“Tenho crescido em fases de crise. O dinheiro vem só do vinho”, afirma CEO da Casa Ermelinda Freitas

Dedicou-se ao vinho “por amor”, após 20 anos a trabalhar na função pública. Hoje, Leonor Freitas, CEO da Casa Ermelinda Freitas, vende cerca de 25M de litros de vinho, fatura 40M€ e tem mais de 100 marcas.

Dedicou-se ao vinho “por amor”, após 20 anos a trabalhar na função pública. Hoje, Leonor Freitas, CEO da Casa Ermelinda Freitas, vende cerca de 25M de litros de vinho, fatura 40M€ e tem mais de 100 marcas.

Como é está a Casa Ermelinda Freitas quanto a saúde financeira, mercados e marcas?
Leonor Freitas ─ A Casa Ermelinda Freitas podemos dizer que está bem economicamente, dentro de todo o contexto, e até cresceu. É uma casa que teve uma faturação, em 2023, de cerca de 40 milhões de euros e exporta 40% da sua produção para vários países. Temos várias marcas…

São mais de 100 marcas, atualmente, entre o mercado nacional e internacional?
LF ─ Sim, mais de 100 marcas, entre o mercado nacional e internacional, embora algumas sejam, de facto, as principais. É o caso da Dona Ermelinda e da Leo d’Honor. Temos aquelas marcas que são as grandes chaves. E, depois, temos marcas que fazemos exclusivas para as grandes superfícies e também, mesmo lá para fora, temos marcas próprias que vão ao encontro do consumidor.
Aquilo que nós queremos é que o consumidor goste e dar resposta àquilo que sentimos que o mercado nos pede, quer em Portugal, quer fora de Portugal, e ter produtos que deem para um leque grande. Costumo dizer que deem para todas as bolsas, todos os momentos, todas as ocasiões. Portanto, temos vinhos também de vários grupos, que dão para vários grupos etários e tipos económicos, sempre com uma grande preocupação que é a melhor relação qualidade-preço.
Mesmo nos vinhos mais competitivos, temos sempre o logótipo Casa Ermelinda Freitas. Ao fim e ao cabo, é um compromisso que temos com o consumidor de que Ermelinda Freitas é qualidade; enfim, ela varia consoante o nível em que está.

Quantas pessoas é que trabalham aqui, perto de Palmela?
LF ─ Neste momento, temos 101 pessoas a trabalhar, contando comigo porque, de facto, faço parte da equipa, nem devia não me poder incluir. Estou cá desde o início, começámos com três pessoas, passámos a dez, a vinte, fiz de tudo um pouco… e hoje são 101 na adega, na agroalimentar. Depois, no campo, temos também mais 100 pessoas, mas já é trabalho mais sazonal. Por exemplo, neste momento, nas podas, são cento e tal pessoas.

Quais é que serão as diferenças ou as tendências do mercado? O consumidor vai mudando os gostos e vai adaptando em função disso?
LF ─ Sim, vai mudando muito e muda de país para país também. Tentamos adaptar consoante o país, falando de exportação. Cá em Portugal também, até porque nós queremos muito apanhar e englobar as novas gerações, os mais jovens.
Para isso, temos de fazer vinhos apelativos, mais fáceis de beber, vinhos que nós dizemos que são mais redondos, mais frutados. Como nós temos uma área grande, temos uma quantidade grande. Vendemos cerca de 25 milhões de litros de vinho. Isto proporciona-nos fazer vinhos para corresponder a todos. Vinhos mais ligeiros, vinhos com mais estrutura, com mais envelhecimento, com mais estágio em barrica para outras pessoas, para os grandes apreciadores, ao fim e ao cabo.
Há uma mudança: está-se a beber mais vinho branco e rosé do que o que se bebia. Também não podemos esquecer aqui a mulher. Hoje, as mulheres bebem mais vinho e, normalmente, gostam mais de brancos e de rosés. E elas são umas grandes influenciadoras, também, nas compras que levam para casa. Portanto, é um fator que não podemos esquecer. O vinho não é para nós, é, de facto, para o cliente. E tentamos muito corresponder ao gosto.

Nós estamos em Fernando Pó, perto de Palmela, na região de Setúbal, onde aumentou de forma substancial, com investimento, a vinha dos seus pais e que já vinha da sua família. São quantos hectares?
LF ─ Sim, tinha 60 hectares. Só tínhamos duas castas: 55 hectares eram de Castelão, 5 de Fernão Pires. Portanto, tinto e branco. Hoje, temos 30 castas diferentes e estamos a produzir, neste momento, em pelo menos 500 a 520 hectares. O terreno ao todo são 570, mas vamos reestruturando.

