Viver para Contar: O palavrão democratizou-se

Julgo que as raparigas fazem hoje gala em utilizar palavrões, pois é um sinal de ‘igualdade de género’. O feminismo fomentou o seu uso por parte das mulheres.

Até há uns 20 ou 30 anos, só os homens diziam palavrões. Ou melhor: a esmagadora maioria das mulheres não dizia palavrões. Apenas em grupos muito circunscritos, como as prostitutas ou as varinas, isso se verificava. Inversamente, não havia homem digno desse nome que não usasse e abusasse do palavrão. E então nos meios reservados ao género masculino, como o futebol ou a tropa, diziam-se dez palavrões em cada cinco palavras. O palavrão era mesmo tido como um sinal de virilidade. Quem não o usasse era gozado pelos outros e rotulado de ‘menino da mamã’ ou ‘mariquinhas’.

Um dia fui treinar aos infantis do Belenenses, clube de que o meu avô materno foi fundador. No balneário, enquanto nos equipávamos, os palavrões ferviam. Os miúdos tinham 10 ou 11 anos mas já sabiam o ‘vocabulário’ todo. Fiquei tão mal impressionado que nunca mais voltei a um treino. E não era propriamente uma flor de estufa: passava as tardes a jogar à bola na rua com rapazes pobres da minha idade. Mas estes, apesar de não serem uns santos, eram bem mais comedidos na linguagem.

QUANDO eu tinha para aí 13 anos e o meu irmão mais velho 17, fizemos uma lei segundo a qual quem dissesse um palavrão em casa pagava ao outro 5 tostões. Ao fim de pouco tempo eu já tinha uma quantia razoável a receber, ao ponto de o meu irmão desistir do jogo. Mas isso ajudou-nos a falar melhor.

Sempre pensei que o progresso e o avanço da educação contribuíssem para reduzir o uso do palavrão. Até porque este era muito associado aos meios pobres, aos bairros degradados.

Além disso, com o fim progressivo dos ambientes exclusivamente masculinos – com as mulheres a começarem a ir para a tropa e a frequentar o futebol –, o resultado provável seria a diminuição significativa do uso de palavrões por parte dos rapazes. Até porque, até aí, os homens evitavam dizê-los na presença de mulheres – e, quando se descuidavam, pediam desculpa.

Sucede que, perante a surpresa de muitos, verificou-se o fenómeno oposto: as raparigas começarem a dizer palavrões com a maior descontração. Hoje, quando passamos por um grupo de raparigas, só por sorte não ouvimos um sonoro palavrão. O palavrão democratizou-se. Julgo até que as raparigas fazem hoje gala em utilizá-lo, pois é um sinal de ‘igualdade de género’. De certo modo pode dizer-se que o feminismo fomentou o uso de palavrões por parte das mulheres.

Mas que importância tem isso? – perguntarão alguns leitores ou leitoras.

Tem muita. Em primeiro lugar, o uso frequente do palavrão conduz a uma certa falta de respeito entre as pessoas. Em segundo lugar, o recurso ao palavrão empobrece imenso a linguagem. A palavra «m…», por exemplo, substitui todos os adjetivos: «É feio como a m…», «É estúpido como a m…», etc. E com a palavra «c…» sucede o mesmo: «É grande como o c…», «É alto como o c…». Basta o leitor tentar substituir as palavras «m…» e «c…» por outras para perceber até que ponto o uso daquelas facilitou a vida ao ‘utilizador’, atrofiando-lhe a capacidade de expressão.

As redações dos jornais e das televisões, sendo hoje maioritariamente femininas e constituídas por pessoas que usam a língua como ferramenta – além de terem em geral formação universitária –, deveriam constituir exemplos de locais onde o palavrão não entrava ou se usava pouco. Mas, com raras exceções, passa-se o contrário. Nas redações, os palavrões abundam.

Desgraçadamente, a mistura de homens e mulheres, que hoje existe em praticamente todos os ambientes de trabalho, não contribuiu para uma elevação recíproca. Pelo contrário. Homens e mulheres têm-se potenciado uns aos outros naquilo que há de pior. O palavrão (como o tabaco) vulgarizou-se. Dizer palavrões e fumar tornou-se um modo de afirmação das mulheres nesses meios.

Como noutras áreas da sociedade, a democratização teve como consequência o abaixamento do nível da linguagem. A democracia degenerou em mediocracia. Basta sintonizarmos a TV num desses programas tipo Casa dos Segredos para percebermos até que ponto isso é verdade.