Equinócios e Solstícios

A semana vista por Pedro Santana Lopes.

imperdível

a verdade da crise

um livro ou um filme têm, por vezes, influência determinante na vida de uma pessoa. talvez aconteça também com uma pintura, uma música, uma escultura ou até uma paisagem. mas nestes casos é mais difícil. um filme ou um livro têm, normalmente, um argumento – sendo mais provável que produzam esse efeito.

recordo o que senti quando li o fio da navalha de somerset maugham, tinha eu 18 anos. li-o de fio a pavio – e, quando cheguei ao fim, voltei ao princípio e li-o de novo.

aquela procura do nirvana, aquela viagem ao tibete, aquela relação do protagonista com o seu quotidiano, fizeram-me pensar muito na vida. e mudaram a minha atitude interior face a um conjunto de questões que se colocam aos seres humanos.

sábado passado fui sozinho ver a verdade da crise. embora quase nada soubesse sobre a história e o conteúdo, tinha lido uma referência que me chamou a atenção. passou a ser importante para mim ir vê-lo, por uma razão de que gosto pouco de falar.

semanas antes tinha visto o wall street-ii, que também trata já o período desta crise. para além da admiração pelo autor, o filme cansou-me. narra, não explica, não ‘puxa’ pelo pensamento. acima de tudo, ‘carrega na crise’ tal como ela é.

o inside job – nome original do filme – tem outra dimensão. agarra na crise, esventra-a, analisa-a, vai ter com os responsáveis e coloca-os perante as evidências e as suas responsabilidades no que aconteceu e continua a acontecer.

não concordo com todos os pressupostos da narrativa, com algumas inclusões e certas exclusões, com determinados raciocínios, com vários juízos preconceituosos.

falta alguma frieza e nota-se algum radicalismo na abordagem que é feita. mas, no essencial, trata-se de um grande trabalho que dá muito que pensar sobre o mundo em que vivemos.

é óbvio que todos temos pena que ainda não tenha sido feito um inside job sobre as sociedades supostamente comunistas, cuja falência foi evidenciada com a queda do muro de berlim. é a mesma questão do wikileaks. mas essa parcialidade não é motivo para ignorarmos o que este filme mostra.

muitas vezes tenho escrito, neste espaço, sobre uma das grandes questões que este filme vem agora colocar: podem ser as mesmas pessoas (e os mesmos modelos) a garantir que não se repita o caminho que levou o mundo para uma situação tão complicada?

incomprensível

o mundo pára e tropeça

hoje em dia, quando se ouvem debates sobre a crise, mesmo entre os chamados especialistas, sente-se, percebe-se perfeitamente que não sabem o que dizer. divagam, dissertam, mas andam à volta do tema sem que consigam ser conclusivos.

tenho repetido que até o cidadão leigo na matéria, que nada saiba do assunto, intui que as coisas não mudaram verdadeiramente. desde que a crise deflagrou, em setembro de 2008, nunca foi apresentado um conjunto coerente de medidas de regeneração do sistema financeiro internacional, incluindo a supervisão e regulação do mesmo.

tomemos o exemplo de portugal. ainda há poucas semanas o banco central exprimiu pública concordância com a criação de uma ‘agência’ independente para controlar a execução orçamental. ou seja: perante a incapacidade das entidades existentes, as mesmas que falharam propõem a criação de outras… entretanto, o tempo vai passando, o orçamento do estado foi aprovado e esta medida apoiada pelos dois principais partidos continua sem sinais de aparecer.

ao escrever estas palavras não estou a afirmar que esse novo organismo faça falta… é apenas um exemplo da desorientação que grassa nos mais variados círculos.

o poeta escreveu que «o mundo pula e avança». nos dias de hoje, o mundo pára e tropeça… e, principalmente, interroga-se sobre o modo de vencer a crise.

a propósito cito palavras que escrevi nestas páginas há mais de meio ano (18 de junho):

«por isso, penso ser legítimo perguntar: mais europa, com as mesmas receitas, as mesmas políticas, os mesmos compromissos? fará sentido, depois de tudo o que aconteceu, que nenhum responsável europeu pela regulação e pela supervisão se tenha demitido?

não se pretende culpar quem quer que seja. mas se ninguém assume culpas, mostra que não percebe que esta crise, em grande parte, é uma crise de confiança. e, nesse caso, as pessoas confiariam agora mais em alguém que nada tivesse a ver com o rotundíssimo falhanço do sistema».

inadmissível

não se sai da crise com quem a criou

o problema está, também, na falta de aprofundamento ideológico. na prática, podemos dizer que a generalidade das ideologias está posta em causa. o comunismo foi (ou não foi), o que se sabe; o socialismo democrático nunca foi encontrado; o liberalismo deu no que deu. mesmo os modelos com defensores mais dogmáticos, como o de cuba, vêem a sua validade questionada pelos responsáveis e a respectiva declaração de falência prevista para muito breve.

nas últimas décadas, não foi desenvolvido qualquer pensamento teórico que pudesse ser apresentado como um corpo teórico sustentador de uma nova ideologia. e, para além desse vazio, sabe-se o que se tem passado com as religiões, com os problemas internos de algumas igrejas, com os extremismos, com a falta de vocações, com a diminuição do culto, com as interrogações trazidas pelas descobertas científicas.

com este enunciado, não pretendo dar sequer a ideia de qualquer dose de cepticismo pessoal. penso no mundo em geral e nos seus fundamentos.

todos precisamos de sentir confiança no barco em que navegamos, segurança nos alicerces da casa onde vivemos. os cidadãos deste tempo da história do mundo sentem-se inquietos e desiludidos e têm grande dificuldade de saber que ‘chão devem pisar’.

quando se assiste a um filme como o inside job, sente-se que os alicerces da casa não estão nada seguros, que o barco tem várias infiltrações. tem-se a certeza de que as coisas não podem continuar assim e de que algo mais complicado está ainda por acontecer.

há certezas tão fortes e tão difíceis de explicar. por exemplo: a certeza de que acontece mais um conselho europeu, de que se fala de tudo – incluindo a legislação laboral – menos do que mais importa: o crescimento e a competitividade da economia portuguesa.

o verdadeiro símbolo da mistificação em que vivemos surge bem claro no inside job com o papel das agências de rating. também aqui se trata de verdades que não se assumem: as agências que existem já deviam, pura e simplesmente, ter fechado as portas. ou terem sido obrigadas a fazê-lo.

para terminar este artigo, volto a citar o que escrevi a 18 de junho (antes de ver o filme):

«sei que não é agradável defender estas posições. é sempre mais simpático, por exemplo, dizer que ninguém deve sair. os protegidos por um sistema não gostam de ouvir dizer mal dele. mas será que querem que tudo continue pelo mesmo caminho? por mais profundos que sejam os seus conhecimentos, por mais distintos que sejam os seus percursos académicos, por mais eloquentes que fossem as suas conferências, houve pessoas que falharam redondamente. deverão ser os rostos da saída da crise?

quando os presidentes dos eurogrupos, os governadores dos bancos centrais europeus, os ministros das finanças, continuam a ser, no geral, os mesmos, alguém pode acreditar na recuperação?».

se lerem estas palavras e forem ver a verdade da crise, cheguem às vossas conclusões. e, se puderem, façam-mas chegar.