fator, passou a ser o total foco público na discussão do custo do investimento e um total alheamento da avaliação do seu retorno. E isso não é um detalhe é um pormaior no dever político do Estado explicar como aloca os seus recursos numa ótica de solidariedade geracional.
Se perguntarmos a um português quanto custa o TGV ou o novo Aeroporto ele responderá com recurso a qualquer recorte de imprensa. Se o questionarmos sobre quanto se espera de retorno desses dois investimentos ele não fará a mínima ideia. E mesmo que procure nos estudos de custo benefício que sempre os há, ele não conseguirá ter qualquer avaliação realizada 5 ou 10 anos após o investimento realizado o que sempre poderia separar o trigo do joio e esclarecer muitos dos responsáveis por decisões então tomadas.
Não é assim no investimento Privado. Este não afeta as contas do ano e apenas afeta as futuras por efeito das amortizações. O que determina a sua bondade real é o ROI (retorno sobre investimento) e a sua bondade contabilística decorre de garantir maior rentabilidade futura que o custo amortizado. Não há excesso de formalismos no momento inicial de contratação, mas controlo exigente na avaliação dos seus resultados.
Desta diferente abordagem nasce um tremendo fosso entre o Investimento Público e Privado. Enquanto o primeiro é controlado à nascença como gasto, o segundo é avaliado permanentemente como benefício. Enquanto o primeiro é realizado quando já é impossível adiá-lo o segundo é discutido quando é oportuno realiza-lo. Enquanto o primeiro é esquecido após concretizado o segundo é monitorizado, ajustado e reestruturado durante a sua vida.
Num Orçamento Empresarial o volume do investimento é um momento de debate. No Orçamento do Estado é um variável de acerto da despesa. Um Comité de Investimentos é um órgão essencial a uma empresa onde se discutem opções e alternativas. Não me recordo de um Conselho de Ministros dedicado à política de investimento público.
Tudo o que descrevemos aqui não é característico de Portugal, mas de toda a Europa. E talvez por isso se vão avolumando sinais de que o investimento público não é viável no contexto das atuais regras contabilísticas. Iniciam-se as exceções, reduzem-se efeitos nos rácios de dívida pública, mas não se ataca a essência.
Como esperar que a gestão pública privilegie o futuro, se as contas que presta são só sobre a despesa e não sobre o retorno. Todos os incentivos apontam para a máxima distribuição da riqueza atual em detrimento da poupança para necessidades futuras.
E isto é um pecado original de que o investimento público terá enorme dificuldade para se redimir.

Gestor e ex-presidente do Novo Banco