no núcleo museológico do sargaço, que ocupa a antiga escola de castelo do neiva, joão alpuim botelho escreve: «o sargaço fez, durante anos, a união entre a terra e o mar e permitiu o cultivo do solo, junto às praias, que o vento tornava demasiado arenoso. assim os agricultores tornavam-se também homens do mar, porque só recorrendo a este fertilizante natural que o mar oferecia, puderam cultivar estas terras».
das janelas do edifício o horizonte delimita-se pela linha azul do mar, embora no nosso olfacto tenha já entranhado o cheiro a maresia do amontoado de algas guardadas dentro do pequeno museu desta que é uma das freguesias mais antigas do concelho de viana do castelo.
a apanha do sargaço faz parte da história do litoral norte, rochoso e rico em algas que as águas do mar empurram para a costa. «no foral atribuído pelo rei d. dinis à póvoa de varzim, em 1308, existem registos de disputas de sargaço e são referenciadas algumas regras de apanha», conta a guia isabel sousa.
as alfaias do sargaço, as branquetas (nome da lã grossa de cor natural dos trajes usados nesta actividade), a jangada rudimentar de madeira carcomida e o palheiro feito de algas são testemunhos da dureza de uma tradição que deixou marcas profundas. «todos viviam do sargaço. era miúdo e lembro-me que semanalmente saía daqui um camião tir carregado para o japão. do mar saíam, em média, 60 jangadas de algas», lembra o presidente da junta de freguesia augusto bandeira.
na década de 70 ainda muitas famílias se governavam à conta das algas, depois com o aparecimento dos fertilizantes as gentes abandonaram esta lida.
as palavras no núcleo museológico ganham rosto nas imagens de maria emília, com os pés mergulhados na água, a arrastar as algas, e da sua filha. céu é uma das últimas sargaceiras tradicionais de castelo do neiva.
em direcção à praia, «vamos entrar na zona mais rural da freguesia atravessada por um dos caminhos de santiago de compostela», anuncia isabel. embrenhámos por veredas estreitas e empedradas, contornando o casario que permite vislumbrar apenas uma nesga de mar. o silêncio da manhã é interrompido, ora pelo canto do galo, ora pelo latido dos cães que passeiam livremente.
entre as casas e o mar, espalham-se alguns terrenos baldios e campos de cultivo, sobretudo de milho e de batata. estamos a poucos metros do estuário e abrandamos o passo a convite da nossa guia, que nos emprestou os binóculos para uns breves instantes de bird watching. «não nos limitamos à temática dos passeios mas damos a conhecer os recursos culturais e socio-económicos da região», refere o responsável pela empresa promotora, nuno barbosa.
transposto o pinhal, alcançámos as dunas, sob o passadiço, e o mar revelou-se em toda a sua extensão. os condomínios de luxo contrastam com as casas humildes da comunidade piscatória. no quintal de uma delas, vimos cinco palheiros, cada vez mais invulgares.
junto ao pequeno molhe, os barcos de pescadores aguardam em terra a próxima faina. o chão é agora uma mistura arenosa de redes, bóias e pedaços de marisco. no alto de uma duna uma bicicleta solitária acelera o ritmo do grupo. «é a bicicleta da dona céu», assegura augusto.
deserto, o areal protegido por uma fortaleza dunar está coberto por um manto castanho de algas. debaixo do sol de outono a pino, céu espera-nos de forquilha na mão: «vou- me embora, a vaca está cansada!», atira. guiada pelo irmão de céu, fidalga já puxou a carroça carregada de algas, umas oito vezes, desde as sete da manhã. há 15 anos que a sargaceira ‘varre’ a praia todas as manhãs para estender as algas ao sol, no meio das dunas.
as primeiras algas dão à costa em inícios de maio e a apanha decorre até meados de novembro. «no verão, com esta vaca, apanho 10 a 12 carroças. mas isto não é nada comparado com antigamente», lembra. as gentes locais continuam a apanhar sargaço apenas para consumo próprio.
céu vai vendendo, mas pouco. «já foi um bom sustento, agora só disto já não se vive», desabafa. ainda assim, continua a apanhar e a estender sargaço, com esforço, por uma causa maior: «nunca gostei do mar, a minha mãe sim e é por ela que continuo. todos os dias fala da praia, deixar de apanhar sargaço foi como tirar-lhe a vida», confessa a filha da sargaceira, viúva de um pescador – sina de muitas mulheres da região.
o sargaço ficou a corar ao sol. ao longe, fidalga regressava da praia. ainda passamos junto aos 18 palheiros de céu , conscientes de que este é um ‘oásis’ de uma tradição perdida.