Equinócios e Solstícios

A situação da toxicodependência em Portugal quase deixou de ser tratada nos discursos políticos e na imprensa.

estranheza

toxicodependência: por que razão as críticas são só para um lado?

até aos primeiros anos deste século esse assunto era tema obrigatório, por exemplo, de campanhas eleitorais. recordo-me da campanha autárquica de 2001 para lisboa e das legislativas de 2002 em que era objecto de acesas controvérsias. ora, neste último ano e meio, atravessámos um ciclo de três eleições – autárquicas, legislativas e europeias – em que, praticamente, nada se disse.

significará isto que a situação melhorou e que tudo está quase resolvido? como se sabe, nem pouco mais ou menos! não diminuiu o tráfico nem o consumo, e as polémicas sobre as opções de fundo continuam em todo o mundo.

o que terá, então, mudado em portugal? tentei saber, numa apreciação sem preconceitos, e pude constatar alguns dados que suscitam ponderação.

antes do mais, devo sublinhar que estou hoje a escrever sobre uma matéria sobre a qual quase nunca me pronuncio. sou mesmo acusado disso por um especialista na matéria, manuel pinto coelho. acusa-me a mim e à generalidade dos políticos.

ele preside à associação ‘por um portugal livre de drogas’, que constituiu depois do encerramento das suas clínicas privadas para tratamento da toxicodependência.

sempre considerei lógico – pelo menos, para leigo – o método segundo o qual o exercício físico tem enorme importância nestes problemas. porque através dele o organismo liberta as endomorfinas, permitindo diminuir a necessidade de droga.

lembro-me que pinto coelho teve a trabalhar com ele roger spry, que foi preparador físico do sporting. nessa época, muitos nomes conhecidos do desporto participavam em actividades com as pessoas internadas para as motivar no sentido de uma recuperação efectiva.

aquelas clínicas e o seu responsável foram alvo de variadas críticas, sendo sempre discutidos os resultados apresentados. o que sucedeu e sucede com as outras unidades homólogas nessa área.

depois dessa actividade privada e do balanço que terá feito da experiência, manuel pinto coelho dedicou-se à investigação, apresentou a sua dissertação para doutoramento e meteu ombros a um combate sem tréguas às políticas que, a seu ver, condescendem (ou se resignam) com a realidade do mundo, na área da toxicodependência, nestas últimas décadas.

ele contesta medidas liberalizadoras de qualquer tipo, mesmo no consumo. e rebate com determinação a política vigente em portugal, que assenta em boa parte em tratamentos de substituição – com base num produto de efeitos mais reduzidos, a metadona.

pinto coelho admite esse método – até o defende – mas como medida transitória e nunca admitindo a ‘normalização’ ou ‘institucionalização’ do que deve ser um ‘remédio’ para muito pouco tempo.

entretanto, joão goulão foi nomeado há cinco anos presidente do instituto da droga e da toxicodependência. trata-se de um especialista sempre presente, nas três décadas anteriores, nas políticas públicas deste sector.

personalidade de esquerda, bem colocada nos circuitos do poder, contestou muito a notícia da nomeação, pelo governo de durão barroso, de manuel pinto coelho para a direcção do instituto acima referido. e a contestação foi tanta, que o governo deixou cair a intenção.

se há problemas pessoais, não importa. importa, sim, constatar que, desde que joão goulão foi nomeado, quase deixaram de existir problemas nesta área.

eu sei o que é isso – porque, quando em autarquias estão uns no poder, há casas em mau estado, buracos nas ruas, jardins por cuidar – tudo isto, quase todos os dias, em reportagens mediáticas. ora, quando lá chegam outros, os problemas desaparecem e as cidades passam a viver em paz e progresso.

ageneralidade das notícias que hoje surgem sobre a realidade da toxicodependência em portugal são para dizer bem, para elogiar, para dar conta até da admiração de países estrangeiros por aquilo que se passa no nosso país.

