Um país, quantos sistemas?

Neste pequeno país cabem vários regimes, dependendo de onde se venha, viva e estude.

As escolas profissionais privadas prestam serviço público de educação e integram a rede de entidades que formam para as profissões. Foram criadas em 1989, devidamente institucionalizadas no conjunto do sistema educativo em 2005. Foi a visão do Ministro Roberto Carneiro, com implementação prática do Professor Joaquim Azevedo, que deram o impulso à sociedade para a criação destas escolas, numa modalidade de formação profissional com base no célebre modelo dual de formação.
As escolas profissionais nasceram assim de entidades privadas, parceiras desde esse dia 1, no caminho de ensinar profissões com modelo curricular no sistema nacional de educação. Não foi, nem é, coisa pouca, representando sobretudo inovação social amadurecida naqueles anos de reformas.
Muita coisa se passou desde então no ensino profissional em Portugal, desde logo, a confirmação da importância desta modalidade de ensino para a convergência de metas de qualificação com a restante união europeia, para o aumento de escolaridade mínima, e uma claríssima redução do abandono escolar. E isso só foi possível com o alargamento do modelo do ensino profissional à escola pública, criadas com o intuito (e cito a Lei) de “subsidiariamente assegurar a cobertura de áreas de educação e formação não contempladas pela oferta existente na respetiva área geográfica de localização.”
Atualmente, na prática, temos a escola estatal em concorrência directa e aberta com quem fez do ensino profissional uma luta (e investimento) de 30 anos. E sabemos quem leva prioridade. A concessão de apoios públicos às escolas profissionais privadas deveria obedecer aos princípios da transparência, da concorrência, da equidade, da imparcialidade e da publicidade, assim diz a Lei.
O compromisso assumido pelo Estado desde sempre foi o de usar os financiamentos comunitários para a implementação do sistema. Eis senão quando as regiões começaram o phasing out de fundos comunitários, a par da alteração dos eixos prioritários do QCA III, a estrutura dos programas operacionais também sofreu alterações. A grande Lisboa passou a ser região rica para os padrões da coesão europeia e saiu dos financiamentos dos programas POCH que tinha financiado até então.
Chegámos assim a 2 fontes diferentes de financiamento no mesmo país, em função da geografia de origem dos alunos e das escolas.Chegaram os anos da Troika (ainda dizemos isto como se duma senhora distante se tratasse) e o financiamento dos cursos profissionais levou um corte de 5%, esforço que foi pedido na altura a muitas organizações, sectores e entidades públicas e privadas.
Apenas no final de 2023 (!!!) foi anunciada a reposição deste corte e não para a totalidade dos 3 anos do ciclo de formação dum percurso profissional. E ainda não passou do anúncio. Ou seja, para além das 2 regiões com origens de financiamento diferente, ainda vamos ter pelo meio, anos de formação com maior comparticipação de financiamento que outros. E a palavra “reposição”, do que seria devido a essas escolas, passou a ter como significado a base do financiamento para a década 2030…
Não acaba aqui, infelizmente. O presente ano lectivo está sensivelmente a meio, considerando uma divisão por semestres. Os apoios financeiros são regulados numa modalidade de escola não estatal (de entidades privadas) mas de função e serviço público. Há mais de 30 anos que assim é, concedendo estas escolas aos alunos todas e as mesmas garantias e regras de gratuitidade da escola estatal e pública.
Os pedidos de financiamento são articulados anualmente junto do Ministério da Educação com o organismo do Programa Operacional correspondente, que a meados do ano passado se passou a chamar PESSOAS 2030. Certo é que os anúncios de candidatura para as regiões, ainda não foram abertos, pese embora estarmos a meio do mês de Fevereiro 2024 e o ano lectivo ter começado em Setembro de 2023. Ou seja, o financiamento não faltou à região mais rica do país para as suas escolas profissionais e nenhuma das outras tem Aviso de candidatura e as regras que vai trazer.
