Futre: ‘Quem são os meus amigos de sempre no futebol? Os que fumavam’

A segunda parte da entrevista de Paulo Futre ao SOL.

quando chegaste ao sporting, com 11 anos, pagavam-te alguma coisa?

só o passe.

como entraste no clube?

viram-me num torneio aos 10 anos, mas o meu pai não me deixou ir. achava uma loucura que eu fosse sozinho para lisboa.

como reagiste?

fiquei triste, mas compreendi. ele foi muito inteligente: ‘há ladrões, não posso ir contigo, não há dinheiro para comeres fora, vais chegar aqui às 11 e tal da noite…’. um ano depois, portugal fez uma selecção de sub-11 para ir jogar a frança. houve provas em todo o país e fiquei entre os 16 escolhidos. fomos à final e fui o melhor jogador. no regresso estava o aurélio pereira [coordenador do sector da formação do sporting] à minha espera no aeroporto e foi aí que convenceu o meu pai. e foi aí também que comecei a acreditar que teria futuro no futebol. logo a seguir fiquei ainda com mais confiança: no primeiro jogo pelo sporting, sem um único treino, fiz sete golos. os miúdos são cruéis e ninguém te liga quando chegas, és um forasteiro. mas isso era antes do jogo. depois dos sete golos, já era um autêntico líder. porque parti aquilo tudo. passados uns meses, o sporting deu-me 30 escudos por dia para comer um bolo e um copo de leite.

e afinal eras do sporting ou benfica?

o meu pai era do sporting. naquele tempo, e ainda hoje, era normal seres do clube do teu pai.

também foste cruel com os miúdos que chegavam a alvalade?

dependia. os que chegavam por mérito defendia-os sempre. mas o aurélio tinha uma pressão tremenda, com os pais ricos que queriam que os filhos fossem jogadores. e um dia veio ter comigo: ‘paulinho, vou meter um miúdo à tua frente, rebenta-o todo’. os pais estavam na bancada e parti o miúdo todo para perceberem que o filho não tinha jeito. a partir da primeira vez já não era o aurélio que vinha ter comigo. quando via um betinho ou alguma coisa esquisita, pergunta-lhe logo: ‘como é que é, é para partir? [risos]’.

também no balneário te davas melhor com os miúdos da tua classe social?

não quer dizer que não te dês com o mais rico, mas parece que há um íman. é como os gajos que fumavam. quem são os meus amigos de sempre no futebol? os que fumavam.

quando é que te estreaste no tabaco?

aos 12 anos já fumava. barco. uma hora no tejo. ali comecei a brincar, a fazer bolas [argolas com o fumo] para passar o tempo, e ganhei o vício. andava sempre com o maço de cigarros escondido nas meias. o meu pai e a minha mãe perguntavam pelo cheiro e dizia que era do barco, que vinha toda a gente a fumar.

havia muitos miúdos na tua equipa a fumar?

sim, os da minha classe. se falas dos mais ricos, não. se falas dos gajos do barreiro, todos fumavam.

quando assinaste o primeiro contrato profissional, em 1981, com 15 anos, quanto ganhavas?

dez contos.

era muito para a época?

o meu pai dava-me um conto por semana e metia seis no banco. aquilo dava e sobrava. comecei a comprar a minha roupa. mas a primeira coisa que comprei foi uma aparelhagem a prestações. o meu primeiro disco foi um dos queen. ainda tenho essa aparelhagem em madrid, mas não sei se toca.

começaste a sentir algum assédio das raparigas?

só depois de dar o meu primeiro autógrafo, quando me estreei na equipa principal, aos 16 anos. no montijo já era impossível e aos 17, quando comecei a jogar mais no campeonato, começou o assédio em lisboa.

eras um adolescente. deixaste-te deslumbrar?

quando te dão uma caneta para assinares o primeiro autógrafo é como te darem uma pistola com cinco balas em seis buracos para jogares à roleta russa. viste o caçador, com o robert de niro? é igual. se tens 16, nunca sabes como vais reagir, por isso de 100 há 99 que levam o tiro. quando pegas na caneta, a primeira coisa que a maioria perde é a humildade. há milhões de livros e nenhum fala deste tema. nenhum professor ou psicólogo pode ensinar a lidar com isto, porque eles não dão autógrafos aos 16 anos.

como é que tu lidaste?

com medo e respeito. não queria falhar às pessoas que me pediam autógrafos. por acaso deu-me para aí. mas quantos se perdem? no teu meio és o número um do mundo. os bandidos dos meus amigos estão a ver-me na televisão e quem é que lhes vai dizer para terem calma. ‘este gajo está na televisão! este gajo é o maior!’. com 16 anos não era nada, depois do primeiro autógrafo era deus. houve um amigo que jogava comigo desde os 11 anos, e que apanhei também na selecção, que mudou a personalidade. tive muitos problemas com ele. ainda fez uma boa carreira, mas não a excelente que tinha de fazer. porque era cagão, tinha o rei na barriga. na selecção a pegámo-nos à porrada. não digo quem é porque sou amigo dele e só falo disto como exemplo. hoje perdoou-lhe tudo. porque não está escrito como se lida com isto.

a primeira parte da entrevista de paulo futre

rui.antunes@sol.pt

o sol agradece ao restaurante al foz