Debate: Incentivos à cultura são suficientes?

Em debate, Nuno Artur Silva, ex-secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Média e autor e consultor na área da cultura, e João Neto, presidente da Associação Portuguesa de Museologia e diretor do Museu da Farmácia.

Os governos têm feito o suficiente para incentivar o consumo de cultura?
Em debate, Nuno Artur Silva, ex-secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Média e autor e consultor na área da cultura, e João Neto, presidente da Associação Portuguesa de Museologia e diretor do Museu da Farmácia.

Nuno Artur Silva: “A cultura deve ter um ministério que a defenda”

É absolutamente fundamental que a cultura tenha um ministério que a defenda e é ainda mais fundamental que a defesa da cultura por parte dos governos seja feita pela totalidade do governo. Daí que seja assumida desde logo pelo primeiro-ministro como uma prioridade. Por vezes, é fácil reduzir a cultura a qualquer coisa que é tratada naquele ministério, mas acho que as questões fundamentais da cultura, no nosso tempo, passam por ser tratadas transversalmente. Devem ser envolvidos diversos ministérios, para além do Ministério da Cultura. como o Ministério da Educação, o Ministério da Economia, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, só para dar alguns exemplos.
É um tema que tem de ser tratado pelo governo como um todo e isso pode ser decisivo. Desde logo, na questão das finanças: ter um primeiro-ministro que tem ascendente sobre as finanças para poder ter uma relação de financiamento efetiva e não, como acontece muitas vezes, em que o Ministério da Cultura tem uma voz relativamente fraca no Conselho de Ministros. E sse tem sido o problema recorrente dos vários governos.
Num país pequeno como Portugal e com uma tradição cultural que não é das mais vigorosas, é absolutamente determinante que haja um investimento por parte do Estado, de dinheiros públicos, para poder incentivar a prática e atividade cultural.
Acho que o centro da política cultural deve ser virado para o cidadão, da mesma maneira que na educação deve ser virado para os alunos. O centro do estímulo à atividade cultural deve ser, no fundo, o acesso à cultura.
É óbvio que os artistas são fundamentais, é óbvio que as estruturas, o património, são absolutamente decisivos, mas creio que o maior esforço deve ser no estímulo e no incentivo e na possibilidade de tornar o acesso à cultura uma coisa tão natural como respirar ou como frequentar outros espaços de lazer como os cafés, os restaurantes, as praças públicas. Portanto, o estímulo ao usufruto.
Não gosto muito da palavra consumo aplicada à cultura porque acho que é só uma das dimensões económicas da cultura. Gosto mais da ideia do usufruto cultural e acho que esse deve ser o estímulo fundamental: o acesso à cultura.

João Neto: “Os governos não têm sabido criar estímulos à cultura”

Tenho o hábito de dizer que quem gere a cultura são os primeiros-ministros. Já nem passo tanto pelos ministros das Finanças mas, por vezes, quando tenho de defender a causa do património, chamo a atenção da importância que os ministros das Finanças têm. Se pensarmos na história recente do mundo e com as guerras, a cultura é sempre um elemento também essencial na vida dos povos, mesmo nas alturas mais difíceis.
O que eu sinto é que os vários governos não têm sabido criar esses estímulos. Vamos olhando para os graus de ensino e vemos como é que o lado das humanidades e o lado da cultura está a ser cada vez mais maniatado, mais amordaçado para privilegiar as ciências exatas.
Os governos, não só em Portugal, estão preocupados com chegarmos a Marte, que acho muito bem, mas temos falhado sempre na forma como nos aproximamos do próximo. E o próximo também é a cultura, é o conhecer. É o conhecer a cultura da pessoa que está ao meu lado, das suas origens, de onde é que veio, de onde é que está, mas sobretudo conhecer a cultura da minha área da escola, do meu quarteirão, da minha cidade, da minha vila, da minha região, do meu país.
Julgo que tenha existido falta dessa estratégia porque, sobretudo na minha área do património, há uma enorme confusão entre saber gerir o que é do Estado e saber gerir e criar condições para uma política cultural patrimonial a nível nacional. Os governos preocupam-se demasiado pelo que é deles, mas esquecem a política nacional.
Dou sempre um caso: vimos a paixão dos portugueses naquelas exposições internacionais e globais como a Europália ou Lisboa Capital da Cultura.
Esse lado foi realmente sentido, mas não foi continuado. Sentimos que os portugueses aderem a essas movimentações, que tentam agregar o país. Tornam-se até elementos de coesão. Sinto que foram situações perdidas, foram movimentos perdidos e que é necessário criar esse gosto e a valorização.
O problema que, muitas vezes, nós temos na cultura é que há determinada ideologia que diz que a cultura só pode ser acessível pela gratuitidade. Não pode ser.
A cultura tem de ser olhada pela dignidade da missão e da dignidade das pessoas que fazem a cultura, sejam elas quais forem.

