Caça ao mensageiro

Neste texto, publicado em Setembro pelo SOL, explica-se a origem do caso que agora levou à detenção de Julian Assange, levanta-se o veu sobre a vida do fundador do WikiLeaks e faz-se o paralelo com outros responsáveis por importantes fugas de informação:

sábado, 21 de agosto, a notícia era manchete num tablóide sueco e alastrava como fogo em mato seco no ciberespaço e logo depois nos grandes media globais: julian assange com mandado de captura, acusado de violação. julian quem? assange, fundador e rosto público do wikileaks, o site que divulgou, no final de julho, 76 mil documentos militares classificados dos estados unidos, pondo em causa a versão oficial do pentágono e da casa branca sobre o decorrer da guerra no afeganistão.

os factos: duas mulheres suecas, de 31 e cerca de 25 anos, aparentemente não relacionadas entre si, haviam apresentado na véspera queixas contra assange, jornalista australiano itinerante, de 39 anos, que decidiu passar uns tempos na suécia depois da tempestade de julho, ao mesmo tempo que deixava no ar a próxima divulgação de mais um lote de documentos sobre o afeganistão. alguns servidores informáticos do wikileaks estão na suécia, onde a lei protege estritamente as fontes jornalísticas.

um procurador de turno em estocolmo, baseado no facto de o suspeito ser um estrangeiro que poderia sair do país antes de ser interrogado, emitiu na sexta-feira à noite o mandado, seguindo a rotina. alguém da polícia passou a ‘dica’ ao tablóide. alguns cínicos logo disseram que assange provou o seu próprio veneno.

no sábado à tarde, enquanto prosseguia a ola mediática, uma procuradora de escalão superior, eva finné, anunciou que após revisão do processo preliminar considerara sem fundamento a suspeita de violação e anulara o mandado de captura, mas mantinha a investigação. a meio da passada semana, confirmou que assange será inquirido por alegado acto sexual enquadrado na categoria dos abusos de menor gravidade, passíveis de multa ou prisão até um ano, mas que não cai na categoria de crime sexual à luz da lei sueca.

uma das queixosas disse a um jornal que as denúncias não envolviam violação ou violência, mas sim incidentes com «um homem que tem um comportamento retorcido com as mulheres e um problema em receber um não como resposta». a imprensa cita uma fonte segundo a qual tudo terá derivado da recusa de julian em usar preservativo.

face às primeiras notícias, assange negou qualquer acto de sexo não consentido e disse já ter sido avisado de que «o pentágono planeia usar golpes sujos para destruir o nosso trabalho». o mote foi imediatamente retomado em inúmeros blogues antiguerra. as alegadas vítimas dos abusos, contudo, refutaram qualquer ligação ao pentágono.

jornalista sem morada

julian assange não é apenas uma face do wikileaks – é o seu único rosto conhecido. da mesma forma que o seu trabalho navega no ciberespaço, também ele parece vaguear sem raízes pelo planeta. não tem morada fixa declarada e muitas vezes dorme em casa de conhecidos, aparecendo durante uns tempos para participar em seminários e conferências, e logo partindo sem deixar rasto material. viaja com duas mochilas: uma com roupa, outra com a sua máquina – um computador de mesa (desktop), e não um portátil. é um filho da globalização.

segundo o diário britânico the guardian, assange considera-se geneticamente predisposto à rebelião. filho de um casal contestatário – ele arquitecto, ela directora de um grupo de teatro itinerante -, julian passou a juventude na austrália sem poiso fixo, frequentando 37 escolas diferentes. em adolescente foi pirata informático, introduzindo-se nos e-mails de gente notável. na universidade estudou matemática e física, e é como físico que pensa nas pequenas acções que libertem energia suficiente para produzir «reformas justas».

criou o wikileaks (wikileaks.org) em 2007, com o objectivo declarado de ser uma plataforma para divulgar informação de interesse público que os poderes tentem ocultar. o site não tem escritório nem assalariados, embora reivindique uma rede de 800 colaboradores voluntários. não se sabe como se financia para além dos donativos individuais – proclama recusar dinheiro de governos ou empresas e entre dezembro de 2009 e maio de 2010 chegou a estar suspenso, excepto para receber novo material, alegadamente por falta de fundos. também não se sabe como comprova a veracidade dos dados enviados por informadores anónimos.

o wikileaks deu o salto para a fama ao publicar em 2009 a troca de e-mails que originou o escândalo ‘climategate’, coincidindo com a cimeira de copenhaga sobre as alterações climáticas. e foi numa operação perfeitamente planeada que em julho passado cedeu gratuitamente os documentos sobre o afeganistão a três reputados órgãos de imprensa internacionais.

a administração obama reagiu iradamente à maior fuga de informação classificada desde a guerra do vietname, e logo tentou minimizar a sua importância: os dados revelados eram quase todos do tempo de bush na casa branca, antes da revisão da estratégia da guerra pelo novo presidente. mas os números sobre as vítimas civis, as avaliações do pentágono sobre o apoio do paquistão aos talibãs e a confirmação da ‘guerra secreta ‘ feita por unidades especiais tiveram impacto evidente.

