Aconteceu na América

Só na América alguém com a importância do presidente do FMI é arrancado de um avião sob a acusação de ter tentado violar uma empregada de hotel.

e essa é uma das forças da américa: a lei, em princípio, é igual para todos e ali os conhecidos, os ricos e os poderosos podem bem acabar mal, que é como quem diz, na cadeia, como os miseráveis desconhecidos.

só na américa uma figura-chave da comunidade financeira mundial é agarrada por simples polícias – e segue algemada e fica detida – com base na queixa da vítima, uma mulher africana, imigrante, sem estatuto. e também só na américa vem um juiz depois confirmar a sua prisão sem caução.

em nenhum outro país as coisas se teriam passado assim – da coreia do norte a outros paraísos socialistas, de grande parte da velha europa democrática às satrapias médio-orientais ou às jovens democracias terceiro-mundistas.

a razão de estado, a conveniência política, a corrupção burocrática ou até o ‘interesse nacional’ (ou internacional) seriam logo invocados para abafar o caso. todos os pretextos seriam bons e todas as influências se moveriam para que, directa ou indirectamente, se protegesse o suspeito importante.

a américa – honra lhe seja – funciona doutro modo. os us marshalls escoltam os criminosos de colarinho branco, algemam-nos e baixam-lhes a cabeça, não vá magoarem-se ao entrarem para a viatura.

entre nós, parece que só os pobres, que não podem pagar bons advogados, vão presos. talvez por isso e também graças a um curioso preconceito ideológico, a classe política e mediática que nos representa, informa e deforma, tenha vindo a confessar a sua ‘incredulidade’ quanto ao caso dsk.

uma coisa é certa: se o juiz de turno fosse de um certo tribunal portuense, teria rapidamente demonstrado a culpa da pérfida empregada que, ao serviço de uma tenebrosa conspiração, fruto de um pacto secreto obama-sarkozy, teria seduzido o indefeso presidente do fmi com o único intuito de o ‘entalar’. o contrário seria impensável. nunca um socialista, e logo um socialista liberal, com pedigree de esquerda e gosto pela boa vida, poderia ter cometido semelhante agravo. se fosse um banqueiro do salazarismo ou um direitista básico tipo berlusconi ou um cónego católico, então sim, nada de mais natural. mas um socialista dos quatro costados, nunca!

por defender a retórica de determinados princípios – igualdade, fraternidade, democracia – a esquerda conseguiu estender o cliché da sua superioridade moral aos seus próprios políticos, isentando-os à partida de faltas pessoais contra a humanidade.

é uma ideia feita que resistiu à prática assassina dos regimes comunistas, da urss ao camboja, e às dezenas ou centenas de escândalos financeiros e sexuais envolvendo dirigentes e personalidades de esquerda – tão venais, corruptos, abusadores de poder e fracos como os das direitas. a permanência do mito vê-se no espanto, real ou simulado, com que a notícia foi acolhida. como poderia um socialista tão à la mode ser um predador sexual?

o homem pode ter, como é o caso, um currículo com histórias do género, o que não impede que seja, no plano profissional, competente e capaz. mas a ‘incredulidade’, o espanto, o escândalo, aquele hipócrita refúgio na ‘presunção da inocência’ que é a retórica de pilatos dos colunistas, vêm da presunção de que um violentador de mulheres, um explorador do temor reverencial, um pedófilo, só pode ser um marquês do ancien régime, como sade (aliás, progressista), um latifundiário alentejano ou um fascista de pasolini.

a esquerda não tem disso, não pode ter disso… e, no entanto, aconteceu na américa. só na américa.