Filhos de ninguém

Passámos das teorias do determinismo hereditário lançadas por Lombroso no fim do século XIX, que originaram as mais tenebrosas discriminações, para o seu reverso, igualmente mecanicista e indiferente à singularidade das pessoas concretas.

A Associação Portuguesa de Fertilidade lançou agora uma campanha nacional em prol da doação de óvulos e espermatozóides por parte de estudantes universitários. Para começar, o apelo aos jovens que prosseguem estudos superiores parece-me discriminatório: o esperma e os óvulos de jovens operários, caixas de supermercado, agricultores ou cabeleireiros, serão de menor qualidade?

Mas o problema começa antes: dar material genético para fazer bebés não é o mesmo que dar sangue ou medula. As crianças que nascerão dessa doação biológica serão filhos biológicos dos seus doadores.

Nada me move contra a paternidade de substituição, antes pelo contrário: tenho escrito reiteradamente sobre o infortúnio que constitui, para demasiadas crianças, a ideia, arreigadíssima em Portugal, de que os filhos são propriedade de quem os gera. Quem gera nem sempre tem capacidade para assumir a responsabilidade parental; mas cada ser que nasce tem direito a saber de quem é filho.

A herança genética não é determinante, mas também não é indiferente – se o é, para quê gastar dinheiro em técnicas de procriação medicamente assistida? Se a hereditariedade não conta, por que não se diz aos que não conseguem ter filhos que os adotem?

Vivemos, portanto, numa situação de dois pesos e duas medidas: entende-se que as pessoas inférteis têm direito a ter filhos tão biológicos quanto possível, mas que as crianças nascidas de manipulação genética não têm direito a saber de quem são biologicamente descendentes.

Isto é mais do que hipocrisia: representa uma completa ausência de empatia em relação aos direitos e sentimentos alheios. O respeito pela singularidade e pela identidade do outro tem origem neste princípio básico: não são os pais quem tem direito a ter filhos, é o contrário. Será tão difícil de entender?

O anonimato genético cria, aliás, outros problemas.

Comecemos pelas doenças hereditárias – que não se referem apenas a pais, mas também a ascendentes mais recuados, pelo que não podem ser despistadas por completo nos testes para doação de sémen ou óvulos.

Conheço uma mulher cujo filho nasceu com uma deficiência grave, que ela veio a descobrir ter herdado do pai – que só soube quem era depois de o filho ter nascido.

Mesmo que o avanço científico consiga eliminar muitos perigos, a questão do anonimato da doação deixará sempre em aberto a interrogação sobre o incesto: quem garante a uma pessoa que não sabe de quem é filho que o seu parceiro sexual não é seu pai, ou sua mãe, ou sua irmã?

Este nosso tempo enche a boca com a ‘identidade’ ao mesmo tempo que a nega.

Uma das conquistas da democracia foi o fim dos segregados “filhos de pai incógnito”. Dir-me-ão que agora já ninguém segregará outrem por não conhecer a sua família biológica. Mas o ser biológico pensante que cada um de nós é interroga-se permanentemente sobre as suas origens – e tem direito a saber de quem herdou as características genéticas que possui.

Pode fazer com isso, emocionalmente, o que quiser – mas tem o direito a saber. Se quem o criou teve direito a escolhê-lo com características hereditárias – e por isso preferiu “fazê-lo” a adotá-lo -, ele tem igual direito a saber de onde vem a metade dele que desconhece.

Idêntica questão se põe com as barrigas de aluguer: ao mesmo tempo que somos bombardeados com informação cada vez mais pormenorizada sobre a importância da ligação mãe-filho durante a gravidez – e sacralizamos a amamentação, cada vez mais prolongada – decidimos que se pode usar uma barriga como simples mala de um filho alheio.

Sou imune à beatificação da gravidez, e mais ainda à transformação das mães em fábricas de leite: modas que se traduzem em instruções da Organização Mundial de Saúde talhadas à medida das necessidades laborais; quando cresce o desemprego, as mães tornam-se essenciais, para desertarem do mercado de trabalho e deixarem os empregos para os homens.

Essas almas extremosas que andam a lutar para ampliar os prazos da licença de amamentação não devem ter pensado no lindo serviço que estão a prestar às mulheres que começam agora a sua vida laboral. Entre dois seres com as mesmas habilitações, se um pode ficar seis meses em casa e outro não, qual escolherá o empresário?

Desta forma, é natural que as jovens considerem alugar a barriga durante 9 meses, para sobreviver. Há formas de prostituição mais agradáveis, e menos auto-destrutivas.     

inespedrosa.sol@gmail.com