O “Dilema de Malaca” e as rotas marítimas Trans-Pacífico e do Ártico

Para reduzir a exposição ao Estreito de Malaca, Pequim continuará a abrir novas rotas e corredores marítimos

Como já vimos em anteriores artigos, um dos grandes receios de sucessivas lideranças da R. P. China é o chamado “Dilema de Malaca”, o medo de que, em caso de conflito aberto com outras potências, seja imposto um bloqueio naval em relação a produtos provenientes de ou com destino à China, via Estreito de Malaca (por onde passam 90% de todo o comércio externo chinês).

Para mitigar este receio, a China tem procurado diminuir a sua dependência do Estreito de Malaca através de vários novos corredores terrestres, garantir passagens marítimas alternativas na Indonésia e explorado a hipótese do Canal Kra na parte tailandesa da Península Malaia. Mas a dependência do comércio marítimo é tão grande que as autoridades chinesas têm prestado atenção a outras rotas marítimas: (i) através do Oceano Pacífico, via Canal do Panamá; e (ii) às Rotas do Ártico.

A Rota Trans-Pacífico através do Canal do Panamá

Uma das rotas alternativas de comércio marítimo [entre o Extremo Oriente e a Europa] é a rota que atravessa o Oceano Pacífico e o Canal do Panamá. Com o alargamento do Canal do Panamá em 2016, tornou-se possível para os porta-contentores Neopanamax transportar até 14000 TEU (anteriormente, os cargueiros Panamax estavam limitados a 5000 TEU), o que está a levar alguns armadores a considerar uma rota entre o Extremo Oriente e a Europa através do Canal do Panamá com navios Neopanamax ou pós-Panamax Plus. E já está previsto um novo alargamento do canal para permitir a passagem de porta-contentores com capacidade até 20.000 TEU.

72,5% do tráfego total que flui através do Canal do Panamá começa ou termina nos EUA; o volume de carga da China representa 22,1%, o do Japão 14,7%, o da Coreia do Sul 10,1%. Atualmente, uma grande parte do comércio marítimo flui da Ásia para os EUA.

Alguns analistas argumentam que a rota marítima Trans-Pacífico para a Europa ainda não é competitiva. Mas é uma rota de grande importância estratégica para a China. Tem a vantagem de o seu comércio externo não depender de tantos fatores exógenos fora do seu controlo. É claro que, embora o Canal do Panamá seja agora operado e administrado por uma Autoridade do Canal do Panamá (uma agência do governo do Panamá), o seu acesso também poderia ser limitado por um bloqueio naval. Mas está longe da costa da China e é menos provável que um bloqueio naval seja feito lá; no entanto, no Tratado que transfere o controle sobre o Canal, os EUA reservaram o direito de exercer força militar em defesa do Canal do Panamá “contra qualquer ameaça à sua neutralidade”. O potencial desta rota depende da facilidade com que os navios mercantes de e para a China podem usar os vários canais de navegação entre a costa chinesa e o Oceano Pacífico. Esta é uma das razões para os avanços diplomáticos da China com países do Oceano Pacífico.

O interesse da China no Canal do Panamá parece claro. Em consonância com a BRI (à qual o Panamá foi o primeiro país latino-americano a aderir em 2018), empresas chinesas estiveram envolvidas em contratos relativos a infraestruturas do Panamá dentro e ao redor do Canal nos setores de logística, eletricidade e construção. As empresas chinesas estão posicionadas em ambas as extremidades do Canal do Panamá por meio de contratos de concessão portuária. A Hutchison Ports PPC, uma subsidiária da CK Hutchison Holdings, com sede em Hong Kong, é a operadora dos portos de Balboa e Cristobal, dois grandes hubs das saídas do Canal, no Pacífico e no Atlântico, respetivamente. Em 2016, num acordo de $900 milhões de dólares, o Landbridge Group, com sede na China, adquiriu o controle da Ilha Margarita, o maior porto do Panamá no lado do Atlântico e na Zona de Livre Comércio de Colón, uma zona de comércio livre muito grande. O acordo estabeleceu o Porto de Contentores Panamá-Colón (PCCP) como um porto de águas profundas para mega-navios, e a construção e expansão foram realizadas pela China Communications Construction Company Ltd (CCCC) e pela China Harbour Engineering Company Ltd (CHEC).

