O processo 5/05.5 tem um lugar na História

Discutir se os arguidos foram bem ou mal absolvidos no julgamento é uma discussão para os penalistas. Se traficaram ou não influências, é algo que a História julgará. 

Há processos judiciais que, seja pelos factos em causa, pela notoriedade dos réus e vítimas ou pelo período político a que se referem, têm um lugar na História de um país. Estão nessa categoria o assassínio de Sidónio Pais, o julgamento de Álvaro Cunhal ou os casos Ballet Rose e FP-25 Abril, por exemplo.

Na voragem das notícias do Brexit, das sanções a Portugal e do Europeu de futebol, passou despercebido que, a 8 de junho, ao pronunciar-se sobre um último recurso do Ministério Público (MP), o Tribunal Constitucional pôs fim a um processo que também conquistou um lugar histórico: o caso Portucale ou, como ficou também conhecido, o ‘processo dos sobreiros’.

É natural que muitos já não se lembrem dos factos, pois têm mais de 10 anos. A par dos crimes em causa – tráfico de influência, abuso de poder e falsificação de documento, pelos quais foram acusados e depois absolvidos em julgamento 11 arguidos – o Portucale é um documento ímpar de um certo período do país: a fase final do Governo PSD-CDS, de Santana Lopes e Paulo Portas, a demissão e sucessão deste no CDS, os primeiros meses da governação de José Sócrates em maioria absoluta e o lançamento das candidaturas às eleições presidenciais que se realizariam no início de 2006.

O processo contém horas e horas de escutas telefónicas que ‘apanharam’ alguns dos dirigentes e protagonistas políticos da época, sobretudo do CDS, mas também do PSD e do PS. Permitem perceber as suas verdadeiras motivações, mas também como funcionavam impunemente os grandes grupos económicos e financeiros (como o BES).

Em causa estava a viabilização, a contrarrelógio e nos dois meses anteriores às legislativas de 20 de fevereiro de 2005, do empreendimento Portucale, do Grupo Espírito Santo (GES), em Benavente. Por despacho dos ministros Nobre Guedes (Ambiente, do CDS), Costa Neves (Agricultura, PSD) e Telmo Correia (Turismo, CDS), foi declarada a utilidade pública do  empreendimento, autorizando de forma excecional o abate de 2.605 sobreiros, espécie protegida. No dia seguinte à publicação do despacho em Diário da República, os sobreiros estavam abatidos – sendo que o governo seguinte revogaria o despacho, declarando-o ilegal por não ter havido estudo de impacto ambiental.

O inquérito do Ministério Público – dirigido por Rosário Teixeira e com Carlos Alexandre como juiz de instrução – fora aberto nos primeiros dias de 2005, após uma agência do BES ter alertado que recebera 105 depósitos nas contas do CDS, em dinheiro vivo. As quantias variavam entre os cinco mil e os 12.500 euros, num total de cerca de um milhão de euros. Os depósitos tinham sido feitos por um funcionário do partido e avançou-se para escutas telefónicas a Abel Pinheiro, vogal da direção que tinha o pelouro das finanças além de líder do grupo Grão-Pará e distinto maçon. As escutas revelaram os contactos que desenvolvia junto dos referidos ministros e as diligências de gestores do GES para que o Portucale fosse viabilizado antes de o governo PS entrar em funções. Descobriu-se que o milhão de euros fora contabilizado pelo CDS como donativos, com falsos recibos. Que a Grão-Pará procurava financiamento urgente do BES e Abel Pinheiro gabava-se, ao telefone com dirigentes do GES, de lhes ter conseguido desencalhar projetos de 400 milhões de euros.

Foi também por essas conversas de Abel Pinheiro com Paulo Portas que surgiram as suspeitas de ‘luvas’ no concurso dos submarinos, o que deu origem a um inquérito próprio. Foi pelos seus telefonemas que se percebeu como, mal Sócrates chegou ao poder, Mário Soares começou a trabalhar no lançamento de um candidato às presidenciais. E como José Sócrates tentou, com a anuência de Portas, que o Presidente da República substituísse Souto de Moura, o procurador-geral da República incómodo que dera liberdade a uma série de inquéritos: o ‘animal feroz’ queria que Jorge Sampaio colocasse no seu lugar o jurista Rui Pereira, maçon e ex-diretor do SIS.

Discutir se os arguidos foram bem ou mal absolvidos no julgamento é uma discussão para os penalistas. Se traficaram ou não influências, é algo que a História julgará. Caso algum investigador veja interesse nisso e queira um dia consultar o processo no arquivo do tribunal criminal de Lisboa, aqui fica a referência: n.º 5/05.5TELSB.L1. A leitura recomenda-se.