“Há um discurso de combate à riqueza. Querem que sejamos a Cuba da Europa”, afirma CEO da Jerónimo Martins

O grupo Jerónimo Martins fatura mais de 30 mil milhões de euros, emprega 137 mil pessoas e não pára de crescer na Polónia e Colômbia.

O grupo Jerónimo Martins fatura mais de 30 mil milhões de euros, emprega 137 mil pessoas e não pára de crescer na Polónia e Colômbia.
Pedro Soares dos Santos critica a classe política, o fraco crescimento, perda do poder de compra e envelhecimento em Portugal. E revela como gere o negócio JM.

O grupo Jerónimo Martins obteve a melhor classificação a nível mundial, em termos de sustentabilidade, do Carbon Disclosure Project. Pelo quarto ano consecutivo, ocupou o primeiro lugar ao nível mundial no retalho alimentar. Que transformação é que foi feita nas empresas do Grupo para obter esta distinção?
Pedro Soares dos Santos — Para nós foi muito importante a alteração de mentalidade porque as coisas só se alteram quando as pessoas estão predispostas a alterar e a mentalidade a mudar. E isso foi conseguido. Demorou uns anos, mas foi conseguido.
Foi as pessoas perceberem que nem tudo se resume a dinheiro, nem tudo se pode resumir a preço; tem de se resumir a um equilíbrio entre o que a sociedade precisa e o negócio. E isso foi conseguido e é um motivo de orgulho enorme nós termos conseguido, com a equipa toda, liderada pela Sara (Miranda), ter conseguido este prémio que nos enche de orgulho, mas também nos cria um problema: aumenta-nos a responsabilidade porque andar para trás ninguém gosta.

— As empresas gostam, muitas vezes, de usar na lapela o tema da sustentabilidade, através do chamado greenwashing. De que forma é que este tema é estratégico para vós?
PSS — É estratégico porque está nos objetivos de todos. É estratégico porque cria diferença em relação aos nossos concorrentes. É estratégico porque o consumidor é hoje uma pessoa muito mais bem informada e, como tal, tem de ser cada vez mais bem esclarecido.
E é estratégico, para mim, porque transporta a verdade interna da companhia. Quando nós transportamos a verdade interna da companhia para o negócio, tudo se torna mais fácil. Só há um planeta, só vivemos uma vez e estas oportunidades não podem ser perdidas. Se isto é um problema real no mundo, como é, então tem de fazer parte da nossa agenda fortemente. E não é só para dizer que temos, não. Tem de fazer parte dos nossos objetivos e isso orgulha-me imenso porque a companhia, de há 10 anos para cá, tem este tema no topo da sua agenda.

— Há poucos meses, a Câmara Municipal de Lisboa deu luz verde para a construção de um novo edifício sede. Em que é que esse novo edifício pode ser importante para, por exemplo, reforçar a cultura organizacional do Grupo?
PSS — Vai ser importantíssimo para a companhia em dois pontos. Um, construir um edifício sustentável é logo a primeira prova de que a própria sede da companhia está inserida dentro da estratégia. E, em segundo, vai ser muito bem pensada para que aumente o espírito de equipa e para que as pessoas possam estar mais juntas.

— Será na Praça de Espanha?
PSS — Sim e demorou sete anos. Um terreno comprado à Câmara de Lisboa, com luz verde, num leilão, demorou sete anos para ser aprovado. É o que é.


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— Sei que só daqui a alguns dias é que apresentará resultados, mas, pelos números mais recentes, houve um aumento muito significativo de vendas, em 2023, para cerca de 30 mil milhões de euros, certo?
PSS — Passámos os 30 mil: 30.600.

— É um aumento superior a 20%. O que terá contribuído para este desempenho?
PSS —A inflação fez parte de alguma parte deste desempenho, mas foi essencialmente a fortaleza das marcas nos mercados onde estamos, quer na Colômbia, quer na Polónia. E, realmente, a fortaleza com que estas marcas estão a oferecer hoje o que o consumidor quer, faz crescer muito o negócio.