E mais recentemente também fez investimentos a norte, no Minho e no Douro. Porquê?
LF ─ É verdade. Aqui é a casa-mãe. Aqui, Palmela, o vinho da região da Península de Setúbal, será sempre o meu grande afeto, a grande casa. Sou já a quarta geração, a que vem, a que foi crescendo e que irá crescendo, assim espero.
O vinho é um produto muito especial. E nós, Portugal, somos espectaculares porque é um país pequeno, mas tão diferente na paisagem, no clima, no terroir. Os vinhos são o fruto disso. Então, quando fui ao Douro, depois de estar no setor, tive outro olhar. Aquilo emocionou-me. Se eu aqui trabalho tudo em planície, lá os socalcos, o rio, foi qualquer coisa que me deslumbrou. E disse-o: “ah, se eu um dia conseguisse ter uma pequena quinta no Douro…”.
Consegui, há quatro anos, adquirir uma quinta ao pé de Foz Côa, que é a Quinta de Canivães, que vamos agora lançar o vinho, precisamente. Estive a prová-lo hoje, nem a propósito, e acho que está muito bom, fiquei satisfeita. Este sonho vem de há muitos anos. Estou na casa Ermelinda Freitas há 30 e se calhar há 20 que eu sonhava, mas não tinha hipótese económicas…
Neste espaço de tempo, apareceu uma outra quinta, que é a Quinta do Minho, que fica em Póvoa de Lanhoso, que eu não tinha pensado, que são os vinhos verdes, que também são tão diferenciadores. Mas como não conseguia comprar a vinha no Douro, quando me ofereceram pensei que podia ser uma hipótese, ter outra coisa diferente. E comprei a Quinta do Minho, comprei primeiro. No entanto, por questões dos vendedores da Quinta do Minho (a Superbock, eram eles os donos), foram impecáveis, mas demoraram um ano até fazermos a escritura. Foi assim combinado. Neste espaço de tempo, aparece-me a quinta ao pé de Foz Côa, que era o meu sonho.
Eu, que economicamente não tinha dinheiro disponível para uma quinta, acabei por comprar as duas. Tenho duas quintas muito bonitas, quer a do Minho, quer a do Douro. Esta é, de facto, um sonho, o tal sonho. Porque tenho os socalcos, como eu gostava, e tenho 900 metros de rio. É aquele contraste, que considero único em Portugal; é maravilhoso e a vinha é muito boa. Vai dar um Douro espetacular. Claro que vão ser ainda poucas garrafas. São quintas que estão ainda no seu lançamento.

Vai demorar, com certeza, a rentabilizar. Ao fazer estes investimentos, continua, no fundo, a perseguir precisamente um sonho, como referiu relativamente ao Douro, mas também a dar continuidade a uma paixão de quem esteve 20 anos numa profissão que nada tinha que ver, mas que há um apelo e, se calhar, há um investimento nesta área, digo eu, por paixão.

LF Sim, tenho sempre uma palavra, que é… estou no vinho por amor. Trabalhei como funcionária pública durante 20 anos, não estava programado, no meu projeto de vida, vir para o vinho. Vim porque a minha família me passou todo esse amor. O amor à terra, vi o trabalho deles, tudo isso. E quando o meu pai faleceu não consegui vender quando o meu pai faleceu. E eu vim. E em boa hora o fiz porque acabou por ser aqui, embora eu gostasse do que fazia, que eu me reencontrei. Acho que isto é um setor com vida. É um setor espetacular. Uma garrafa de vinho é muito mais do que um vinho. Ela tem o trabalho da terra, a economia. Já viu o que está economicamente numa garrafa de vinho? É o vidro. É o papelão. É o trabalho, como eu disse. É a rolha. É a cápsula. E depois, os transportes. O setor do vinho é um setor que engloba vários setores economicamente. É um produto com vida.

Mas que ao mesmo tempo vai tendo, como vários setores em Portugal, muitas dificuldades com a questão da mão-de-obra, não?
LF ─ Sou, em Fernando Pó, a maior empregadora. E damos sempre prioridade às pessoas daqui. E até há poucos anos, não há muitos, eu tinha pessoal. E nós vivíamos aqui como uma grande família. Porque somos todos conhecidos. Nasci aqui, sou uma pura rural. E, portanto, tudo isso era vivido aqui. Ultimamente, sim. Sobretudo, tenho dificuldade na adega e tenho muita dificuldade nas vinhas, no campo. Já temos de recorrer a pessoas de fora. Sentimos, de facto, grande dificuldade na mão-de-obra.

Houve um apelo seu após a perda do seu pai e homenageia-o além da Casa Ermelinda Freitas, também criando marca. Mas, agora, aposta em passar o testemunho?