Nuno Artur Silva: “A cultura, neste momento, não é um tema central na vida dos portugueses”

O que explica que nos debates televisivo, a propósito das eleições legislativas de 10 de março, ainda ninguém tenha falado de cultura?
Nuno Artur Silva – Os debates têm um tempo muito curto. Temos assistido mais ao comentário sobre os debates do que aos debates propriamente ditos.
Os debates, até pela circunstância política em que nos encontramos, têm vivido numa espécie de hiperdramatização, que procura muito mais os efeitos confrontativos do que propriamente a discussão da substância.
Em qualquer dos casos, a cultura, de facto, não é um tema central, neste momento, na vida dos portugueses, sejamos francos. Não é. Há temas, infelizmente, muito mais graves, a habitação, por exemplo, que estão muito mais no centro da vida das pessoas do que a questão cultural. A questão cultural está lá sempre, é claro, mas não é, neste momento, nem um tema decisivo para estas eleições e muito menos com o tempo que é dado. Nem é um tema mediaticamente interessante para ser explorado pelos jornalistas, porque não dá o confronto que dá audiências. Há partidos que nem pensam nisso sequer.

– A cultura não é sexy?
João Neto – A cultura é sexy, mas o problema é que os votos que saem pelo lado da cultura, se calhar, não são suficientemente fortes para que os partidos dediquem a melhor atenção a estes pontos.
Claro que vivemos em épocas difíceis, mas poderia ser importante os partidos abordarem porque a cultura faz parte de um determinado bem-estar. Aliás, se nós pensarmos em 1948, na Declaração dos Direitos do Homem, a cultura está lá e é um dos pilares da democracia e da cidadania.
E, se nós pensarmos bem, o que vale um sorriso? O que vale uma pessoa sentir-se bem num espaço? Num castelo? Num palácio? Num monumento? Vale muito. Por isso é que as pessoas também os procuram. E isso, por vezes, também passa por algum distanciamento dos assessores que produzem o pensamento dos líderes nestas alturas.

NAS –Em defesa não só do Governo de que fiz parte, mas dos últimos governos e do poder autárquico também, acho que as coisas hoje estão muito melhores do que estiveram no passado, do ponto de vista de haver uma consciência de que, sobretudo num país pequeno, é fundamental trabalhar em rede, utilizando a velha máxima, de ganhar escala num sistema cooperativo.
A colaboração entre as autarquias, o Governo, o poder económico, o lado que pode vir mais do mecenato e do investimento privado e os poderes públicos e o investimento público, é decisiva.

– Portanto, uma resposta é funcionar melhor em articulação, em rede, com autarquias e com fundações. Mas como é que se dá a volta à questão da restrição orçamental?
JN – Passa sempre pelo primeiro-ministro e passa muito também por esse ministério da cultura ser um ministério para o país e não apenas para as áreas que ele está a tratar.
Não tem havido uma campanha, não tem havido este lado de ser sexy, de saber mostrar a importância que a cultura tem.
Passa tudo também pelo ensino, as crianças precisam de ter uma cadeira de cultura. A cadeira de história, que muitas vezes as pessoas acham que dá cultura, não dá cultura. É apenas uma parte da história.
Não vamos ter árvores para respirar cultura, se não tivermos uma estratégia aplicada para que os jovens possam saber o que é a cultura. Se nós hoje perguntarmos aos jovens quem são os grandes atores de determinados períodos da história de Portugal, de grandes filmes, peças de teatro, de ballet, de música… quem é que conhece o Viana da Motta? Faz parte do nosso património. E é isso que eu sinto: muitas vezes, não há este lado de olhar a cultura neste esforço conjunto, que é uma missão nacional.

