República das Bicicletas em Aveiro

Pode chamar-se-lhe a Holanda de Portugal. Na Murtosa, as bicicletas são o meio de transporte preferido da população. Pedalámos por esta terra aveirense, abençoada pela geografia plana e onde até o presidente tem muita pedalada.

jardim da praça jaime freixo. sem hora marcada, o encontro com o presidente da câmara municipal da murtosa, antónio sousa santos, estava à distância de um telefonema: «já chegámos, estamos no jardim da praça. vem em que carro?». a pergunta do sol_saiu disparada, de forma espontânea, para que o reconhecimento fosse imediato. «carro? não estou num carro, estou de bicicleta. afinal, chegou à murtosa!».

a resposta pronta do presidente desta terra do distrito de aveiro deu que pensar: «que pergunta a nossa». mesmo para os mais distraídos não havia grandes dúvidas. chegámos à holanda de portugal. as bicicletas estão por todo o lado. são as rainhas do asfalto, estão estacionadas em cada esquina, estão à porta de cada casa, loja ou café. os números fornecidos por sousa santos surpreendem: «90% dos habitantes da murtosa [quase dez mil] utilizam a bicicleta regularmente; 50% andam todos os dias e mais de 11% utilizam-na como meio de transporte principal». e, às vezes, até único.

é assim para marta, com três filhos. vimo-la à entrada da murtosa, numa bicicleta familiar. uma filha no banco de trás, um bebé de três meses a tira-colo e um outro banco à frente, desta vez desocupado. «o meu outro filho vai na frente com o pai». de bicicleta, claro.

marta responde com a naturalidade própria de quem faz deste meio de transporte uma rotina. serve-lhe para tudo. para ir às compras, para ir buscar os filhos à escola, para dar as suas voltinhas. «aqui, todos andam de bicicleta. é normal».

anormal, por aquelas bandas, é assistir-_-se a um engarrafamento de trânsito. a hora de ponta acontece quando o toque de saída soa na escola padre antónio morais da fonseca, que congrega o ensino básico com o secundário. a avalanche de ciclistas é grande e os números voltam a surpreender. «diria que entre os quase 400 alunos, mais de 90% utilizam bicicleta na deslocação casa-escola», diz o presidente sousa santos. o parque de estacionamento no interior da escola não desmente tal adesão maciça. está recheado de bicicletas para todos os gostos e feitios.

kayla ponte, aluna do 10.º ano, montada numa velha ‘amiga’ de duas rodas, ajuda a descrevê-lo: «parece uma oficina de bicletas». já andré pereira, um rapaz ruivo de sardas, a quem os colegas chamam harry potter, diz que finalmente ganhou a sua autonomia. «agora já posso trazer a minha bicicleta, a minha mãe finalmente ganhou confiança na minha condução». os miúdos que ainda não conquistaram tal confiança vão à boleia dos pais, muitos deles em bicicleta.

murtosa ciclável

mas o que é que a murtosa tem para ser o reino deste veículo não motorizado? primeiro, tem uma geografia abençoada, quase toda ela plana. há uma única subida na terra, na ponte varela, e mesmo assim não é muito acentuada, incapaz de tirar o fôlego a uma experiente população. depois tem um presidente de câmara completamente rendido às benesses deste saudável meio de transporte. «eu próprio faço 17 quilómetros por dia, faço-os por gosto e por prazer. o carro [um bmw série 5] só sai da garagem em dias de muita chuva ou quando deslocações maiores a isso obrigam», diz o presidente eleito pelo psd desde 1998, e que cumpre o seu último mandato.

viaja numa pasteleira antiga de marca raleigh, «comparada a um carro clássico», e saúda a toque de campainha quem passa. numa média de 20 km/h faz o percurso entre a freguesia do bunheiro, onde vive, e a praça do município. em 2007, em conjunto com a agência portuguesa do ambiente e com a universidade de aveiro – parceiras no projecto mobilidade sustentável – criou o murtosa ciclável, «um projecto que promove a utilização da bicicleta nas deslocações do dia-a-dia, como meio de transporte suave, amigo da saúde, do ambiente e da carteira. e também como meio de descoberta do património natural e cultural local». para este último efeito, nasceu também o naturria, um percurso visitável da natureza, com visitas guiadas ao longo da frente ribeirinha para quem chega de fora e que faz parte da estratégia de ecoturismo.

concelho rural e humilde, de recursos agrícolas e piscatórios, o município da murtosa é dividido em dois pelo braço norte da ria de aveiro. com uma longa tradição no uso das bicicletas, a região, com 74 quilómetros quadrados, tem cerca de 20 quilómetros de ciclovias construídas, além de corredores bike friendly no interior do núcleo urbano. ali, há respeito entre o automobilista e o ciclista. no que toca à partilha do asfalto, é o último que leva larga vantagem.

«ponho toda a população a andar de bicicleta», diz orgulhoso sousa santos. acidentes? «de grande gravidade, há a registar apenas um que deu em morte. mas a culpa foi do ciclista, que ia distraído e não respeitou a sinalização. acabou debaixo de um carro».

na calha está ainda outro projecto, o cicloria, um sistema de bicicletas públicas partilhadas entre a murtosa e os municípios vizinhos de estarreja e ovar. a ideia é ir, por exemplo, da murtosa a estarreja – onde há caminhos de ferro _– de bicicleta e deixar a dita na estação de comboios para seguir viagem para outros destinos. as bicicletas têm um sistema de gps integrado que permite saber sempre onde estão, evitando assim o seu roubo. o_projecto, «que juntou o saber da universidade de aveiro ao fazer camarário», já está em andamento e tem um custo previsto de um milhão de euros. «mas o retorno já se começa a sentir com o plano estratégico de eco-turismo», afiança sousa santos.

a volta à murtosa em bicicleta, a primavera ciclável, os sucessivos bike papers que se fazem pela terra ou o passeio cicloturístico do emigrante em agosto têm posto a região no mapa entre os amantes do ciclismo.

em 2009, no ano em que a federação portuguesa de cicloturismo e utilizadores de bicicleta atribuiu ao município o prémio nacional mobilidade em bicicleta, o presidente da república, cavaco silva, numa visita à murtosa no âmbito do programa comunidades locais inovadoras, destacou-a como exemplo a seguir. em 2010, a região aderiu à rede portuguesa de cidades móveis, como município fundador. e para o futuro, já em 2012, recebe o congresso ibérico de bicicletas.

na despedida passamos de carro por um pescador junto à ria, com um balde que acusa o proveito da pesca. sentimo-nos desfasadas daquela realidade saudável e sem pressas. somos tão diferentes dos murtoseiros, que já nascem a saber andar de bicicleta… as grandes cidades ainda têm um longo caminho a trilhar.

filipa.moroso@sol.pt