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— Na Colômbia, terá havido um crescimento próximo de 40% e é, de facto, um mercado com grande expansão. Na Polónia, entretanto, abriram também novas lojas. É uma aposta contínua?
PSS — Abrir lojas faz parte do nosso ADN. No dia em que deixarmos de abrir lojas, a companhia morre. As companhias de retalho não podem deixar de crescer para poder continuar a ter dinâmica. E, portanto, estamos a abrir…

— Mas sempre numa lógica de proximidade?
PSS — Sempre numa lógica de proximidade. E nós abrimos uma média de uma loja por dia. É isto, a média que esta companhia tem no todo e é esta dinâmica que permite continuarmos.

— Infelizmente estamos a assistir, na Europa, há já dois anos de guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Isso não teve impacto na Polónia?
PSS — Estas guerras têm sempre impacto. Começou pelo impacto até da inflação e da instabilidade do abastecimento. Mas nós conseguimos ultrapassar e conseguimos fortalecer a marca. Fizemos como em tudo. Não olhámos para isto como um drama; olhámos para isto como um problema. E como um problema, temos de o enfrentar, temos de lidar com ele. E fizemos isso. Aproximámo-nos ainda mais do consumidor e ao nível da oferta que eles precisavam. Foi isto que fizemos porque isto tem de ser notarizado dia a dia.

— Ir adaptando-se sempre às culturas de cada país é uma exigência permanente do grupo, quanto às tendências do consumidor?
PSS — Nós temos de ser locais. Os valores do Grupo Jerónimo Martins são transversais às companhias, mas a relação com o consumidor é local. E porquê? Porque não podemos pensar que um consumidor colombiano é igual a um polaco ou é igual a um português. Todos os hábitos são diferentes, a capacidade de compra é diferente e aquilo que ambicionam é completamente diferente.
Temos de ser locais e temos de ser conhecidos como uma empresa local e temos de trabalhar com as populações locais, com o mercado local e com os fornecedores locais. E é isso que faz a nossa fortaleza de marca. Nós não temos esta ambição de transportar a marca, as nossas marcas, para todo lado e o mesmo modelo de negócio. Cada país é um país, cada negócio é um negócio.
São empresas muito autónomas, muito capazes e com capacidade de decisão, no local, em tudo o que têm de fazer.

— A Colômbia poderá representar cerca de 20% das vendas do Jerónimo Martins em cerca de dez anos?
PSS — Não diria 20%, mas à volta de 15%. É um mercado em grande crescimento. Eles são 50 milhões e é um mercado muito jovem. Como tal, temos muita esperança.

— Mas, naquela região, a ideia é ficar circunscrito à Colômbia?
PSS — Nesta fase, é. O futuro logo vemos. Depende do desenvolvimento que tiver a a América Latina, o próprio país e o próprio negócio.

— E quantas lojas é que já tem na Colômbia?
PSS — 1500.


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— Tem havido algum peso de Portugal no total? Ou melhor, o peso de Portugal nas vendas, nos resultados, tem vindo a encolher?
PSS — Tem encolhido e irá encolher mais. É normal, um país é de 40 milhões de habitantes e o outro é de 50 milhões. Mas há também uma diferença das economias. A economia polaca é uma economia que está permanentemente a crescer.
A economia portuguesa não cresce desde este século e não tem grandes perspetivas de crescimento para o futuro. A economia colombiana será sempre um mercado que vai crescer. Nesse sentido, esses dois mercados vão crescer muito mais do que vai crescer Portugal, até porque somos uma sociedade mais envelhecida…