memória dos pentagon papers

o paralelo mais óbvio com a acção do wikileaks é a divulgação, em 1971, dos chamados pentagon papers (documentos do pentágono), um extenso historial secreto do envolvimento dos eua no vietname entre 1945 e 1967. os documentos mostravam que a casa branca havia mentido deliberadamente ao público e fabricado incidentes para envolver militarmente o país no sudeste asiático, e que estendera secretamente a guerra ao laos e ao camboja violando as proibições do congresso.

o autor da fuga foi daniel ellsberg, um analista militar de 40 anos que participava numa equipa contratada pelo departamento da defesa. numa altura em que a oposição à guerra era pujante em todo o país, a publicação das revelações na imprensa gerou enorme comoção política.

a administração do presidente nixon obteve providências cautelares contra a divulgação de mais excertos do dossiê classificado nos jornais e acusou de traição e espionagem ells- berg e anthony russo, que o ajudara a fotocopiar os papéis. ellsberg pôs-se em fuga, continuando a dar documentos a jornalistas. o recurso do diário the new york times contra a censura fez história: o supremo tribunal dos eua, numa intervenção quase imediata (menos de três semanas após a primeira proibição), decidiu em junho de 1971 que o estado não tinha fundamento suficiente para limitar a liberdade de informação.

em 1973, daniel ellsberg foi ilibado por um tribunal de todas as acusações. converteu-se num destacado activista antiguerra, continuando ainda hoje a participar nos protestos contra as guerras declaradas por george bush.

perseguição das tabaqueiras

outro caso memorável é o de jeffrey wigand, o homem que enfrentou as grandes empresas tabaqueiras dos eua nos anos 90, sofrendo uma perseguição de estilo mafioso – é a história contada no filme the insider/o informador (1999), com russell crowe e al pacino.

wigand, enquanto quadro superior da tabaqueira brown & williamson (b&w), obteve provas de que a indústria conhecia os efeitos nocivos do tabaco na saúde e, ainda assim, estava a testar formas de aumentar a dependência dos fumadores. em 1994, depois de ver os dirigentes das maiores sete tabaqueiras dos eua testemunharem no congresso, sob juramento, que o fumo não era perigoso e a nicotina não viciava, wigand começou a partilhar secretamente informações com a fda (a agência governamental antidrogas).

em 1995, gravou uma entrevista para o programa 60 minutes, da cadeia televisiva cbs. a b&w ameaçou processar a televisão, que cedeu à pressão económica e cancelou a emissão – mas o seu conteúdo acabou por chegar à imprensa. começaram as perseguições.

a tabaqueira processou o ex-empregado por ‘roubo de segredos’ e ‘violação do acordo de confidencialidade’. repetidas ameaças de morte obrigaram wigand a ter um guarda armado em casa, que lhe abria o correio, ligava o motor do carro e escoltava as suas filhas até à escola. telefonemas anónimos forçaram a escola onde ele ensinava a pôr um polícia à porta das suas aulas. com os advogados da b&w em acção, tribunais ameaçaram-no de prisão se testemunhasse noutros tribunais. a sua mulher não aguentou a pressão e pediu o divórcio.

a saga de ameaças e processos só terminou em 1997, quando os procuradores-gerais de 40 estados dos eua forçaram a indústria tabaqueira a um acordo draconiano de indemnização às vítimas do tabaco. jeffrey wigand tornou-se um herói nacional, mesmo para muitos fumadores impenitentes.

a política do assassínio

de desfecho mais trágico são os casos em que a tentação de todos os poderes de ‘matar o mensageiro’ é levada às últimas consequências.

anna politkovskaya, a jornalista russa assassinada em 2006, aos 48 anos, tornou-se símbolo das vítimas das mafias políticas. activista dos direitos humanos e opositora declarada das violências que testemunhou na chechénia cometidas pelas forças russas, anna chegou a ser presa e torturada pelo exército em campanha, mas nunca deixou de publicar as reportagens. o primeiro-ministro checheno também a ameaçou. foi morta a tiro em moscovo. todos os suspeitos levados a tribunal foram absolvidos, por falta de provas.

também morta a tiro em 2005 foi marlene garcia-esperat, jornalista de investigação nas filipinas, de 45 anos, conhecida por denúncias de casos de corrupção. neste caso, foi provado em tribunal que os assassinos foram contratados por funcionários regionais do ministério da agricultura.

quanto ao wikileaks, só se fala em ‘golpes sujos’. preocupante para washington é o anúncio de que mais 15 mil documentos esperam publicação. os juristas do pentágono estão a estudar todas as formas de estancar a fuga. e é aqui que se pode conjecturar sobre o eventual recurso a truques eticamente duvidosos. em tempo de guerra… para já, o ciberespaço é chamado a terra pela justiça nórdica. o site anunciou que continua a trabalhar enquanto assange se defende.

frederico.carvalho@sol.pt