LF Nunca pressionei para que os meus filhos viessem. Tenho um rapaz e uma rapariga, um João e uma Joana. Nunca fiz qualquer pressão para que eles tivessem de vir para o setor. Mas, sobretudo a minha filha, que adora as vinhas, o vinho, andar no negócio. Ela tirou Gestão por opção. O meu filho é diferente. Mais intelectual, gosta mais de investigação. Foi para Informática, mas também, por opção, trabalha na Casa Ermelinda Freitas. Já que eles optaram, claro que estou satisfeita, e tenho muita preocupação de lhes passar os valores que me passaram a mim.
O negócio, além de números ─ porque tem de ser rentável, temos de viver disto, não há hipótese, acresce a responsabilidade das famílias que trabalham connosco ─ tem valores humanos, os valores da proximidade, os valores de quem nós temos de tratar, com quem nós trabalhamos, acho fundamental no negócio e, sobretudo, neste.
A minha família era uma família honesta, que muito trabalhou, mas que me passou valores. E esses valores têm-me ajudado no negócio. E tenho essa preocupação, sim, de os passar também aos meus filhos. Estão os dois já muito entusiasmados e muito. Estou muito feliz porque não queria nada que fosse preciso eu não estar cá para que eles crescessem.
Portanto, também tenho a preocupação de lhes ir dando cada vez mais espaço para que eles possam crescer e eu vê-los a crescer. Crescer no sentido também como gestores, para levarem a empresa para a frente. Penso que sim, que isso está a acontecer.
Estou bem de cabeça, penso eu, tenho sempre ideias, estou sempre ainda a sonhar e às vezes é difícil porque sem querer condicionamos o outro. Mas eu tenho essa preocupação de que a sucessão se prepare bem, que tenha valores, porque temos de partilhar com a sociedade aquilo que também a sociedade nos ajuda no negócio, mas que eles, de facto, vão já seguindo e tomando responsabilidades.

À minha maneira

Quem é a Leonor e qual é o seu estilo de gestão e de liderança?
LF – Gosta de estar bem comigo, em primeiro lugar. Sou uma pessoa que gosta de viver com alegria. E na minha gestão, tenho de estar muito bem com as pessoas. Tenho de estar numa colaboração e interação com as pessoas. Eu dou-lhes e elas dão-me a mim. Todos os dias aprendo com as pessoas. Também espero ensinar alguma coisa. O que é que era a Casa Ermelinda Freitas ou a Leonor de Freitas, se não fosse toda a equipa que tenho, que era pequena, hoje é maior e vai crescendo? Podem sempre contar comigo e também posso contar com as pessoas. É nesta simbiose que eu vivo.

O facto de ser mulher, num setor visto ainda como um setor de homens, foi complicado?
LF – Saí daqui com 9 anos, era a menina que saiu do campo e depois aparece aos 40. O que é que ela sabe disto, o que é que ela vai fazer? Ninguém acreditava. Tinha pouca margem ou nenhuma para errar, o que me levou um esforço maior de tentar aprender o máximo que podia. As pessoas estavam na expectativa de que as coisas não corressem bem. Quando comecei a plantar outras castas diferentes da que existia, as pessoas não acreditavam. Dizia-se que aqui só se dava bem o Castelão e o Fernão Pires. Não me isolei, fui a Bordéus e vi que tinha de ter castas que fossem conhecidas pelos estrangeiros, pelos outros países e tinha de as plantar. A minha mãe (Ermelinda) sofreu imenso porque vinham dizer-lhe: “a sua filha anda a gastar o dinheiro e aqui não se vai dar”. É preciso acreditar. E eu também acreditei que isto tinha de dar outras castas.

Sim, conseguimos

Qual terá sido o maior problema e como é que o superou?
LF ─ Aquilo que senti com maior dificuldade foi habituar-me e aprender a viver com a instabilidade económica porque quem está habituado a viver de vencimentos, como eu estava, corria tudo bem. Ser empresária é ser empreendedor, é ser diferente e é aprender a viver com as adversidades. Ainda por cima, com as vinhas, estava sujeita às condições climáticas. Ou chovia, ou fazia sol. Nós e o São Pedro nunca estamos de acordo. Corre sempre diferente. E eu, por vários anos, estava a ver a minha solvência. Porque ou chovia muito ou porque fazia calor. Tanto havia dinheiro como não havia. Era preciso investir permanentemente. Passei a minha vida, desde que estou cá, a fazer investimentos, quer na adega, quer em vinhas. Não tenho dinheiro de mais nada. Só tenho dinheiro do vinho para o vinho.