— Em Portugal, o consumidor tem estado a perder poder de compra, não apenas com a inflação. Qual é que é a resposta?
PSS — As pessoas estão cada vez mais envelhecidas. Uma pessoa mais envelhecida come menos. As pessoas estão cada vez mais sozinhas e tendem a ter medo da reforma. Porquê? Porque em Portugal quem vai para a reforma está condenado a ser pobre. Isto é de uma forma geral.
A companhia tem de se adaptar às necessidades desse novo consumidor, que vai ser o predominante, infelizmente, na próxima década.
A companhia está a alterar o seu modelo de negócio, onde a restauração vai ter um papel muito importante, porque é aí que vamos ter de ter capacidade para lidar e tratar deste cliente e ir ao encontro das suas necessidades. Se calhar, comida pronta já é mais barata do que comprar os ingredientes. Porquê? Porque depois temos de somar o tempo, o gás, a água e tudo o resto. Quem vive sozinho, tem de, no futuro, conseguir aceder a comida mais acessível do que as compras do supermercado.

— O fim do IVA zero teve algum impacto no comportamento dos consumidores?
PSS — Não, não teve muito impacto. Agora, tenho alguma dificuldade em perceber porque é que nos produtos básicos de um país se paga IVA. Isso tenho muita dificuldade.

— Mesmo na taxa reduzida?
PSS — Mesmo na taxa reduzida. Tenho muita dificuldade em perceber como é que produtos essenciais para a vida das pessoas têm de pagar IVA.

— No último Natal, o Grupo Jerónimo Martins distribuiu pelos 137 mil colaboradores das lojas, fábricas, centros de distribuição, em Portugal e na Polónia, uma oferta que totalizou 25 milhões de euros. É uma prática comum?
PSS — Essa foi a prática de Natal porque já tínhamos feito uma distribuição em abril. Ou seja, estamos a fazer duas vezes por ano. A de abril refere-se aos resultados do ano anterior e a do Natal normalmente tem que ver com a performance das companhias até essa altura.
A política da companhia é distribuir pelas pessoas a riqueza que produz. Distribuir aos seus acionistas, distribuir às pessoas que aqui trabalham (ronda sempre entre 135 e 137 mil pessoas) e distribuir através do preço e da oferta aos consumidores.

— Essa política pode traduzir-se em aumentos salariais?
PSS — Pode traduzir-se em aumentos salariais. A riqueza tem de ser partilhada pelos três de uma forma muito equitativa porque sem estas três junções não há negócio. Temos de saber remunerar todos.

À minha maneira

Quem é o Pedro e qual é o seu estilo de gestão e de liderança?
PSS — Só sei viver em equipa. Como cresci nas operações, tenho de estar muito ligado à vida real de cada país e de cada cultura onde operamos. Faço muito terreno, visito muitos países e falo com as pessoas.
As decisões têm de ser coletivas. Aquilo que, para mim, é mais importante é trabalhar com gente mais inteligente do que eu, mais capaz do que eu, porque isso ajuda muito.

Estamos a falar de um grupo com cerca de 250 anos…
PSS — E na minha família está há mais de 100 anos. 101, 102.

Sente o peso da herança familiar?
PSS — Claro que sinto esse peso. Cada vez que me sento na minha cadeira, esse peso existe.
E o que eu fiz até ontem não quer dizer que seja o certo para o futuro. Todos os dias, temos de justificar porque é que se está neste lugar.
A herança da família, claro que sentimos, porque numa família numerosa, ser o escolhido traz muita responsabilidade.
O meu pai é uma pessoa que faz falta. Até pelas conversas e a forma como discutíamos os assuntos, quer do mundo, quer familiares, quer de negócio. Foram 40 anos a trabalhar juntos.
É uma pessoa com que nos habituámos a confidenciar e, com o seu desaparecimento, este vazio fica. Aprendi com ele a sermos honestos, trabalhadores e honrar aquilo que recebemos dos outros.
Honrar é continuar a desenvolver o negócio para que a família que acredita em nós continue a acreditar no futuro, nos próximos. E não ter medo de errar.