deve, pois, perguntar-se: que resultados são esses? será que o panorama mudou tão substancialmente?

julgo que o problema é tão importante que merece que tentemos ir para além das cortinas de fumo (negras ou cor-de-rosa) e procuremos saber qual é a realidade.

o que não pode suceder é que o assunto tenha deixado de ser debatido só ‘porque sim’, como é costume em portugal… ou porque tal interessa aos que estão no poder e aos que com eles simpatizam, por convicção ou por interesse.

clareza

elogios muito duvidosos

em 2010, li notícias sobre essa admiração, mesmo de autoridades norte-americanas, pela política portuguesa no sector. em 29 de setembro, uma notícia de um diário de lisboa tinha o seguinte título: conselheiro de obama esteve em lisboa e elogia política anti-droga nacional. e a ideia foi reproduzida com o mesmo tom em mais órgãos de comunicação. ora esse conselheiro escreveria em julho, uma carta de sinal contrário, de que se fala abaixo.

nessa carta, que tive acesso através de manuel pinto coelho, datada de 29 de julho de 2010, que lhe foi dirigida pelo director do office of national drug control policy do executive office of the president of the united states (presidente obama), lê-se:

«os nossos analistas consideram que as notícias segundo as quais a descriminalização reduziu o uso de droga em portugal (…) excedem a base científica existente. tendo em conta que esta nossa conclusão contradiz largamente a cobertura mediática prevalecente e muitas análises políticas em portugal e nos estados unidos, a minha equipa documentou fortemente as fontes dos dados e informação contidos neste working paper».

ora, desse working paper constam dados que desmentem o optimismo informativo que tem dominado em portugal, nos últimos anos, esta matéria.

já em 5 de janeiro deste ano outra carta da mesma entidade manifesta as maiores dúvidas sobre os resultados da descriminalização do consumo, nomeadamente nos termos verificados em portugal. escreve-se mesmo que «a evidência científica do impacto da descriminalização em portugal permanece pouco clara».

surpresa

se há bons resultados, mostrem-nos

ao escrever este artigo não estou a dizer que tem razão o a ou o b. tenho, naturalmente, uma orientação – e, se pouco tenho falado do tema, é porque entendo que estas matérias de saúde pública, que atingem de modo tão delicado pessoas e agregados familiares, devem merecer toda a prudência e devem ser tratadas com reserva e sem os alaridos próprios do combate político comum.

é fundamental avaliar resultados e rejeitar dogmas e radicalismos. o problema é grave e muito difícil de enfrentar. por isso, há que analisar com equilíbrio e ponderação os dados que vão chegando.

por mim, sempre tenho tentado seguir essa orientação, procurando, também, guardar a devida distância de polémicas que envolvam pessoas conhecidas ou amigas. o tema é suficientemente sério para que atitudes a tomar resultem de lógicas de grupo, de corporações ou de interesses materiais.

neste caso, o passar do tempo tem permitido constatar o tal silêncio disfarçado que procura encobrir, qual manto diáfano, uma realidade tão complexa. e quando me dei conta da impossibilidade de publicar em vários órgãos de comunicação aos quais foi solicitado – lista onde não está o sol – cartas com a importância das que referi, então é porque algo não bate certo.

há bons resultados, de facto, a todos os níveis, neste sector? que sejam confirmados. não é assim? que se assuma e que não se esconda a verdade.

o tema é demasiadamente importante para poder ser tratado de outra maneira.

p.s. – esperemos que seja desta vez que se consiga uma substancial redução do número de deputados na assembleia da república. aqui reafirmo a minha posição, de há muito, de que se passe dos actuais 230 para 130. seria um grande contributo para a democracia portuguesa. mas, já agora, permitam que lembre outra medida (pela qual também há muito me bato): a reintrodução do senado no sistema de órgãos de soberania em portugal. chegam 50 senadores. será uma redução de 50 lugares, no total.