Sobre o direito a não ser julgado na morte

      

Há em Portugal, nos portugueses, uma tendência quase natural de jogar aos opostos. Se é isto, não pode ser aquilo também. Se se acredita em algo, não se pode aceitar que o contrário seja igualmente válido, apenas não objeto da nossa crença.

É assim, por exemplo, em relação aos artistas. Se é cantor, não pode ser ator também. Se trabalha com fado, não pode ter uma incursão noutro género, sob o risco de ser considerado traidor. E é assim também em assuntos bem mais fundamentais. Da vida e da morte.

Foi, por exemplo, aquilo a que se assistiu aquando da recente discussão acerca da eutanásia. Segundo muitos dos intervenientes nela, aqueles que defendem a despenalização da morte assistida estão obrigatoriamente contra a rede de cuidados paliativos. Sofro de uma total incapacidade de entender este olhar.

Sou, sem qualquer hesitação, defensora da despenalização da eutanásia. Mas sou igualmente defensora de uma rede de cuidados paliativos o mais alargada possível. E não percebo onde uma choca com a outra. Nem conheço ninguém que defenda a eutanásia e deseje, por isso, terminar com os cuidados paliativos – e por isto também não percebo porque é que os defensores destas unidades se sentem no papel de negar o direito à eutanásia daqueles que assim o desejarem.

Desejar ter algum controlo sobre a sua morte nada tem – ou nada deveria ter – a ver com desejar o fim do direito a cuidados paliativos. E o contrário também se deveria verificar. Até porque ambos os olhares assentam num conceito comum: dignidade. E o direito a morrer com dignidade, seja através da prática da eutanásia ou através do recurso a uma unidade de cuidados paliativos, não deveria ser alvo de jogo político, de julgamento religioso ou de olhar pernicioso. Somos julgados por tanta coisa na vida, fará sentido sermos julgados pela forma como queremos encarar a chegada da morte?