“Uma educação do século XIX para os alunos do século XXI”
CARLOS OLIVEIRA
CEO da Fundação José Neves
Necessitamos de uma reforma profunda do sistema educativo em Portugal, como de outros sistemas, porque o mundo está a evoluir a uma velocidade enorme e nós continuamos a ter um sistema de ensino baseado em modelos que foram importantes para tirar o mundo do analfabetismo, mas que já não se aplicam. Nós temos hoje uma educação do século XIX com professores do século XX para alunos do século XXI.
Temos um desfasamento que se vê com os dados relativos às competências que as pessoas têm quando chegam ao mercado de trabalho. Precisamos de um sistema de ensino que olhe centralmente para aquilo que é o core, que são os alunos e os portugueses, e que lhes dê as competências adequadas para um futuro próximo e longínquo de sucesso. A educação tem de ser um elevador social e nós precisamos de reformas profundas que vão desde as metodologias aplicadas às metodologias pedagógicas, aos conteúdos e à forma.
Nós temos, hoje, apenas 7% dos alunos, em contexto de sala de aula, que utilizam ferramentas digitais para o seu processo de aprendizagem. Não estou a afirmar que tem de ser 100%, mas 7%, num mundo que é digital e que está a caminhar para ser ainda mais digital, é demasiado pouco. Por isso, precisamos de reformas muito profundas e também de experimentar, inovar e trazer mais concorrência à educação.
Quando discutimos a carreira dos professores, devia ser enquadrada na visão estratégica para o país. A educação não pode ser uma coisa imediatista. A educação ao longo da vida ou o upskilling / reskilling devem ser uma coisa mais imediatista. A de base seguramente que não, deve estar em instrumentos de futuro. Mas, se não sabemos como vai ser o futuro, temos uma certeza: não vai ser como o passado e nós temos um modelo que vem do passado e o que os sistemas estão a proteger é uma visão demasiado do passado com receio das alterações do futuro.
Não acho que uma reforma profunda seja um clique que se liga de um dia para o outro, mas é uma visão (e um caminho para essa visão): daqui a cinco anos, vamos estar muito diferentes do que estamos hoje. Há uma questão que considero fundamental: é a questão da equidade. Quando, em ambiente escolar, os alunos dizem que só 7% é que usam instrumentos digitais para a sua aprendizagem, o que estamos a cavar é um enorme fosso numa sociedade que é totalmente digital entre os alunos cujo estatuto socioeconómico lhes permite ter em casa acesso a estas e outras ferramentas e os alunos que não estão a ter, no sistema de ensino público, acesso às mesmas ferramentas, em 2023. E sublinho: não estamos a falar em 2010 ou em 2005.
“O sistema educativo não pode mudar ao sabor das modas”
MARGARIDA MANO
Professora e economista
Mudar, sem dúvida, é preciso mudar, mas diria não a uma reforma profunda da educação. A educação vive claramente da pessoa – e não falo do aluno, mas da pessoa que esse aluno vai ser nos próximos 40 a 50 anos, uma longa vida. É óbvio que há a educação ao longo da vida, mas pensemos no sistema-base e também na sociedade. O que acho fundamental, e o que a educação traz, é uma transformação do saber ser, do saber pensar ao saber fazer. A questão do mercado de trabalho, que é verdadeiramente importante, é do imediato. O sistema educativo deve ser um sistema que não pode mudar ao sabor das modas e ao sabor dos contextos.
As mudanças aceleradas que ocorreram no mundo não se refletiram convenientemente no sistema que temos, mas daí a pensar numa reforma que passe por alterar ciclos de estudo ou alguns dos aspetos que são fundamentais e construídos ao longo de muitos anos num saber e numa escola que é feita de muitos fatores…
Quando pensamos no digital e nas taxas que o Carlos referiu, é óbvio que há um conjunto de infraestruturas a melhorar. Hoje, muitas escolas não têm wi-fi e isso não pode ser; se não têm wi-fi, não podem contar para as médias. Objetivamente, a escola ou o sistema educativo deve formar pessoas para viver numa sociedade, num contexto de grande imprevisibilidade e de grande mudança.
