Otelo, de Shakespeare, em cena no Teatro da Trindade

O cheiro a queimado é intenso nos corredores que dão acesso aos camarins. Ao entrar-se num deles percebe-se porquê. Rita Lello está a fazer caracóis no cabelo, com um ferro de frisar. Prepara-se para mudar de pele: daqui a menos de uma hora será Desdémona, uma das personagens principais de Otelo, tragédia de Shakespeare em cena…

«o kuniaki queria uma imagem que levasse a personagem para o ideal de heroína clássica, ao mesmo tempo que fizesse sobressair o seu lado divino. pensámos na vénus de botticelli, com os seus cabelos ondulados», explica rita lello, enquanto vai frisando o cabelo com o babyliss.

o processo é moroso, e a actriz aproveita para conversar. conta que hoje já esteve em palco, a fazer o felizmente há luar durante a tarde. nada que a atrapalhe. está habituada a estas mudanças de personalidade. a concentração começou logo de manhã.

mas não passa por nenhum tipo de mantra ou amuleto. «libertei-me rapidamente desses rituais, que se transformam muitas vezes em prisões. não devemos depender disso. se o trabalho que antecede o espectáculo for feito com rigor, não há risco de nos baralharmos».

rita veste o grande vestido de desdémona. são três camadas sobrepostas, todas brancas. «na ideia do encenador, eles nunca chegam a consumar o casamento. ela morre virgem, coitadinha, depois daquela desgraça toda».

entretanto, bate à porta do camarim antónio capelo. será otelo, marido de desdémona. quer passar umas linhas de texto antes de subir ao palco. a boa disposição reina. brincam um com o outro, usam nomes carinhosos no trato. já se conhecem há muitos anos, e a camaradagem e respeito mútuos são evidentes. «conheço o antónio desde os tempos em que ele trabalhava na barraca, ainda era eu apenas uma menina que ia assistir aos ensaios», lembra rita (que é filha de maria do céu guerra, directora de a barraca). «depois fomos trabalhando juntos em teatro e televisão».

se rita lello recusa rituais antes de entrar em palco, antónio capelo segue alguns à risca. «chego sempre uma hora e meia antes, para me aclimatar à casa. gosto de viajar pelo palco, habituar-me ao espaço. faço-o todas as noites», confessa. «vir aqui fazer um espectáculo é quase como ir para um ringue de boxe lutar. é preciso aquecer no palco», vai explicando enquanto enche a cara de uma base escura.

a sua personagem, otelo, é mouro. apesar de antónio ter pele escura, uma ajuda à caracterização nunca é demais. ao seu lado está josé pinto, que vai pintando os olhos de negro. «já o faço há muitos anos, dá-me intensidade ao olhar», explica. josé entra apenas nas primeiras cenas. mas depois não vai para casa, fica a assistir ao resto do espectáculo. «é mesmo muito bom. gosto de o ver. além disso, estamos sempre a aprender. aprendemos com os mais novos, com os mais velhos… é um privilégio fazer parte desta peça».

aliás, o mote desta companhia é mesmo a aprendizagem. a academia contemporânea do espectáculo/teatro do bolhão é também uma escola, pela qual passaram muitos dos actores que hoje integram o elenco de otelo. por isso é tão importante fazer este teatro de reportório, que é também de formação.

otelo é uma das peças mais representadas de shakespeare. escrita há quatro séculos, permanece actual, pelos temas que aborda: traição, ciúme, amor, homicídio, poder, racismo. desdémona e otelo são casados e tornam-se alvos de inveja de iago. o alferes decide plantar a semente da desconfiança na mente de otelo, sugerindo-lhe que desdémona o trai com cássio, jovem tenente de confiança do casal. otelo fica louco de ciúmes e acaba por matar desdémona para, minutos depois, descobrir que a mulher nunca lhe tinha sido infiel. é então que, desesperado, acaba com a sua própria vida.

estão aqui todos os ingredientes de uma autêntica telenovela mexicana. mas pelas palavras de um dos mais importantes dramaturgos de sempre.

é tempo de entrar em palco. rita lello pede a antónio capelo que lhe aperte o vestido. estão, enfim, preparados para mais uma noite de uma tragédia. todos os dias morrem em palco. e nada lhes dá tanto prazer.

rita.s.freire@sol.pt