João Neto: “O Estado pede para a sociedade intervir, mas põe trancas nas portas”

– E sobre o tema da colaboração com entidades privadas e com fundações? Se estivermos eternamente à espera do Estado…
JN – Quando falo do Estado, é o Estado saber coordenar uma estratégia nacional em que puxe a sociedade. Julgo que é importante este lado de sair da esfera normal e de trazer mais as pessoas para a gestão porque o Estado pede para a sociedade intervir, mas quando a sociedade quer intervir, muitas vezes põe trancas na porta. E é aí que eu julgo que não houve e não tem existido uma abertura abrangente para essa situação.
Existem mais de mil museus em Portugal, em que a maior parte são museus da esfera autárquica. Isto representa também alguma coisa. Este lado transversal e da coesão deveria ter uma estratégia mais nacional.

– A ideia de haver um cheque, por exemplo, de 200 euros para um público mais jovem é algo que tem realmente efeito?
NAS – Por si só, isolado, não tem grande consequência. Tem de fazer parte de um todo. Falamos, muitas vezes, da responsabilidade do Estado, mas, por exemplo, ao nível das empresas, o nosso patronato e os nossos empresários não têm uma cultura de grande investimento nem em arte, nem em ciência. E, normalmente, quando o fazem, fazem-no numa cultura muito conservadora, com muito pouco risco, como música clássica, ópera, qualquer coisa que não crie polémica. Também não há tradição nenhuma.
As culpas não estão unicamente nos governos; estão muito nas pessoas que geram riqueza e que têm, com honrosas exceções, muito pouca sensibilidade para devolver à sociedade sob a forma de fundações, mecenato, iniciativas culturais ou científicas.
Neste momento também há desafios novos. Por exemplo, os hábitos de leitura. Hoje em dia, qual é o papel do livro num mundo dominado por ecrãs? Qual é o papel de uma narrativa mais longa num mundo que está cada vez mais dominado por narrativas curtas? Como é que podemos desenvolver uma indústria de cinema e audiovisual quando a população mais jovem já nem filmes e séries vê? Qual o desafio dos média, por exemplo?
Num mundo em que os desafios são enormes e há, de facto, desafios para os quais os governos não têm resposta, a sociedade vai atrás da tecnologia. Criam-se novos hábitos e tudo o que exige mais esforço, mais tempo, vagar, como é o caso da fruição cultural em muitos aspectos, traz desafios que, neste momento, não estão sequer a ser pensados, quanto mais legislados.
Por exemplo, hoje vivemos num mundo de ecrã, o que, curiosamente, veio também estimular outra vez o prazer pelos espetáculos ao vivo. Há aqui uma espécie de dois movimentos que jogam em conjunto socialmente e que é interessante explorar. Nunca tivemos tantos ecrãs, iPads, telemóveis, televisores. Nunca consumimos tanta cultura de imagem, mas, ao mesmo tempo, se calhar, nunca se valorizou tanto a presença ao vivo, o teatro, o espetáculo ao vivo. E isto tem de ser pensado do ponto de vista do que são as políticas culturais, de uma maneira nova.

João Neto: “Os museus têm de ser cada vez mais descodificadores e adaptados aos jovens”

JN – É interessante que a área que tem tido maior aceitação é o teatro. Os teatros têm estado repletos de um público jovem. Isto mostra que, com uma boa estratégia de comunicação, é possível.
Hoje vivemos todos, mas sobretudo os mais jovens, a época da velocidade furiosa. Tudo tem de ser muito rápido e muito estimulante. Julgo que também tem de haver aqui uma transformação das competências de quem gere, mas também de quem transmite.O grande problema, muitas vezes, está na forma como nós transmitimos. A questão é sempre esta: como é que nós descodificamos uma obra, por exemplo, como “Os Lusíadas”, para um público mais atual? Esse é o grande desafio. Os museus têm de ser cada vez mais descodificadores.

– Já aconteceu, por exemplo, museus terem apoios para audiovisuais, e depois isso acabar ao fim de alguns meses porque não há dinheiro para a manutenção. Como é que isto se resolve?
NAS – De facto, tem de haver um investimento maior para as infraestruturas básicas. E depois tem de haver uma sensibilização. Insisto, a responsabilidade não é só do Estado.
É muito fácil dizer “isto começa com a educação”, mas, hoje em dia, é difícil um professor dar um programa e manter uma turma interessada e aberta às novas realidades. O Estado sozinho não faz nada, se não houver uma sensibilização social que começa desde logo nos média.