A importância estratégica para a China desta Rota Trans-Pacífico através do Canal do Panamá é o que está subjacente ao interesse da Ningbo Zhoushan Port Co., Ltd., a empresa pública chinesa que gere o porto de Ningbo-Zhoushan, pela concessão do novo terminal de mercadorias do porto de Sines, atento o elevado potencial para criar um  novo pólo logístico de entrada na Europa.

As Rotas do Ártico

Outras rotas marítimas alternativas para navios mercantes entre o Extremo Oriente e a Europa são as rotas do Ártico (também chamadas Rotas Marítimas do Norte – NSR). Uma delas é a “Passagem do Noroeste” do Canadá, mas ainda tem muitas insuficiências em termos de apoio logístico ao longo da rota nos canais de navegação do Canadá. A NSR principal corre ao longo das águas russas no Oceano Ártico. Uma vantagem das NSR é que elas podem reduzir significativamente o tempo de viagem entre o Extremo Oriente e a Europa. A distância de navegação pela NSR de um porto do noroeste europeu para o Extremo Oriente é aproximadamente 40% menor em comparação com a rota do Canal de Suez. Um porta-contentores proveniente da China ou da Coreia do Sul pode demorar cerca de 34 a 40 dias a chegar a Roterdão, o principal porto europeu. Em contrapartida, na NSR os navios podem demorar cerca de 23 dias.

Há vários anos, a China COSCO Shipping Corp e a A.P. Moller – Maersk A/S concluíram viagens testando essas rotas marítimas do Ártico, onde se espera que o derretimento gradual do gelo permita que a rota opere durante todo o ano regularmente; atualmente opera apenas durante a “temporada de navegação”. As autoridades russas acreditam que esta NSR pode ser viável para navegação regular durante todo o ano até 2035. Em 2023, a Novatek, maior produtora de GNL da Rússia, enviou um total de 31 cargas de GNL, ou 2,27 milhões de toneladas, do terminal de GNL de Yamal Arctic para a Ásia (incluindo a China), durante a temporada de navegação. Petroleiros ice-class, navios metaneiros com casco reforçado como um quebra-gelos e capazes de cortar gelo de 2 metros de espessura, estão a ser construídos nos estaleiros da Zvezda (na Rússia), da Guangzhou Shipyard International Co. Ltd (na China; desde 2018) e da Hanwha Ocean Co. (na Coreia do Sul).


As Rotas do Ártico serão operadas tanto mais cedo quanto o gelo do Oceano Ártico derreter devido ao aquecimento global. Vários estudos científicos confirmam que o Ártico está a aquecer quatro vezes mais depressa do que o resto do mundo. Este aquecimento acelerado do Ártico, com uma maior incidência acima do Círculo Polar Ártico, está a derreter grandes áreas até agora cobertas por gelo, incluindo o permafrost na parte norte da Sibéria. A navegabilidade do Oceano Ártico tornará a Rússia incontornável no comércio marítimo internacional durante décadas. A partir de 2035-2040, uma percentagem significativa do comércio marítimo que atualmente atravessa o Estreito de Malaca e o Canal de Suez será desviada para a NSR, reduzindo assim significativamente o risco subjacente ao dilema de Malaca. Portanto, não é surpreendente que a Rússia e a China tenham concordado em desenvolver conjuntamente uma NSR, chamando-o de “Rota da Seda Polar”.


Conclusão

A liderança e os estrategas da China continuam a considerar o Dilema de Malaca como uma ameaça relevante à segurança económica chinesa. O Dilema de Malaca funciona também como um forte dissuasor de graves conflitos de segurança ou defesa no Mar do Sul da China. A proteção dos seus interesses marítimos tornou-se e continuará a ser uma preocupação primordial da R. P. China. Este desafio geopolítico continuará a ser um importante motor das estratégias e das relações internacionais da R. P. China a médio e longo prazo.

Para reduzir a exposição ao Estreito de Malaca, novos corredores económicos e rotas marítimas continuarão a ser abertos por Pequim, no âmbito da sua diplomacia económica. A BRI é uma das ferramentas mais relevantes da China para este fim. No entanto, apesar das tentativas de diversificação de rotas, a China continuará dependente do Estreito de Malaca a curto e médio prazo. Para garantir a existência de rotas alternativas, a R. P. China procurará reforçar o seu envolvimento com vários outros países, seja mediante um incremento do comércio externo seja mediante investimentos relevantes, que criem uma interdependência económica “mutuamente vantajosa”.

Consultor e ex-Secretário de Estado da Internacionalização