Para as regiões “de convergência” decorreu um “adiantamento” generoso de 30% por alturas do fim do ano, face aos gravíssimos problemas de tesouraria das escolas profissionais, cuja esmagadora maioria não teve alternativa que não fosse recorrer à banca. Dizem as notas oficiais que “foi criada uma medida temporária de apoio específico para assegurar o normal funcionamento dos cursos profissionais e dos cursos de educação e formação de jovens (CEF), durante o ano letivo em curso, nas escolas profissionais privadas das regiões Norte, Centro e Alentejo.” Diria que normal normal é que não foi…
É uma pequena bolha de oxigénio que alivia as escolas, sem haver previsão da regularização destes pagamentos; só adiantamentos como “esmolinha” a quem esteja fora de Lisboa. As implicações são brutais, com prejuízos para todos os envolvidos, professores e funcionários e alunos.
É nesta manta de retalhos que funciona o financiamento das políticas de educação para o ensino profissional, diferentes entre populações e natureza de escola (apesar de prestarem todas o mesmo serviço), com fluxos diferentes: um baseado na programação pedagógica e outro nas aprovações financeiras por região.
As diferenças de apoios, seja no acesso ao financiamento, seja nos apoios concedidos aos estudantes, não devem depender da natureza pública ou privada da instituição de ensino, muito menos da zona do país de onde sejam provenientes. Não deveria ser assim, sobretudo num país tão pequeno como o nosso.
Não é demais referir que os alunos das escolas profissionais não têm acesso a manuais escolares gratuitos, nem os famosos computadores para as tais competências digitais. Mas não fica por aqui, infelizmente. Está na ordem do dia a “recuperação das aprendizagens”. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 80-B/2023 discorre da bondade do tema, garantindo que ninguém fique para trás, sendo este já um segundo pacote de financiamento para superar aquilo que aconteceu durante a pandemia. E determina que “a presente resolução se aplica às ofertas educativas e formativas dos ensinos básico e secundário, incluindo escolas profissionais, públicas e privadas, doravante designadas por «Escolas».
Mas não é assim. Está aberto, até ao dia 14 de fevereiro de 2024 às 18h, um concurso do PESSOAS2030 que vai apoiar o plano de recuperação das aprendizagens, promoção do sucesso escolar e combate às desigualdades, para o ano letivo de 2023-2024, com o montante total de 77 milhões de euros. Mas este Aviso não contempla candidaturas para escolas profissionais privadas, as tais, que prestam serviço público no ensino das profissões. Estes alunos não têm aprendizagens para recuperar?
A informação mais recente disponibilizada pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência confirma que, em comparação com os estudantes do ensino geral, os diplomados de cursos profissionais têm uma idade média mais elevada, têm notas mais baixas (designadamente a matemática, português e língua estrangeira) e pertencem a famílias menos escolarizadas (apenas 9% têm proveniência em famílias com graus de Ensino Superior).
As escolas destes alunos ficam de fora dos anunciados milhões para as recuperações das aprendizagens, no meio dum pântano de ausência de financiamento estável e previsível, sobretudo com um elevado grau de endividamento à banca. Qualquer justificação que isto possa ter, a de justiça não é. Ainda assim, podem ler-se nos sites oficiais, que “No PESSOAS2030, o financiamento dos Cursos Profissionais continua no centro das prioridades na área das qualificações de jovens cada vez mais preparados para enfrentar os desafios do mercado de trabalho em constante mudança.” Imagino se não fosse prioridade…
As escolas profissionais privadas prestam serviço público de educação e formam profissões que tanta falta fazem à indústria, à hotelaria, à restauração, ao turismo, à agricultura, saúde, às empresas…
Neste pequeno país cabem vários regimes, dependendo de onde se venha, viva e onde se estude. A riqueza é hereditária, mas já se percebeu que a pobreza também. A qualidade, igualdade e equidade da escola das políticas públicas está posta em causa para este sistema de ensino, numa teia de remendos entre entidades sem nexo ou coesão nacional.
Gostava de perspectivar aos dias de hoje o mesmo entusiasmo e vitalidade que referia Roberto Carneiro para este sistema de ensino. Não tem havido vozes públicas a lutar por esta causa justa, mas eu não me cansarei, nem que seja apenas nestes escritos.