Desafios da co-liderança e a travessia aérea do Atlântico Sul

880 anos de história de Portugal convidam-nos a refletir sobre lições de liderança passada

Para quem gosta de história, o tempo do Império Romano fornece bons exemplos de co-liderança: os Cônsules Romanos eram dois e eleitos anualmente, o Duumviri era uma equipa de dois magistrados nas colónias romanas, Diocleciano e Maximiano foram co-Imperadores, entre outros casos ilustrativos. Na história portuguesa não existem grandes exemplos, mas também não no mundo corporativo – menos de 5% das grandes empresas cotadas mundiais têm co-CEOs. No entanto, com a crescente complexidade e incerteza nos negócios, não será tempo de equacionar a co-liderança como uma estrutura mais avançada e potencialmente com mais impacto?

Requisitos para uma co-liderança de sucesso

Em condições ideais, o impacto de ter co-CEOs pode ser verdadeiramente notável, conforme demonstra um estudo recente da Harvard Business Review. O trabalho em conjunto de dois CEOs traz diversidade de competências e perspectivas, permitindo uma liderança equilibrada. Enquanto um CEO pode focar-se em avanços tecnológicos, o outro pode lidar com funções empresariais tradicionais. Eles podem complementar-se, abordando questões internas e externas, e navegar eficazmente pelas responsabilidades multifacetadas dos CEOs modernos. Em caso de saída de um CEO, o outro pode garantir uma transição suave, promovendo uma abordagem colaborativa e equilibrada de liderança. Além disso, este modelo ajuda a mitigar tendências de “super-ego” entre os líderes, promovendo uma abordagem de liderança colaborativa e equilibrada.

Mas quais são essas “condições ideais” para a co-liderança (não necessariamente a nível de CEO) ter sucesso?

Naturalmente que ambos os co-líderes devem estar genuinamente comprometidos com a parceria e dispostos a comprometer-se e comunicar de forma eficaz. Os co-líderes devem ser flexíveis e adaptáveis na sua abordagem à liderança, abertos a novas ideias e dispostos a ajustar as suas estratégias quando necessário.

Sabemos também hoje que os co-líderes não devem ser parecidos, mas devem sim trazer competências e pontos fortes complementares para a mesa. Cada líder deve destacar-se em áreas onde o outro possa ter pontos menos fortes, criando uma equipa de liderança mais completa.


Há áreas chave a compartilhar por ambos os líderes:

Visão e Valores Compartilhados: Os co-líderes precisam ter uma compreensão compartilhada da visão, missão e valores. O alinhamento nestes aspectos fundamentais garante que ambos os líderes trabalhem para os mesmos objetivos.

Processo de Tomada de Decisão Compartilhado: Os co-líderes devem envolver-se mutuamente no processo de tomada de decisão trabalhando de forma colaborativa sempre que possível. Isto promove um sentimento de “ownership” e adesão de ambos os líderes, levando a uma implementação mais eficaz das decisões.

Responsabilidade Compartilhada: Ambos os co-líderes devem compartilhar a responsabilidade pelo desempenho. Necessitam também de ter formas eficazes de resolver divergências, seja através de comunicação aberta ou de facilitadores externos.

Também deverá haver clareza dos dois líderes em relação a áreas críticas:

Confiança Clara: A co-liderança requer um alto nível de respeito e confiança mútuos. Os líderes devem confiar no julgamento, nas decisões e nas competências uns dos outros e estar dispostos a delegar responsabilidades.

Comunicação Clara: A comunicação eficaz é essencial na co-liderança. Os co-líderes devem comunicar de forma aberta, honesta e frequente para garantir que todos estejam sintonizados e para evitar mal-entendidos ou conflitos.

Funções Claras: Funções e responsabilidades claramente definidas ajudam a evitar confusão ou mesmo conflito na co-liderança. Cada líder deve ter uma área de foco distinta e, ao mesmo tempo, colaborar estreitamente em metas e estratégias abrangentes.

O caso de co-liderança em Gago Coutinho e Sacadura Cabral

Apesar de não se encaixar diretamente no conceito moderno de co-liderança empresarial, a travessia de Gago Coutinho e Sacadura Cabral foi, de facto, um exemplo notável de cooperação e colaboração. Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram pioneiros na aviação e na navegação aérea, e sua famosa travessia do Atlântico Sul iniciada a 30 de março de 1922 (faz agora 102 anos) foi um marco na história da aviação e da exploração.

Embora eles não fossem co-CEOs de uma empresa, a sua parceria na aviação pode ser considerada uma forma de co-liderança, onde cada um contribuiu com suas competências e expertise para alcançar um objetivo comum, demonstrando estar genuinamente comprometidos com a parceria.
Gago Coutinho era um renomado navegador e inventor, enquanto Sacadura Cabral era um experiente piloto (complementaridade) que se conheciam há anos por terem feito juntos vários trabalhos de geodesia e sobrevivido a muitas aventuras no interior da selva africana (confiança mútua). Em dueto, planearam e executaram a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, enfrentando inúmeros desafios e adversidades ao longo do caminho, mas sempre alinhados em fazer história (visão compartilhada).

Cabral realizou extensos preparativos antes da travessia, incluindo o planeamento meticuloso da rota, a seleção e preparação das aeronaves, e a análise cuidadosa das condições meteorológicas e das rotas de navegação, enquanto a habilidade de Coutinho em navegação astronómica foi crucial para determinar a posição da aeronave sobre o oceano, utilizando instrumentos como um sextante adaptado de sua invenção (funções claras).
Encarando desafios como condições meteorológicas adversas, cansaço físico e mental, e o desconhecido sobre o oceano, Coutinho e Cabral demonstraram coragem e determinação ao longo da jornada, partilhando decisões de forma colaborativa, tal como a resolução de amararem nos Penedos de São Pedro e São Paulo, umas minúsculas ilhas a 1680km de Cabo Verde, após 11 horas de voo e com dois litros de gasolina nos tanques! A necessidade de uma comunicação clara entre ambos (por escrito por via de um caderno de notas) era óbvia por não se conseguirem fazer ouvir já que a cabine não era coberta.

Durante a travessia, os aviadores enfrentaram contratempos e imprevistos, como problemas mecânicos nas aeronaves, pelo que a sua capacidade de se adaptar e superar esses desafios foi essencial para o sucesso da missão (flexibilidade e adaptabilidade). Coutinho e Cabral trabalharam em estreita colaboração como uma equipa, confiando um no outro e compartilhando responsabilidades para garantir o progresso seguro e eficaz da travessia.

A 17 de Junho, depois de aterragens forçadas e um resgate dramático no meio do Atlântico quando já estavam rodeados por tubarões, aterraram finalmente no seu terceiro hidroavião (os outros dois afundaram-se na viagem) na baía de Guanabara e cumpriram o seu sonho de comemorar condignamente os 100 anos de independência do Brasil e dando ânimo a um Portugal mergulhado numa grave crise económica.


Não há muitos casos de co-liderança na história de Portugal. Provavelmente, o nosso DNA é mais centralizador e menos virado para a cooperação e colaboração, a nível da liderança de topo. Gago Coutinho e Sacadura Cabral exemplificam, assim, uma excepção. Mas uma excepção de sucesso a merecer reflexão por todos os líderes de hoje.

Sócio da Egon Zehnder (Portugal)