Nuno Artur Silva: “É difícil incentivar a ir ao teatro quando a competição é o TikTok”

– A percepção que temos é que o orçamento para a cultura fica demasiado restringido ou logo cativado à partida em, por exemplo, 80% de entidades e depois não há dinheiro para mais nada. É isso que acontece?
JN – É um pouco… mas aí voltamos também àquela questão: o dinheiro é suficiente para aqueles que já existem? É suficiente para fazer excelentes exposições? É suficiente para o legado daquela exposição?
Infelizmente, muito do dinheiro fica concentrado, sobretudo, em alguns museus ligados ao Estado. Apesar de existir um programa que é o ProMuseus, que tem que ver com a rede portuguesa de museus, que devia ser uma estrutura de missão e não do Ministério da Cultura, porque envolve todos ou uma boa parte dos museus nacionais. Esse programa vai tendo algum apoio, mas devia ter mais, para essa coesão.
O dinheiro não é suficiente porque também fomos sempre adiante das reformas necessárias e depois o que é que nós fazemos ou o que é que nós demos é apenas aquela história da manta. Está curta, andamos a puxar de um lado e para o outro. Tudo isto volta sempre a esta questão.
Na cultura, precisamos de ser missionários para cativar e isso é uma situação que eu digo sempre aos meus colegas: nós temos de ir para a política. Se os políticos não olham para a cultura, nós temos de entrar na política!
E temos de entrar na política exatamente para pôr as questões essenciais da cultura na política, para serem bem discutidas e para haver uma reestruturação, uma reorganização, da forma como nós entendemos a cultura desde os mais pequeninos.

João Neto: “Infelizmente, muito do dinheiro para a cultura fica concentrado em alguns museus ligados ao Estado”

NAS – É difícil para um professor incentivar os alunos para ir ao teatro e aos museus quando a competição é feroz do lado do TikTok, a competição da atenção. A pior coisa que podemos fazer é dizer que “a responsabilidade é dos políticos”. Não, isto é uma coisa muito mais global e tem de ser assumida por toda a gente ou então não faz sentido.
Por exemplo, o Serviço Público da Televisão é absolutamente decisivo. Se não houvesse RTP, neste momento, grande parte da produção audiovisual sobre cultura portuguesa era, pura e simplesmente, não existente em Portugal. Seria uma lacuna tremenda. Acho de uma irresponsabilidade e de um desconhecimento total haver, por exemplo, partidos que propõem a privatização da RTP. Revela um total desconhecimento do terreno e do buraco que ficaria em termos culturais em Portugal. É uma daquelas coisas que eu acho que se fala muito levianamente.
É verdade que os governos, os bons governos, vivem de uma mistura entre profissionais da política e pessoas dos sectores. As pessoas que vêm de fora normalmente querem fazer tudo no mandato que têm. As pessoas que estão lá e são profissionais são essenciais para dominar a máquina do Estado. Os bons governos são feitos de um bom equilíbrio entre os profissionais da política e os que vêm dos sectores com ideias para poder concretizar.
Precisamos de valorizar a atividade política. Temos de recuperar esta ideia de que os políticos prestam serviço público e que a maior parte das pessoas que estão na política não são, como muitos pretendem fazer crer, corruptos.
A cultura começa em casa, com os hábitos de leitura, mas, para isso, é fundamental que estejam resolvidos problemas económicos básicos. Um livro hoje é caro.
Para compensar isso, o acesso às bibliotecas tem de ser muito mais fácil. Tem de haver uma lógica de acesso. Acho fundamental apoiar a classe artística, mas o principal foco da política cultural de um país deve ser o acesso à cultura para toda a gente: bibliotecas, cinemas, o Plano Nacional de Cinema, uma televisão que lhes dê diversidade.
Nós temos, do lado dos privados e da sociedade de espetáculo, a promoção da cultura de massas que é movida por aquilo que gera mais audiência. É obrigação do Estado mostrar que há muito mais para além dos fenómenos da audiência, de nicho. “Olha, há mais este tipo de música, não é só a Taylor Swift, não é só o que enche os festivais de verão”. Há um investimento que tem de ser feito na inovação e experimentalismo. Cabe ao Estado fazer essa política