não deixa de ser um dia estranho para este encontro. está de certa forma arrependido do que se passou?
na verdade, acho que teria sido mais sério se tivesse sucedido com o mel gibson, pois não tenho a menor dúvida de que ele sim, tem problemas com os judeus…
mas excedeu-se um pouco, convenhamos…
foi apenas o local errado para fazer estes sarcasmos. foi ridículo. e mal interpretado. claro que não simpatizo com o hitler. consigo ver nele o ser humano, que até consigo perceber. mas detesto o que ele fez ao mundo. o holocausto, como todos sabemos, foi um dos crimes mais bárbaros cometidos contra a humanidade durante muitos e muitos anos. que não subsistam dúvidas quanto a isso. se eu tivesse dito estes sarcasmos na companhia de amigos meus, a reacção teria sido completamente diferente. a única coisa que posso dizer é que receio um pouco os conflitos. quando estou numa conferência de imprensa, em que ninguém parece ter nada de novo a dizer, eu começo a fazer uma performance.
como avalia a decisão do festival de o declarar persona non grata?
é uma pena, porque sou amigo do gilles [jacob, presidente do festival] e do thierry [fremont, o delegado-geral]. são bons amigos e fico com pena por isso. no entanto, acho que a expressão persona non grata fica-me extremamente bem [risos]. fico muito contente por isso. vejo-a quase como um título. a parte da minha família que não gosta dos meus filmes e do meu comportamento ficará muito contente com este título.
mas qual acha que vai ser o seu futuro aqui em cannes?
acho que nunca mais cá venho. se vier acho que terei de ficar uns 100 metros de distância do palais. penso que não vai valer a pena vir a cannes.
calculo que haverá outros festivais que gostarão de o receber…
sim, há outros festivais. se calhar até posso obter um non grata de todos eles. mas o non grata teria sido propositado se tivesse sido por uma provocação. foi apenas por me deixar ir com as palavras…
acha que esta expulsão poderá afectar a distribuição do seu filme?
provavelmente.
um boicote nos estados unidos não seria bom para si…
pois, isso poderá acontecer, mas eu não sou político nem estadista. é assim: ou eu falo com vocês ou não falo! porque quando falo com a imprensa, digo o que sinto. isso poderá ser extremamente ingénuo da minha parte, mas é assim que eu trabalho.
já agora, explique melhor a sua relação com susanne bier, sua conterrânea e também realizadora, que parece ter ficado afectada com as suas declarações.
frequentámos juntos a escola de cinema. e costumava trabalhar na minha companhia, a zentropa, até que se despediu. mas eu acho que ela sempre foi bem tratada, mais até do que eu. toda a gente tem medo da susanne bier, o que não deixa de ser justo. mas isso não tem nada a ver com o facto de ela ser de origem judaica. todos os meus filhos têm nomes judeus. só tenho a lamentar que muita gente tenha compreendido essas declarações de uma forma errada. sobretudo porque fui suficientemente estúpido ao falar assim para o mundo, como se falasse com o meu melhor amigo.
quando conversámos, há dois anos, a propósito de anticristo, perdoe-me dizê-lo, mas não parecia estar muito bem do ponto de vista psíquico. estava um pouco deprimido. mas agora parece o oposto.
o problema é que nessa altura estava a beber muito e não tinha muita energia. agora não estou a beber e tenho saúde. talvez seja por isso que acontecem estas coisas. siga o meu conselho: nunca deixe de beber, por favor. pode ser perigoso.
a escolha de kirsten dunst para melancholia é interessante, porque, aparentemente, também ela teve a sua depressão há alguns anos.
é verdade.
isso teve alguma influência na sua escolha para este filme?
não, na altura eu não sabia disso. ela só me contou depois. o que acabou por facilitar as nossas discussões sobre o filme. acho que ela acabou por incorporar muita dessa aprendizagem no filme.
pode elaborar um pouco o caminho que percorreu de anticristo até melancholia? acha que poderemos encontrar aí alguma relação, uma continuidade?
alguém me disse que eu era um realizador muito experimental, porque ninguém era capaz de colocar um screensaver do windows no meio de um filme [refere-se a uma imagem do planeta gigantesco a aproximar-se].
isso também foi dito a propósito do filme do terrence malick, a árvore da vida, que parecia um screensaver…
se calhar usámos o mesmo screensaver.
como vê este filme? é um bom filme ou apenas mais uma provocação?
as provocações têm sempre um pouco de verdade. quando escrevo um depoimento enquanto realizador, se tiver alguma dúvida acho que devo incluí-la. já vi o filme várias vezes e tenho a vergonha de dizer que me parece um pouquinho comercial…
como assim?
eu gosto deste conceito, mas nunca pensei que fosse fazer alguma coisa deste género. normalmente fico muito contente com o que faço, depois é que me começam a surgir dúvidas.
sempre é verdade que vai fazer um filme pornográfico? ou é mais uma provocação?
não, não, vou mesmo fazer um filme porno.
e como se irá chamar?
vai chamar-se the nymphomaniac. vai ter uma versão softcore e outra hardcore, para efeitos de financiamento. e vai ser extremamente longo.
a versão hardcore?
ambas. haverá longas conversas pelo meio, como nos clássicos franceses. não será apenas um filme porno. será um filme metade porno e metade filosofia. o que limita um pouco mais o seu público.
mas está a contar com a kirsten dunst, como disse na conferência de imprensa?
oh não, com ela não, mas com a charlotte [gainsbourg] sim. tenho quase a certeza que a charlotte participará. e o willem dafoe também. aliás, ele já me ligou a dizer que queria estar no meu filme porno.
em todo o caso, já no filme idiotas existiam cenas de sexo explícito.
sim, é verdade, mas neste caso será um filme sobre a descoberta erótica de uma mulher ao longo de 50 anos.
não posso deixar de reparar que tem a palavra ‘fuck’ tatuadas nos dedos. acha que falta alguma inscrição na outra mão?
não vou colocar nada na outra mão, pois não é nenhuma referência a a noite do caçador [em que robert mitchum tem tatuado nos dedos as palavras love e hate]. esta é retirada de indian runner [união de sangue, de 1991].
a estreia de sean penn na realização.
por acaso, liguei ao sean penn a perguntar-lhe o significado da tatuagem, mas ele disse-me que tinha sido algo que o viggo [mortensen] tinha encontrado.
está contente com ela?
estou muito contente por a ter feito. é claro que os meus filhos estão muito envergonhados com isto.
quando decidiu fazê-la? foi em alguma noite de loucura?
não, não, nada disso. há muito tempo que pensava em fazer algo exactamente assim. é estúpido fazer uma tatuagem onde não a podemos ver.
não deixa de ser curioso ver essa tatuagem depois de anticristo.
tive uma discussão com o gilles jacob antes de tudo isto acontecer. e por ele ter escrito no seu livro que eu já não era um rebelde. então mostrei-lhe o meu punho. acho que estava a tornar-me numa pessoa demasiado normal.
apesar de neste filme querer destruir o mundo…
para mim, não é tanto um filme sobre o fim do mundo; é mais um filme sobre um estado de espírito. eu tenho passado por alguns estados de melancolia na minha vida.