Sim, conseguimos

Qual foi a maior adversidade que enfrentou ao nível profissional e ao nível pessoal?
PSS — O maior obstáculo que tive foi quando a Jerónimo Martins teve a sua crise de 1998/99. Fui viver para a Polónia para não permitir que a companhia falisse. Esse foi talvez o maior desafio pessoal que tive na minha vida e foi realmente com o voto de confiança do meu pai.
Nós sabíamos que o Brasil tinha de ser vendido e a Polónia tinha de ser salva. Ter conseguido ultrapassar com a equipa que lá estava e termos encontrado o caminho para tornar a Polónia o que ela hoje é no grupo Jerónimo Martins…. foram talvez esses dois anos mais difíceis que tive na minha vida porque eu sabia que, se falhasse, toda a geração podia ter desaparecido.

E o desafio permanente da captação e retenção de talento?
PSS — Isso faz parte da nossa cultura e, graças a Deus, tem funcionado. Se olharmos para os líderes todos que o Jerónimo Martins tem nas suas diferentes posições, têm todos mais de 20 anos de casa e foram treinados, criados e aculturados à companhia. Isso, para mim, é um motivo de orgulho único. Sem isso, nunca teríamos chegado onde chegámos hoje.

Portugal 2043

Para um grupo como o JM e para o Pedro, que tem de estar focado a apresentar resultados, sente que há pouca gente a pensar, neste momento, o país a 20 anos?
PSS — Não há ninguém. Basta ver alguns debates políticos e alguns programas e percebe-se que ninguém está preocupado com o futuro. Só estão preocupados com as próximas eleições e isso é desastroso para todos.
A desilusão em relação à atual classe líder política em Portugal é muito grande. Ninguém está a pensar como é que Portugal se deve posicionar numa União Europeia que todos sabemos que ainda vai aumentar mais. Ninguém quer saber que papel queremos desempenhar em termos económicos na atual União Europeia e na futura. Era para aí que devia estar canalizado o nosso pensamento.
Nos poucos debates a que assisti, ninguém fala de Portugal na União Europeia. Só se fala de Portugal para os fundos. Para se ter fundos tem de se ter projetos; para se ter projetos tem de se ter ideias; e para se ter ideias tem de se ter gente muito boa na liderança. Essa lacuna existe em Portugal e é perigosíssima!
Não é em vão que os jovens deixam Portugal. É porque não sentem que isto exista. Tenho muita pena porque Portugal é um país maravilhoso e podia ser a Califórnia da Europa.

— Apesar de todas estas dificuldades, qual é a sua visão ou como é que gostaria que o país fosse em 2043?
PSS — Gostava que tivéssemos uma classe que está reformada a viver bem. Gostava muito que tivéssemos uma cultura de bem-estar. Portugal aumentar para um turismo mais rico, porque temos um clima espetacular para isso.
Gostava que tivéssemos uma agricultura muito desenvolvida para abastecer todo o norte da Europa, de uma forma diferente daquela que temos hoje.
Gostava que as pessoas acreditassem mais nelas.


— E sobre o estigma que parece haver em relação às grandes empresas em Portugal? Gostaria que algo mudasse nesse sentido?
PSS — Acho que tudo devia mudar porque quando não se cria riqueza, não se partilha.
Nós hoje estamos debaixo de um discurso contra a criação de riqueza. Não percebo se esta gente quer que sejamos a Cuba da Europa.
Neste momento, só se fala em impostos, mas os impostos têm de ser cobrados pela riqueza que se produz, não é por aquilo que as pessoas têm. Não consigo perceber o que é que esta gente entende que é tirar aos outros a riqueza que os outros produzem e que partilham. E esse é que é o problema de Portugal.
Neste momento, nós temos um discurso de uma classe que não gosta de trabalhar. Viveu toda a vida à conta dos orçamentos de Estado e só pensa em distribuir esmolas. Não pensa em como criar esta riqueza. Isso a mim preocupa-me imenso.