António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa voltam hoje a sentar-se à mesa, depois de uma semana de avisos e recados à distância e no dia em que chega a Belém a lei do acesso aos dados bancários. O primeiro-
-ministro até já pôs água na fervura, depois de um discurso mais duro na rentrée socialista, mas as declarações do Presidente ontem, em Nova Iorque, mostram que não vai abdicar de intervir e de puxar o governo ao centro.
“A realidade é mais forte do que a ideologia”, avisou Marcelo, quebrando a regra de não falar de política nacional no estrangeiro.
A frase era a resposta a uma pergunta do público depois de uma intervenção na Câmara de Comércio Luso-Americana.
E surge no final de uma semana em que o debate político assumiu um tom marcadamente ideológico, depois da polémica em torno de um novo imposto, em estudo, sobre património imobiliário global.
As palavras de Rebelo de Sousa são ainda mais relevantes tendo em conta a pergunta que lhe foi dirigida. A questão era sobre a alegada rigidez das leis laborais portuguesas e, depois de o Presidente admitir que serão, também aí, necessárias reformas, a pergunta que suscitou o reparo foi: “E se houver um governo demasiado orientado para manter estas leis?”
Rebelo de Sousa recordou o capital de quem já “viveu muito e viu muitas coisas” para sublinhar a forma como a realidade se deve impor à ideologia e para deixar claro que acredita que é isso mesmo que se irá passar. “Se for necessário, Portugal irá, no futuro, fazer as mudanças necessárias para atrair investimento”, avisou Marcelo.
O aviso não é inocente. “A oposição não está a fazer o seu papel e é normal que o Presidente vá fazendo alertas”, aponta uma fonte próxima de Marcelo Rebelo de Sousa, explicando que também assim se justifica a forma interventiva como o Presidente tem desempenhado o seu mandato.
Na intervenção em solo americano, o Presidente falou na necessidade de criar um “novo tipo de Estado” e “condições fiscais para atrair investimento”, voltando a um discurso semelhante ao que fez depois de se conhecer a intenção do governo de desenvolver um imposto para taxar património imobiliário acima de um determinado montante.
Mas se Marcelo até já tinha feito alertas sobre a necessidade de não fazer leis que pudessem afastar o investimento, esta é a primeira vez que fala sobre reformas na área laboral.
Recorde-se que esta semana foi notícia a criação de um limite para os contratos de trabalho temporários que são usados sobretudo por empresas de call center. A notícia avançada pelo “Jornal de Negócios” parte de uma ideia que está a ser estudada num dos grupos de trabalho formados pelo BE e pelo governo.
O i sabe que o desenho da medida ainda está em estudo – à semelhança do que acontece com o imposto sobre os imóveis –, mas as palavras do Presidente podem ser mais um aviso à navegação para António Costa.
GUERRA à vista? Depois de tornar claro no discurso da rentrée socialista que considera fundamental alargar o acesso do fisco aos dados bancários dos cidadãos, António Costa deixou passar sinais de que as preocupações do Presidente não caíram em saco roto.
Esta semana, uma notícia no jornal “Público” dava conta de restrições que visam tornar mais apertado o acesso dos funcionários das Finanças aos dados das contas bancárias com saldos superiores a 50 mil euros. O jornal citava o Ministério das Finanças para explicar que o acesso “será restrito e sujeito a autorização”, seguindo as “regras agravadas” de segurança previstas na Lei da Proteção de Dados Pessoais.
A garantia vai ao encontro de alertas feitos pelo Presidente sobre a necessidade de proteger a privacidade de contribuintes que não são suspeitos de nada. Mas Marcelo tem também dúvidas sobre o facto de o acesso aos dados estar ligado a um saldo superior a 50 mil euros. E sobre isso, ainda não houve qualquer indício de recuo.
Certo é que só hoje o Presidente deverá ter acesso ao texto da lei, uma vez que o governo esteve à espera que Rebelo de Sousa regressasse da viagem aos Estados Unidos para enviar o diploma para Belém.
Apesar disso, e com base no que é público, a inclinação do Presidente é para vetar a lei. Se o fizer, será a primeira vez que veta um decreto-lei. E como se trata de um diploma do governo e não da Assembleia da República, será impossível reconfirmar a lei – isto é, depois de um veto presidencial, a proposta cairá por terra.