É difícil saber o rumo, mas o rumo tem de se focar exatamente no essencial, que é preparar pessoas para um futuro que pode ser mais ou menos tecnológico, mas que tem de ser um futuro de uma sociedade humanista, onde as pessoas formadas vão ter de saber responder aos desafios daqui a 50 anos. Quando eu digo não a uma reforma profunda da educação é porque acho fundamental valorizar aquilo que existe de muito significativo e de importante feito em muitas escolas deste país.
Para mim, o sistema educativo deve dar mais autonomia às escolas, deve ter mecanismos de maior flexibilidade que possam incorporar experiências diferentes, de maior ligação, por exemplo, às comunidades e estou a pensar na música, nas bandas filarmónicas, nas empresas, seguramente. Há aqui um potencial de melhoria e de mudança que é tanto maior quanto mais incompetentes forem as autoridades. Quando vemos que nas escolas não é possível utilizar internet porque não há wi-fi, não estamos a falar de reforma profunda da educação, mas de uma reforma profunda dos governantes!
Carlos Oliveira: “Miúdos ficam na escola 7 horas por dia à frente de um professor”
Por que é que defende uma reforma profunda do sistema de ensino?
É preciso uma reforma profunda porque acredito numa sociedade mais humanista (a tecnologia é apenas um motor) e nós precisamos de dar aos nossos alunos mais competências socio-emocionais. Com toda esta evolução muito acelerada da inteligência artificial, o fator humano vai estar cada vez mais nas pessoas e nós não temos um sistema de educação em Portugal que esteja a preparar e a desenvolver os alunos nestas competências do saber aprender, do saber conversar, do saber resolver problemas.
Quando digo que precisamos de uma reforma profunda é precisamente isto. Não estou a dizer que signifique mudar tudo. Temos já bons exemplos em pequena escala e devíamos ser um país que os devia acolher como uma forma de aprendizagem. Temos a escola 42, o Tumo (em Coimbra), a Brave Generation Academy e outros exemplos que o Estado, enquanto motor do sistema nacional de educação, devia estar a privilegiar e a apoiar, no sentido de aprender e de perceber quais são as boas práticas que daqui saem que poderiam ser mais rapidamente incorporadas no sistema de ensino e quais são aquelas que não funcionam.
Isto não é uma questão de modas; é uma questão de que o sistema foi multo útil para tirar as sociedades do analfabetismo, mas estamos num mundo em que os conhecimentos técnicos vão estar disponíveis cada vez mais à distância de um telemóvel ou de um outro dispositivo que há de aparecer. Temos é de preparar os nossos cidadãos.
Concordo com a educação ao longo da vida, um paradigma que defendemos muito na Fundação, ou seja, uma formação contínua, que não termina na educação obrigatória. Precisamos de uma mudança fundamental porque os sistemas não estão a dar resposta.
Hoje, preocupamo-nos nas empresas que as pessoas tenham um bom balanço entre a vida pessoal e profissional e continuamos a enviar os nossos miúdos para a escola 5, 6, 7 horas por dia para estarem à frente de um professor. É essa mudança que precisamos de fazer. Devíamos ter uma visão daquilo que é a educação para as próximas décadas e ir implementando essas mudanças.
LFL – Vamos a um exemplo concreto. Precisamos de tantos manuais escolares e papel? Se quase tudo é digital, poderia haver menos livros?
MM – A escola tem de estar no contexto de hoje que é digital, ou seja, onde o digital tem um papel muito importante. Ele já está em muitas escolas, noutras ainda não, noutras é impossível. Não se pode pensar que distribuir um milhão de computadores é resolver e tornar uma escola digital; não é disso que estamos a falar. E também não sabemos se uma escola não pode ser mais digital por uma questão de custos ou se é isso mesmo que queremos.
