Ana Gomes: ‘Durão foi parar aos interesses que sempre serviu’

Polémica como sempre, Ana Gomes não estranha ver Barroso na presidência do Goldman Sachs. E defende que «não há uma maioria de governos socialistas» na UE, que possa proteger Portugal de sanções.

Ana Gomes: ‘Durão foi parar aos interesses que sempre serviu’

Surpreendeu-a a nomeação do antigo presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, para presidente do banco Goldman Sachs?

Infelizmente, não estou surpreendida. De há muito tempo para cá, estou convencida que Durão Barroso funciona como um elemento daquele tipo de indivíduos que presidem a bancos como esses, que são bancos gangsters. Portanto, não estou realmente surpreendida. É a assunção por parte de Durão Barroso de que pertence a esse tipo de elite, se assim se pode dizer. Como eurodeputada, já subscrevi várias iniciativas que pedem o acionamento do artigo 245.ª do tratado sobre o funcionamento da União Europeia, invocando uma ação legal por violação desse artigo. Ele, ao assumir essas funções, está a violar o que dispõe esse artigo.

Portanto, viu a nomeação como um ato normal, tendo em conta a pessoa de que se trata?  

Durão Barroso é uma pessoa que teve responsabilidades políticas claras na invasão Iraque, como anfitrião da cimeira das Lajes. Sabia perfeitamente que estava atuar na base de informações que eram mentirosas. Sei bem o que foi dito em reuniões que mantive com ele enquanto responsável do PS pelas relações internacionais. Ele tinha a perfeita noção de que não só estava a violar o direito internacional, como a atuar na base de informações que eram mentirosas. Não teve escrúpulos em fazer o que fez, politicamente. Estamos a falar de uma pessoa que foi primeiro-ministro de Portugal,  com intervenção direta também no contrato dos submarinos. Fui assistente neste processo e sei do que falo. Foi responsável por todo o processo de colaboração das autoridades portuguesas com os chamados voos de tortura da CIA. Por isso não me espanta que, com todos estes casos, tenha ido parar aos interesses que sempre serviu – ao grande capital financeiro, sem escrúpulos e desejoso da desregulação financeira.

Voltando ao artigo 245º do tratado. O que diz?

Basicamente, o articulado exige respeito pelas obrigações que decorrem do tratado e, em particular, o dever de se comportar com integridade e com sentido de julgamento no que toca à respetiva aceitação. Depois de ter exercido aquelas funções [presidente da comissão], ficar à frente de um banco que tem o registo criminal que o Goldman Sachs tem – um registo criminoso, em termos políticos –, designadamente ao violar regras da própria União ao ajudar países a martelar contas, desrespeitando os seus próprios preceitos. Isso, por si só, enquadra-se numa conduta violadora desse artigo do tratado.

E o que exige, então?

O intergrupo Integridade e Transparência contra a Corrupção e Crime Organizado do Parlamento Europeu (PE), do qual faço parte, apela ao presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker, para atuar legalmente na base da violação desse artigo do tratado.

E isso pode implicar, em concreto, o quê? 

Primeiro, pode levar à abertura de um procedimento formal sobre a aceitação daquelas funções. Depois, logo se verá. Pode haver, por exemplo, uma investigação. Só sei que há uma violação daquele artigo do tratado. Eu e outros entendemos que essa nomeação de Durão Barroso implica uma violação desse articulado. 

E como se pode evitar a repetição de situações futuras?

Este precedente criado por Durão Barroso obrigaria a períodos de nojo mais prolongados e a restrições mais explicitadas. Todavia, penso que a Comissão deve agir já neste caso. Há vários dos atuais comissários e deputados que têm manifestado indignação pela atuação do anterior presidente da Comissão, invocando conflito de interesses e grave dano sobre a credibilidade daqueles que hoje exercem essas funções. E o Parlamento Europeu já esta a tomar iniciativas, através do envio de perguntas formais a Jean-Claude Juncker.

Como vê a anunciada aplicação de sanções a Portugal e Espanha?

Ainda não há uma decisão, há a abertura de um procedimento. Só vejo isso como uma tentativa da Comissão em responder às fortes pressões de setores do governo alemão, designadamente os representados por Schäuble (que eu chamo ‘Dr. Strangelove’). Querendo ou não, está a conseguir destruir esta União Europeia (UE). A Comissão parece querer ser salomónica, mas de uma justiça que não é só duvidosa: é verdadeiramente questionável. Muito injusta no que se refere concretamente a Portugal. A Comissão, tudo o indica, abriu um procedimento por infração e poderá estar tentada, depois de ouvir governos envolvidos, a aplicar uma sanção zero. Mas isso não reduz o impacto extremamente negativo para a reputação do país que resulta de toda esta argumentação e contra-argumentação. E todo este período de incerteza com todas as especulações a que se presta. A atuação da Comissão é injusta em termos relativos e absolutos. 

Mas houve défice excessivo. Como justificaria a ausência desse procedimento por défice excessivo?