E a pandemia também foi um problema?
LF – A pandemia também foi uma luta. Foi um grande susto. Depois íamos comprar máscaras e não havia. Íamos comprar o álcool-gel, não havia. Queríamos fazer tudo o que era possível para que os nossos funcionários não tivessem. Para os separar, aluguei desde balneários novos, refeitórios, fiz turnos. Fiz tudo, primeiro com a grande preocupação da saúde, de os proteger. Até porque era difícil, ainda por cima aqui são famílias, eu estava sujeita a que me fechassem. Eu não posso ter dias fechados, preciso de vender todos os dias, porque o investimento é permanente. Também era uma preocupação económica. E, de início, não se vendia.
Depois, eu tinha o tal álcool para fazer moscatel e, numa conversa onde estava o diretor do Politécnico de Setúbal, eu disse, “eu quero ajudar, gostava de poder colaborar, gostava de fazer álcool-gel. Eu tenho seis mil litros de álcool, mas não sei fazer”. E ele disse, “ah, mas espera aí, que a sabedoria temos nós, o conhecimento temos nós. Tenho professores que vão lá e lhe fazem isso. Vamos fazer isso, Leonor, claro que sim”. E foi das coisas de que gostei muito de fazer. Não só eu, os meus colaboradores também. Foi muito giro, fizemo-lo cá. Eu não pedi nada aos trabalhadores, mas quando fui para lhes pagar as horas, porque foi depois das horas, disseram-me “não, nós não queremos que nos pague horas”. Fico sempre muito sensibilizada, porque acho que tenho colaboradores espetaculares. E não lhes paguei. E depois, comprei uns jerricãs, dividimos e oferecemos às instituições. Até ao hospital, que também tinha falta.
Fiquei com alguns aqui para o meu pessoal. Oferecemos a todo o pessoal um spray para poderem levar para casa e depois tivemos todos os cuidados. De 15 em 15 dias fazíamos rastreios. Apanhámos os casos em rastreio. Foi muito bom, porque não fechámos. Eu é que fui posta em casa porque já estava no grupo etário de estar em casa, mas depois já não estava a ficar muito bem da cabecinha e resolvi que valia a pena arriscar e vir-me embora. E vim e não tive Covid, foi assim, calhou.
O engraçado é que cresci em vendas. O susto depois tornou-se uma oportunidade, porque as pessoas ficaram mais em casa. Mudaram para vinhos mais económicos, é um facto, foram comprar mais, deixaram de ir ao restaurante, que não podiam ir, mas foram às grandes superfícies. Eu também tinha o vinho lá. Isso é outra coisa que acho que é muito importante, que é termos os vinhos nos vários sítios onde o cliente vai. E acabou por ser um momento de crescimento. Numa altura tão preocupante, cresci imenso nas vendas.

Portugal 2043: “Gostava que tivéssemos um país mais moderno”

Qual é a sua visão para o país nos próximos 20 anos?
LF – Gostava muito que tivéssemos um país moderno. Acho que temos todas as condições para estarmos bem economicamente. Para termos jovens cheios de vontade de aprender, que tendo demonstrado lá fora que são capazes, pois que esses talentos consigam ficar cá, para desenvolver este país, para termos um país atualizado, um país em que todos temos lugar. Todas as gerações. Eu também quero cá estar ainda. Vamos ver.
Portanto, respeitarmos as várias gerações, mas muito mais um país rejuvenescido. Um país com ideias. Um país moderno. Ainda por cima com este maravilhoso clima que temos, esta paisagem, uma gastronomia espetacular, vinhos também, claro, acho que temos todas as condições para ser um grande país.
Os portugueses têm de acreditar que isto é possível. E nós, as gerações mais velhas, temos de passar a mensagem aos mais novos. Não é tudo uma desgraça. É verdade que não é tudo um mar-de-rosas. Na minha vida, tento arredondar os espinhos da rosa. Sei que ela nem sempre está a florir, tenho de ter essa humildade.
Mas há que passar otimismo. Quando os jovens vêm cá fazer visitas e os recebo, dou-lhes sempre um exemplo. Quando me deixaram de comprar vinho a granel, achei que era a desgraça, na altura. Porque eu vivia de vinho a granel. E esse problema, essa dificuldade, tornou-se uma oportunidade. Foi aí que dei o grande salto.
Disse “não, não posso ficar aqui de braços trocados, com a desgraça que me aconteceu. Agora tenho de arranjar uma solução”. E encontrei uma solução. Foi aí que comecei a fazer as marcas. Foi aí que comecei a ir para o mercado. Foi aí que trabalhei mais. Na grande crise em 2008 que passámos, eu estava a fazer as obras, estava a crescer imenso nessa altura. E, de facto, eu cresci.
Tenho crescido sempre em fases de crise. Sempre. Eu costumo dizer que ando um bocadinho contra a maré. Acho que tem sido porque não tenho cruzado os braços com a desgraça. Não tenho ficado à espera que a desgraça passe. Tem sido fazer o que tinha programado, vamos embora trabalhar, vamos embora porque quando a fase passa, nós já estamos preparados para a poder receber. Traçar os braços e ficarmos à espera e a lamentarmo-nos, isso é que não resulta. É a minha opinião.