Harry Potter: a globalização cultural e os dilemas da sociedade actual

1. Após uma longa espera (o novo livro foi anunciado em Outubro do ano passado e logo colocado em pré-venda na Barnes and Nobles e outras livrarias internacionais), os fãs de Harry Potter, finalmente, tiveram acesso ao guião da peça de teatro em exibição no Palace Theatre em Londres. A loucura é universal: nos topos…

2. Desde os miúdos (no sentido literal: assistimos, na semana passada, na Livraria Lello do Porto, ao episódio muito curioso de uma criança de oito anos pedir ao pai que adquirisse o livro do Harry Potter em inglês!) até aos graúdos (conhecemos pessoas que exerceram funções de grande relevância, a nível empresarial, e que estão a preencher uma parte da sua reforma lendo, senão mesmo relendo, os livros do Harry Potter). Este é mesmo o feitiço real que o Harry Potter tem produzido nos “muggles” (termo que no universo de feitiçaria “harrypotteriano” se refere aos eres humanos não feiticeiros): o de, de repente, todos os portugueses passarem a ler livros em língua inglesa fluentemente – e na sequência de uma manifestação de vontade própria, e não imposta. 

3. De facto, já muitas vezes sugerimos a leitura de livros, na sua edição original, em língua inglesa, a amigos e mesmo aos nossos alunos (como bibliografia de investigação sobre algumas matérias jurídicas) – e a resposta é invariavelmente a mesma: recusa total ou parcial, mais ou menos explícita, alegando que “ler em inglês custa muito, ao cérebro e à vista”. Pois bem, parece que o Harry Potter tem um efeito terapêutico sobre os portugueses. E ainda bem: afinal, trata-se de uma realidade cultural que acentua a dimensão cosmopolita e aberta ao mundo e à inovação dos portugueses. 

3.1.Aliás, em rigor, o “Harry Potter” – que acompanhou o fim da nossa infância, toda a adolescência e chegou à vida adulta, até aos dias de hoje – é o produto pioneiro da globalização cultural. O sucesso deste livro – desde o seu primeiro volume, embora não desde a primeira edição (esta parece que passou despercebida, só alcançando o sucesso transnacional em edição posterior) – mostrou que, afinal, os seres humanos – mesmo na sua dimensão de consumidores – são mais iguais do que aquilo que julgamos: partilham as mesmas preferências, as mesmas tendências e as mesmas “manias”. 

3.2. É verdade que já antes as figuras da Walt Disney, da Marvel ou da DC Comics alcançaram sucesso à escala planetária – mas este sucesso é de índole distinta do fenómeno Harry Potter. É que o fenómeno Harry Potter – ao contrário da Disney, do Batman ou do Super-Homem – já foi pensado para alcançar o mercado global: o dia de lançamento, em versão inglesa, ocorre no mesmo dia por todo o mundo; a publicidade é feita a nível planetário e não nacional; o principal instrumento de marketing já é as novas formas de comunicação digital, com especial incidência, neste último livro, nas redes sociais. 

3.3. Foi o Harry Potter que depois veio permitir outros fenómenos de globalização cultural de massas, mesmo para públicos diferenciados (pense-se, por exemplo, no sucesso, que irrita muito o José Pacheco Pereira, que foi a literatura erótico-pornográfica soft das “ 50 Sombras de Grey” e suas sequelas). Para os jovens, deixamos esta nota: o Harry Potter – e o acesso facilitado que temos a esta obra – só é possível porque vivemos num sistema aberto, pluralista, de base capitalista, que reconhece e valoriza o trabalho e a iniciativa privada. Acaso vivêssemos num mundo dominado por ideias socialistas, comunistas, proteccionistas, de esquerda ou de direita, o nosso mundo seria bem diferente. Para pior. Para muito pior…O Harry Potter poderia ser considerado “leitura subversiva”. Como é bonita – e tão valiosa! – a liberdade…

4.Dito isto, o que dizer do novo livro? Calma, caríssimo leitor, não vamos revelar o conteúdo ou dar as respostas para as questões que os admiradores do Harry Potter colocam em torno desta nova história. Não seremos “spoilers”. Bem sabemos que está a ler, ou tem intenções de ler, o livro muito brevemente (após de ter estado esgotado durante vários dias, o livro está de volta aos escaparates das livrarias nacionais – até quando?). Limitamo-nos a partilhar consigo três pistas de leitura: 

1)    J.K. Rowling, que partilha a escrita com dois consagrados do teatro britânico (Jack Thorne e John Tiffany), faz convergir nesta livro a autora de livros de aventura e fantasia (que Rowling era durante os anos em que se dedicou inteiramente à escrita de Harry Potter) e a autora que tentou a transição para a escrita de livros de ficção para adultos sobre temas mais comezinhos e, por isso, mais reais (ou mais reais porque mais comezinhos?). No entanto, esta mistura das duas facetas da autora nem sempre é feliz no livro “Cursed Child” (criança amaldiçoada, numa tradução literal) e nem mesmo o génio e a experiência de Jack Thorne e John Tiffany conseguem manter a chama do “suspense”, da inquietação dramática e a intensidade da aventura que caracterizaram os livros de Harry Potter. Admitimos que tais marcas distintivas de Potter apareçam com mais nitidez na encenação da peça, com os vários efeitos especiais que foram concebidos para interagir com o público e introduzi-lo no universo de Potter;  

2)    A história gira em torno dos dois valores clássicos espelhados nas obras de J. K Rowling: o amor e a amizade. No entanto, fruto da sua tentativa de abandonar Potter e iniciar-se na “narrativa para adultos” (qualificação que nos parece muito infeliz), este livro-guião apresenta como problemas centrais a dificuldade do exercício das responsabilidades parentais (Harry Potter questiona-se amiúde sobre a sua competência como pai e se terá falhado na educação do filho, Albus Potter) e os limites da acção política democrática (com Hermione Granger, exercendo as funções de Ministra da Magia, a reflectir sobre se é possível derrotar o mal sem infringir as regras estabelecidas, ou seja, “democraticamente legitimadas”);

3)    O mal – personalizado ou “feiticeirizado”  em Lord Voldmort – não foi, ainda, definitivamente derrotado. Escapou mais uma vez – embora com o aparecimento surpresa de uma filha, arguta e igualmente maliciosa. Será uma metáfora para simbolizar que, no nosso mundo, o mal não tem fim, conseguindo sempre regenerar-se – ou apenas uma técnica comercial para prolongar o “franchise”? Nem todo, porém, são más notícias: Draco Malfoy – o filho de Lucifer Malfoy, servidor das forças do mal- converteu-se ao bem, revelando ser uma “pessoa boa”, gentil e disponível. Afinal, o mal sempre poderá ser convertido pelo bem – desde que tenha vontade e força de espírito para tal…Assim é no mundo de Harry Potter, idealizado por J.K. Rowling. Será assim no nosso mundo, no mundo real? Pedimos desculpa pelo lapso aos “harrypotterianos” mais puristas: será assim no mundo…”muggle”? 

joaolemosesteves@gmail.com