Porque vai atuar em relação a Portugal e a Espanha e não em relação a outros países que têm exatamente o mesmo tipo de infração, como é o caso de França. Portanto, em termos de justiça relativa, é injusto. Em termos absolutos, também é injusto. Estamos a falar de um ano, 2015, em que o responsável foi o anterior governo. Um anterior governo que mereceu os maiores elogios da Comissão e de outros governos, designadamente do alemão, através do ministro Schäuble. Ainda por cima, o desequilíbrio do défice resultou, em boa parte, de um caso escandaloso – mais um –, em que a Comissão não atuou quando devia, e podia tê-lo feito, quando integrou a troika e esteve em Portugal até para sanear a banca. Não atuou no caso do BES e não atuou no caso do Banif e é deste último que acaba por resultar o desequilíbrio na execução orçamental de 2015.

Encontra uma razão para essa atitude da Comissão?

Só se explica porque estamos numa fase muito difícil da própria UE. A Comissão tem sido enfraquecida por ataques de governos que querem puxar por uma deriva intergovernamental e abalar o método comunitário. Neste caso, atacar a Comissão e enfraquecê-la é para eles instrumental. No fundo, servimos de instrumento para essa estratégia que é digna de um ‘Dr. Strangelove’, ou seja, de quem quer efetivamente destruir a própria união e não se importa com as consequências do que faz.

Mas não há uma maioria de comissários socialistas, de governos socialistas na Europa? 

Isso não é verdade. Não há uma maioria de governos socialistas: há governos que têm coligações onde estão socialistas. São socialistas, mas pouco. Até porque se estão em determinadas coligações são, por si, a demonstração de que são pouco socialistas. Dou o exemplo de Dijsselbloem, presidente do Eurogrupo, e do comissário e vice-presidente Frans Timmermans. Em matérias económicas, são mais papistas do que os alemães. Há, por outro lado, pessoas como o próprio comissário português, Carlos Moedas, que, não sendo socialistas, revelam um bom senso elementar, um sentido europeísta elementar, chamando a atenção para como contraproducente é aplicar sanções. Por isso, a divisão não se faz por famílias políticas. Faz-se mais por quem é subordinado, quem é lacaio e quem não é.

Viajando da Europa para África, mais concretamente Angola: como viu a recente libertação dos ativistas políticos?

Fiquei muito satisfeita por ver os ‘revus’ em liberdade. Sem dúvida que a reação da comunidade internacional, onde se inclui o Parlamento Euorpeu, não só deu ânimo aos jovens para resistirem como levou as autoridades angolanas a perceberem que era um total disparate, sem ponta de credibilidade política, o processo judicial que montaram para tentar intimidá-los e a todos aqueles que em Angola se revoltam contra a desgovernação, a roubalheira e a cleptocracia instituída.  Infelizmente, penso que a procissão ainda vai no adro em matéria de degradação da vida política angolana, já sem qualquer pretensão de qualquer transparência ou democraticidade, como se viu, de resto, com a recente nomeação da filha do Presidente para gerir a máquina de fazer dinheiro do regime que é a Sonangol e com o filho a controlar o fundo soberano. Infelizmente, com muita angústia e em total solidariedade com o povo angolano, lamento dizer que não me parece, por muito importante que tenha sido esta descompressão com a libertação dos ‘revus’, que as condições políticas e económicas vão melhorar daqui em diante.

Os ‘revus’ poderão integrar uma lista com, candidatos ao prémio Sakarov que distingue quem luta pela defesa dos direitos humanos?

Sou uma das deputadas que mais acompanham todos os assuntos que se relacionam com a formação do consenso para a formação das listas dos prémios Sakarov. Aliás, foi recentemente criada uma rede com os laureados deste prémio. Tenho trabalhado muito com eles e é um prémio muito importante. Tem sido prática atribuí-lo a pessoas que precisam de visibilidade e proteção da atividade notável que desempenham, na defesa dos direitos humanos. Não quero avançar mais nessa matéria. O Parlamento Europeu está a iniciar o processo de seleção do laureado. Em setembro, quando voltarmos às sessões, haverá várias propostas. Entretanto, já subscrevi uma delas. E fico por aqui. 

Foi eleita recentemente vice-presidente de uma comissão de inquérito no Parlamento Europeu que vai tratar do caso ‘Papéis do Panamá’. O que se pode esperar desse trabalho, designadamente nas ligações a Portugal?

Estou muito empenhada em trabalhar nesta comissão, em articulação com um enfoque em Portugal. Espero que todos os portugueses que tenham elementos que possam ser úteis não hesitem em canalizar essas informações para a comissão, que tem poderes para investigar diversos tipos de crimes, designadamente ligados ao processo de branqueamento de capitais. Há todo um conjunto de casos que aparecem associados a Portugal e que podem ter relevância para o tipo de investigação que vai acontecer nesta comissão. Para já, a comissão tem um ano para apresentar um relatório, mas o prazo pode ser prorrogado. As sessões arrancam em setembro, com audições, e recordo que estas comissões de inquérito têm meios e capacidade de investigação real. 

Havendo referências a entidades e a cidadãos portugueses, estes poderão ser chamados a depor?

Sim, é possível. Já houve uma primeira reunião constitutiva. É indiscutível que vamos fazer investigações sobre vários países e casos. Muitas vezes estamos a falar de multinacionais. Portanto, não excluo essa possibilidade. Iniciei diligências e contactos com várias entidades, já no quadro das minhas responsabilidades na comissão, pedindo dados e informações relevantes e que podem levar-me a propor determinadas linhas de investigação que incidam sobre Portugal e cidadãos portugueses.