Na aprendizagem inicial de uma criança, saber desenhar uma letra ou identificar uma letra digitalmente é completamente diferente. Temos de ter muito cuidado, no sentido de não tomar o hoje como o futuro. A escola tem de estar adaptada ao digital, mas também é fundamental que a escola proporcione igualdade de oportunidades porque uma das suas funções é a coesão e a justiça sociais.
Tenho muito receio quando oiço falar em reformas profundas porque a sensação que dá é que é relativamente fácil fazer um diploma em que se altera significativamente tudo. Primeiro, é preciso ter a certeza de que o que estamos a propor vai ser feito e que tem um impacto positivo. Olha-se muito para o curto prazo e não para o médio e longo prazo. Aí, o professor é um elemento muito importante no sistema de educação.
Margarida Mano: Falta uma visão e, como não há, atua-se no imediato para resolver os assuntos”
Há um peso excessivo do diretório central ou do Ministério da Educação no sistema?
MM – Falta uma visão e, como não há visão, vai-se atuando no imediato para resolver os assuntos. O país é pequeno e uma centralidade é importante do ponto de vista das grandes linhas, do enquadramento do sistema; é fundamental para haver a tal equidade e articulação no país. Isso não pode é significar falta de flexibilidade e de autonomia das escolas e, sobretudo, não pode significar um desconhecimento do país real. A questão é: qual é o país que queremos? Por exemplo, muitas crianças no interior estarão em desigualdade relativamente a outras ou não, nas infraestruturas tecnológicas da escola, dos professores…
CO – Os computadores e as infraestruturas são fundamentais, mas, se isto não for integrado na tal estratégia que inclui professores formados; se não se organizar isto de uma forma coordenada (formação de professores, dar-lhes competências, curricula e conteúdos adaptados às tecnologias), isto depois não funciona porque falha sempre qualquer coisa.
O digital não é o essencial da questão. Acho é que temos aqui novas formas de abordagem como a educação baseada em projetos, não ser só o peer-to-peer learning (a aprendizagem por pares); incorporar isto no sistema é importante.
LFL – Seria necessário mexer na quantidade de disciplinas, de cadeiras, em programas muito fechados?
CO – É preciso autonomia nas escolas, mas que haja um guião claro do que seguir. Senão, num país tão pequeno, em vez de estarmos a criar equidade, estamos a criar enormes desigualdades. Uma das coisas que temos de ver é que há que tentar subir todos e não porque alguns não podem subir descer todos os outros. Em alguns momentos, foi o que aconteceu. Como alguns podem correr mais, vamos é tentar desacelerá-los para corrermos todos à mesma velocidade, o que é errado. Temos é de tentar pôr todos a correr à velocidade dos que correm mais. Esta ideia de que numa escola conseguimos estar 5 ou 6 horas à frente de um professor com todos os alunos ao mesmo ritmo, está provado cientificamente que a absorção de conhecimento nesse modelo é relativamente baixa.
Em muitos sistemas internacionais, já se está a usar outro tipo de metodologias e recorrer aos professores mais para debate, discussão e outras situações específicas do que propriamente uma transmissão como se fazia no passado. Aquilo que vemos nos números é assustador. Como a profissão de professor deixou de ser apelativa para os jovens, só vai para professor quem não está a conseguir colocação noutras áreas e não por paixão. Temos de renovar esta paixão pela profissão de professor! Não acredito que haja algum sistema de ensino no mundo que possa ter sucesso sem excelentes professores.
LFL – E estamos a contar com o envelhecimento da população e da própria classe profissional dos professores?
MM – O envelhecimento da população é um dos principais problemas do país e até tem que ver com a educação cara que temos de dar às nossas poucas crianças e jovens. Tenho algumas dúvidas quando se diz que o ensino tem de passar a estar centrado no aluno. Tenho algumas dúvidas de que os bons professores de há 20, 30 ou 40 anos não se centrassem nos alunos. O sistema acomoda tensões ao longo do tempo e a tensão atual está a ser acomodada de uma maneira um pouco anárquica e imediatista. Não estamos a aproveitar projetos e experiências de escolas que estão a fazê-lo bem.
