Pessoas luminosas para tempos sombrios

Apesar do Sol destes dias, parecem sombrios os tempos que vivemos. E é nestas alturas que mais sentimos a falta não tanto de ideias como de testemunhas. De pessoas de bem. De exemplos que resplandeçam como faróis

a vacuidade que se apoderou da hora presente não está, em primeira instância, nos conhecimentos. está, acima de tudo, nos comportamentos.

é o vazio que, tingido pelo fútil, faz com que nem o trágico nos pareça tão trágico.

até o trágico se vai tornando trivial, envolvente. habituamo-nos aos incêndios no verão e às cheias no inverno. já não nos espantam os números da violência doméstica nem os dados da criminalidade.

tudo parece escorrer na direcção de um abismo que nem o mais optimista é capaz de suster.

2. não é a primeira vez que vivemos épocas destas. hannah arendt recorda-nos que «a história já conheceu muitos períodos de tempos sombrios».

mas, mesmo (diria «sobretudo») nestes tempos, «temos o direito de esperar uma luz. é bem possível que essa luz não venha tanto das teorias e dos conceitos como da chama incerta, vacilante e, muitas vezes, ténue, que alguns homens e mulheres conseguem alimentar em quase todas as circunstâncias».

a própria hannah arendt oferece-nos dez luzeiros em forma de vidas alentadoras para a nossa vida.

3. uma dessas vidas é a do papa joão xxiii, que a filósofa judia descreve como sendo «um cristão no trono de s. pedro».

curiosa a reacção de uma criada de servir aquando da morte do pontífice: «minha senhora, este papa era um verdadeiro cristão. como é que isso foi possível? como pôde um verdadeiro cristão sentar-se no trono de s. pedro? ninguém se terá apercebido de quem ele era?».

há, obviamente, aqui alguma injustiça. os papas dos últimos séculos mostraram ser cristãos de fibra, até à medula do seu ser.

mas não deixa de ser sintomática tal reacção.

segundo esta maneira de ver, alguém que irradiava a bondade, a simplicidade e a humildade de cristo não teria grandes condições de ascender naquilo a que, impropriamente, se chama carreira.

sabemos que a conduta de joão xxiii lhe trouxe não poucos dissabores. às vezes, a incompreensão acendeu-se dentro da própria igreja.

4. joão xxiii tornou-se uma figura querida porque assumiu, sem o menor constrangimento, o espírito de jesus.

para ele, todos, incluindo os ateus, eram filhos e irmãos. a justiça sempre o preocupou e mobilizou.

conta-se que, um dia, terá perguntado a um trabalhador como ia a sua vida. ele respondeu que ia mal. então, o papa garantiu que ia tratar do assunto.

houve, no entanto, quem objectasse que, aumentando o salário aos trabalhadores, teria de haver um corte nas obras de caridade.

resposta pronta do pontífice: «então é o que teremos de fazer. porque a justiça está antes da caridade».

são estas atitudes que definem uma vida. e fazem com que as pessoas que as tomam brilhem. mesmo nas sombras. sobretudo nas sombras.

joão teixeira, teólogo