a revisão da constituição é um ‘tiro ao lado’
o que sentirá alguém que vá na rua, no meio de uma enorme carga de água, em dia invernoso, com temperaturas bem baixas, e se depare com alguém que lhe quer deter a marcha para vender um bronzeador ou um protector solar? deve ficar, pelo menos, estupefacto, para não dizer muito irritado.
calculo que seja essa a sensação de muitos portugueses quando ouviram falar, de novo, no projecto de revisão constitucional do psd.
é incontroverso que a nossa constituição precisa de mudar – e que o psd, no passado, sempre teve de insistir nas mudanças até conseguir remover a epidérmica alergia do ps a alterações constitucionais. só que há alturas para tudo. em 1982 e em 1989 não atravessávamos crises profundas no plano económico e nas consequências sociais.
dado o texto da nossa constituição e a evolução do nosso sistema político – para além da realidade da nossa vida económica e da nossa organização social –, sou, normalmente, simpatizante de propostas de aperfeiçoamento da nossa lei fundamental.
só que esta não me satisfaz – nem pelo conteúdo nem pela oportunidade. terão sido afastadas algumas aberrações anteriores, como as moções de censura. tem pontos positivos, como é óbvio. mas é um ‘tiro ao lado’. tinha feito mais sentido despoletar este processo depois das presidenciais.
insistir agora neste tema é algo parecido com a substituição de hugo almeida no jogo com a espanha, no mundial da áfrica do sul. já estávamos a perder – e carlos queiroz, para justificar a decisão, disse que essa mudança já estava programada antes de o jogo começar e que não gosta de mudar as suas decisões de programação!
admito que a actual direcção do psd tivesse programado lançar este ano a revisão constitucional, na expectativa de uma crise de governo após as presidenciais e a possibilidade de serem chamados a substituir a equipa de josé sócrates.
só que, do congresso do psd para cá, a situação de portugal mudou muito. por isso, tudo o que se ouviu de notícias esta semana sobre o tema tinha algo de enredo de ficção.
cavaco incomodou o psd
entretanto, surgiram os primeiros sinais do que, na semana passada, aqui admiti (muito ‘ao de leve’, para não ser provocador) que pudesse ser o desconforto da direcção do psd face às declarações de cavaco silva sobre a necessidade de aprovação do orçamento do estado.
por palavras ou silêncios dos próprios, e por textos de próximos, confirmou-se o que não se pode estranhar: sendo o orçamento elaborado só pelo ps, e tendo o psd colocado condições para a sua viabilização, a ‘directiva’ presidencial só retira margem de manobra aos sociais-democratas. e, sendo assim, das duas uma: ou ouviam e acatavam ou ouviam e protestavam. numa primeira fase houve silêncio, depois começaram a surgir os tais sinais exteriores de incómodo.
é antiga esta história no sistema de governo português. durante anos foi o ps com os presidentes que foram seus líderes; agora é o psd com cavaco silva.
sugeri aqui e em entrevistas televisivas que o psd devia ter tomado a iniciativa de assumir negociações formais, sentando-se à mesa com sócrates e falando o menos possível em público – em vez de se pôr com ameaças do meio da rua.
por um lado, os tempos não estão para essas cenas de uma certa maneira de fazer política… por outro, era bem previsível que o presidente dissesse algo do género do que disse. só não o conhecendo! ora, nesse quadro, era melhor que a iniciativa de conversações interpartidárias fosse (e parecesse ser) dos líderes dos partidos e não do presidente.
neste momento, a margem de manobra da direcção do psd não é nada famosa. esta semana até voltou a falar-se da possibilidade de outra força política, que não o psd, se responsabilizar pela aprovação da lei orçamental.
o presidente do psd teve o controlo da iniciativa política nas mãos – e, em boa medida, essa situação alterou-se.
neste momento, não se entende qual é a posição do psd sobre as deduções fiscais. e convinha que se precisasse, também, quantos meses da execução de 2010 – e que outros dados específicos – o psd considera essencial avaliar para decidir a sua posição até à votação na generalidade, lá para finais de outubro.
as regras de maastricht estavam erradas
os números divulgados esta semana sobre o crescimento das principais economias europeias confirmam, cada vez mais, a europa a duas velocidades que tanto se temeu no passado.
dominique strauss-khan veio sublinhar que esta crise não se vence com as receitas clássicas. jacques attali diz o mesmo no seu livro, editado em portugal pela aletheia, estaremos todos falidos dentro de dez anos?.
como ele sublinha, a recuperação económica do ocidente (ou da parte mais ‘endinheirada’ do mundo) está a ser financiada pelas economias do mundo menos desenvolvido.
as notícias vão surgindo, umas atrás das outras, sobre iniciativas das economias mais poderosas para tentarem vencer a crise. obama anunciou um volumoso pacote de investimentos públicos. o japão anunciou a desvalorização do iene. a união europeia não tem os mesmos meios de reagir. por mim, já disse que não é com mais, mas com melhor europa, que a crise pode resolver-se.
jacques attali, na obra que referi, faz uma sugestão que me parece ter sentido: a criação de uma agência europeia do tesouro «que tenha por missão fornecer aos orçamentos de países europeus recursos financeiros novos a curto prazo para financiar as suas dívidas soberanas actuais e a sua ’boa’ dívida ulterior». mais propõe que essa agência gira um fundo europeu de garantia, assegurando que, em caso de suspensão de pagamentos de um país, a parte europeia da dívida seja coberta.
na prática, tudo na linha de preocupação com a solidez do euro, tão abalada com a crise despoletada em 2008.
as palavras do director-geral do fmi que citei, bem como o conteúdo do livro de jacques attali, confirmam o que aqui já escrevi várias vezes: as regras de maastricht – e, em concreto, as normas do pacto de estabilidade e crescimento – estavam profundamente erradas. o ex-conselheiro da presidência da república francesa dedica este seu trabalho à questão da dívida pública e ao modo como pode levar vários países à falência.
mas isso não o impede de escrever, a propósito dos 3% e dos 60% de maastricht: «ninguém pode afirmar que existe um nível ideal dos défices e das dívidas».
em portugal continuamos a discutir o que discutimos. enquanto o mundo vai rodando.