CO: “Continuamos a tapar remendos como nos salários dos professores”
Pela experiência na Fundação José Neves e até pela experiência empresarial, o que poderia ser feito ou adaptado rapidamente nos programas, quanto a novas exigências do mercado de trabalho?
CO – O caminho é termos uma visão e um plano de execução que seja realista, que se possa ir incorporando no sistema. Não vai haver aqui nenhuma quebra num sistema com esta dimensão. Acho que esse é o grande desafio. Do ponto de vista do sistema, temos um Ministério de Educação que gere os professores e as infraestruturas de educação e depois aquilo que devia ser o core não está a ser tido em consideração.
Temos de mudar a visão do país. A educação tem um propósito e temos de estar todos de acordo quanto a esse propósito. Devíamos começar por aí. Qual é o propósito que o país tem? Como é que queremos formar as nossas crianças e os nossos adultos e dar-lhes a competências para que tenham um futuro melhor?
Depois fazer os tais planos de execução e de ação, que sejam executados competentemente. Mas nós continuamos a fazer e a tapar remendos como a questão dos salários dos professores – que é muito importante e que tem de ser resolvida, mas estamos num contexto complicado.
MM – Temos níveis diferentes. Um deles é a atual situação da educação, que é de deterioração a olhos vistos, apesar dos valores significativos que foram colocados à disposição e que estão a ser colocados no digital… Por exemplo, vemos hoje as escolas cheias de computadores devolvidos porque faltam as atualizações, etc.
MM: “Se o sistema de ensino é o culpado, tenho dúvidas; é a incompetência”
O Ministério está demasiado refém da corporação dos professores? Dos sindicatos e das greves?
MM – Acho que não. O Ministério que não fala com os sindicatos não está refém de nada, faz o que quer. Quem quiser bem à educação quer bons professores, com o que isso tem de exigência de direitos e, sobretudo, de exigência de obrigações também: sistemas de avaliação, dedicação e afetação do tempo.
O que se ouve muito ao longo dos últimos anos é professores a queixarem-se de fazerem muitas tarefas burocráticas que não têm nada que ver com o ensino, não se queixam de estar com os alunos. Nós quando estamos a falar assim estamos a falar numa média, um geral que é muito atípico; ou seja, o que nós temos de olhar é para os bons professores, para os bons casos, para as boas escolas, que são muitas, e com eles construir aquilo que é um ambiente de réplica mais facilitador.
Se o sistema de ensino é que é o culpado, tenho dúvidas, acho que é a incompetência… Em situações de incerteza como as que vivemos, é de esperar que o futuro não seja mais certo. É difícil ver o rumo, mas é absolutamente essencial, em termos de sobrevivência, o foco no rumo certo, no caminho. Em educação, o caminho tem de passar pela resposta hoje ao mercado, às sociedades, às pessoas, uma resposta a uma sociedade humanista para amanhã.
CO – Se o sistema de ensino tem de entregar alguma coisa aos nossos jovens e depois aos nossos adultos são competências socioemocionais que lhes permitam aprender a aprender, permitam resolver problemas complexos, permitam pensar… Aquilo que no passado era fundamental, como as hard skills ou as competências técnicas fortes, essas hoje vão estar disponíveis muito facilmente pelas vias mais digitais e quem quiser aprender e tenha essas competências vai conseguir indo agarrar ao longo da vida. Obviamente que tem de ter boas bases. É isso que o sistema de ensino obrigatório deve criar porque os empregos, aquilo que os nossos miúdos de hoje vão fazer, ainda não estão criados em grande parte e nós não sabemos quais são. Por isso, temos de dar esta abertura de oportunidades para que a educação tenha potencial de mudar este país e ajudar o desenvolvimento social e económico que bem precisamos e que está muito estagnado.
MM – É importante saber ser. Se nós criarmos cidadãos que saibam alimentar democracias informadas, fortes, consistentes, nós estaremos muito mais tranquilos para o futuro. A questão das competências técnicas é, se calhar, o mais fácil.