O folheto

Escrevia esta semana Rui Tavares: «Desprezem Sócrates e Passos Coelho como irrelevâncias que são. Imprimam folhetos em alemão e entreguem na embaixada».

a frase soará estranha, mas tem que se lhe diga. é a senhora merkel a verdadeira responsável pela austeridade doméstica? sim e não só sim.

sim. a estratégia monetária e orçamental da união europeia assenta na hipótese de as exportações alemãs relançarem não apenas a economia alemã, mas toda a europa. para ser ganhadora, esta ‘fezada’ defende, acima de tudo, a competitividade internacional da máquina germânica que tem uma mão cheia de bons argumentos – boa investigação, superioridade tecnológica e organizativa, qualificação do trabalho e mais o que queira imaginar. contudo, o mundo encontra-se em fase de ‘asiatização acelerada’. é por isso que as exportações alemãs também vivem de uma política fiscal favorável, de um euro que é um prolongamento do marco e, principalmente, da contenção salarial.

o aperto nos salários está a comprimir o consumo privado um pouco por toda a europa e muito em alguma europa. isto não será trágico para berlim nem para as capitais com excedentes comerciais fortes. esta europa compensa o fraco crescimento do seu consumo privado com a agressividade nas exportações para o resto do mundo. mas para portugal, que exporta principalmente para a europa, a quebra na procura de bens estrangula milhares de empresas.

o drama das políticas de austeridade na europa é este: só se salvam os países com excedentes comerciais significativos. os que têm um tecido empresarial frágil, produzindo principalmente para destinatários domésticos e com exportações viradas para curtas distâncias, autocondenam-se a uma espiral negativa. recorrem à desvalorização dos salários e a fracos níveis de fiscalidade sobre as empresas para compensarem a moeda que já não têm.

eis porque a hipótese da senhora merkel é a nossa tragédia. explicar isto em bom alemão à sua embaixada é uma boa ideia.

mas ela não absolve sócrates, cavaco silva ou passos coelho. desde logo, porque na europa eles se calam e apenas passam por bons alunos de uma má política. depois, porque no plano doméstico tinham o dever de fazer escolhas socialmente mais equilibradas e decentes, evitando penalizar o investimento e o consumo privado em nome do emprego.

não fazendo nem uma coisa nem outra, também não podem esperar que cessem os ataques especulativos à nossa própria dívida. com efeito, esta política limita-se a esvaziar algibeiras cada vez mais vazias. o folheto também deve ser escrito em bom português.

miguel portas