«quem canta bem, reza duas vezes». o adágio tem origem nas palavras de santo agostinho (‘quia bene canta, bis ora’ ) e remete para a principal mensagem do canto gregorariano: orar a deus. uma oração cantada por vozes em uníssono que, entre sons agudos e graves, pretende difundir uma mensagem espiritual, quase sempre em latim, em que o texto tem que ter primazia face à melodia.
foi assim no salão nobre da academia de ciências de lisboa, que reatou a tradição antiquíssima de abrir as portas ao público, fechadas já há longos anos. foi aí que conhecemos dois dos grupos com maior tradição gregoriana em lisboa, a capela gregoriana laus deo e o coro solemnis. evocar a época natalícia foi o mote deste concerto de natal, que aconteceu a 11 de dezembro num dos mais imponentes salões barrocos do país, datado de 1795. fomos assistir aos ensaios.
«esta sala tem uma acústica espectacular, tem tudo para que corra bem». o prognóstico da maestrina idalete giga foi feito minutos antes de embalar as vozes para o aquecimento. é a ela que cabe a responsabilidade artística da capela gregoriana laus deo, nome em latim que significa louvor a deus e que vinha sempre no fim «dos autos religiosos de gil vicente».
composto por 20 mulheres, a maioria antigas alunas do instituto são pedro de alcântara, em lisboa, este coro nasceu em 1985, pelas mãos de idalete, que estudou canto gregoriano, pedagogia musical ward e helden, direcção gregoriana e polifónica com vários mestres, entre os quais júlia d’almendra. a maestrina confirma a mestria de tais credenciais com a batuta. é exigente e as suas ‘meninas’, algumas já reformadas, sabem disso. de fatos pretos, com blusa e laço ou outro apontamento em branco, o laus deo ocupava a linha da frente de um palco a duas vozes, femininas e masculinas, que descortinava as coordenadas de idalete, numa linguagem que só os próprios conhecem.
as vozes viris faziam-se ouvir atrás. o coro solemnis (‘solene’ do latim), fundado em 1997 e comandado pelo maestro joão crisóstomo, antigo professor do conservatório nacional e com formação musical na escola superior de música, é constituído por 12 elementos masculinos, antigos alunos dos seminários religiosos com larga experiência na arte do canto gregoriano, quer na sua vertente musical, quer na língua latina – «já que o latim é essencial para esta forma de canto», como diz o maestro. e aqui é preciso compreender-se o que se está a cantar para que se transmita ‘alma’ às melodias espirituais, com um indubitável prazer estético e auditivo.
conhecida como a mais antiga manifestação musical do ocidente, o canto gregoriano acompanhou, desde a idade média até aos nossos dias, o culto religioso das igrejas cristãs, sobretudo as liturgias da igreja católica romana. deve o seu nome ao papa gregório magno, que deu grande desenvolvimento a esta forma de cantar as preces.
cantado a capela, ou seja, sem acompanhamento de instrumentos, as letras que dão forma ao canto gregoriano são retiradas de textos bíblicos, sobretudo dos salmos. o seu maior objectivo é propagar a fé e não fazer um recital, daí que seja entoado com alma e sentimento, com a missão de chegar à assembleia ouvinte.
«sempre associado ao homem», sublinha idalete giga, este canto de ritmo livre e sem compasso , depressa começou a ser entoado por vozes femininas. se o único segredo para o cantar bem é a devoção, elas provam que têm a espiritualidade necessária para ‘cantar a bíblia’.
o salão nobre da academia das ciências de lisboa foi testemunha desta ‘batalha’ de vozes, em que venceu o conjunto. a acústica da sala foi perfeita, como fazia prever o prognóstico de idalete. mais uma vez juntos – «já fizemos inúmeros concertos em conjunto» -, laus deo e solemnis falaram a mesma língua. uma linguagem própria que se decifra nos signos da cristandade, uma sonoridade com enorme expressão, validada por vozes crentes. que venham outros natais cantados…
filipa.moroso@sol.pt
capela gregoriana laus deo
terceiros domingos de cada mês na igreja de sto. antónio, lisboa
coro solemnis
cantam nas quadras festivas religiosas, em locais a designar