Equinócios e Solstícios

Já com Fernando Nogueira será um pouco diferente. Conheci poucas pessoas que gostassem tanto quanto ele da vida política. Tinha relações privilegiadas com o aparelho partidário e convivia muito bem com o exercício do poder.

vocação

antónio guterres deve ser feliz como ‘missionário’

antónio guterres e fernando nogueira disputaram as eleições legislativas de 1995. o primeiro sucedeu a jorge sampaio na liderança do ps, o segundo foi o sucessor de cavaco silva na liderança do psd.

de uma maneira ou de outra, os dois afastaram–se, há pelo menos uma década, da vida política nacional. fernando nogueira dedicou-se à vida profissional numa conhecida instituição financeira e antónio guterres é, desde há seis anos, alto comissário da onu para os refugiados.

quem conheça minimamente os dois é capaz de compreender que ambos se sintam distantes do modo de funcionamento da política nacional. ambos são pessoas com vocação para servir a causa pública e o próximo que esteja necessitado.

os dois são homens íntegros, educados, com um trato cordial e simpático.

não privo com nenhum deles. mas cumprimentamo-nos afavelmente quando nos encontramos.

como disse, os dois distanciaram-se da política activa. estarão felizes com essa opção? é difícil responder.

antónio guterres tem um cargo com tarefas que o devem realizar pessoalmente. homem de fortes convicções religiosas, com preocupações conhecidas sobre a justiça social, com forte ligação à igreja católica, tem um perfil que se coaduna perfeitamente com a missão que lhe foi entregue.

ele é, actualmente, o nosso compatriota que melhor simbolizará o espírito ecuménico dos portugueses. ainda ontem ouvi notícias sobre o seu trabalho num campo de refugiados na fronteira entre a líbia e a tunísia.

ele está onde há miséria e sofrimento no mundo. do sudão ao haiti, do cambodja a moçambique, antónio guterres acorre para estar perto de quem precisa muito de ajuda.

lida com muito horror, principalmente quando estão envolvidas crianças.

mas, apesar de tudo isso, algo me diz que é feliz no seu trabalho de missionário. que o prefere à vida política.

desilusões

estou satisfeito com o que faço

já com fernando nogueira será um pouco diferente. conheci poucas pessoas que gostassem tanto quanto ele da vida política. tinha relações privilegiadas com o aparelho partidário e convivia muito bem com o exercício do poder.

essas características não podem fazer esquecer a sua permanente preocupação com a vertente social nas decisões políticas e o modo como se honrava das suas origens humildes. muito afável, era um apaziguador por natureza.

qualquer destes homens sobre quem escrevo esta semana sabia respeitar os seus adversários. não me lembro de os ouvir caluniar, ofender, desconsiderar aqueles que deles discordavam. defeitos? hão-de ter vários, como é inerente à condição humana.

nogueira gostava da vida política mas saiu desiludido. não foi trabalhar com os pobres, mas sim para o meio de círculos poderosos. mas isso em nada altera as suas características de pessoa generosa e solidária.

em portugal, escasseiam cada vez mais na vida pública as pessoas com dimensão equivalente às que hoje destaco, sobretudo no desprendimento de que deram provas em relação ao sistema político português.

quem se preocupa com o estado a que chegou portugal tem de pensar sobre o modo de saída da recessão psicológica colectiva em que mergulhámos. afastamento? intervenção?

falando de mim, tenho 54 anos e, graças a deus, estou satisfeito com o meu trabalho. no meu escritório, nas aulas com os meus alunos, nos comentários televisivos, sinto-me cada vez melhor. a política, também em portugal, devora as pessoas. é, sem dúvida, mais fácil para os habilidosos do que para os combatentes.

afastamento? intervenção? diz o povo que desistir é próprio dos fracos.

definições

contradições de durão e clareza de cavaco

devo falar, agora, de outro português que está fora de portugal mas não está longe da política portuguesa. falo do presidente da comissão europeia. no espaço de pouco mais de duas semanas, foram noticiadas duas declarações suas.

numa notícia, sob o título durão barroso aconselha portugal a evitar pedir fundo de resgate, escreve-se:

«o presidente da comissão europeia, durão barroso, considerou que portugal ‘deve evitar recorrer ao fundo enquanto puder’, uma vez que esta ajuda representa custos, entre os quais os ‘custos reputacionais’ (diário económico de 9 de março de 2011).

noutra, publicada menos de três semanas antes, sob o título durão diz que ue está pronta para ajudar portugal, lia-se:

«durão barroso, presidente da comissão europeia, revelou em entrevista concedida à bbc que a união europeia está preparada para ajudar financeiramente portugal. o governante disse que para isso acontecer basta o governo pedir auxílio». (dn.pt de 19 de fevereiro 2011).

falo de durão barroso, não para estabelecer qualquer comparação com antónio guterres ou fernando nogueira, mas para estranhar a aparente contradição entre estas duas declarações, ainda para mais em matéria tão relevante.

a única hipótese de não serem contraditórias é durão barroso admitir um esquema de ajuda europeia que não passe pelo chamado resgate da dívida. mas, nesse caso, seria conveniente que o esclarecesse.

o que parece mais significativo, nestas declarações aparentemente dissonantes, é a incerteza e a flutuação da união europeia quanto ao caminho a seguir.

quem foi claro como água foi cavaco silva. quem queria um discurso firme e frontal do presidente, pouco ou nada se pode queixar.

cavaco silva traçou um quadro bem negro desta década de governação quase toda socialista: sete em dez anos. pela minha parte, assumo a responsabilidade por quatro meses em plenitude de funções.

a única crítica que se poderá fazer a cavaco é não ter retirado ilacções de tudo o que foi dito e escrito.

de qualquer modo, preconizou um entendimento estratégico a médio prazo entre as forças políticas e os parceiros sociais. o que deve isso implicar? um acordo parlamentar? uma coligação? mas esta só poderia ter lugar com mudança de governo.

seria admissível o presidente ter anunciado, no discurso de posse, a dissolução do parlamento e a convocação de eleições antecipadas?

entendo que não seria adequado, embora reconheça que os portugueses pouco queiram saber da cortesia institucional quando se deparam com uma crise tão séria.

o próprio primeiro-ministro deve ter sentido vontade de ‘bater com a porta’. posso estar enganado, mas foi a primeira vez que vi, no semblante de josé sócrates, uma expressão que dava a entender essa disposição.