A morte de Delgado

Volta a falar-se do ‘caso Delgado’ e do assassínio do general, por causa de uma peça de teatro e do processo intentado por familiares de uma das personagens secundárias do drama (o major Silva Pais, último director da PIDE-DGS) contra o que consideram injurioso para a sua memória e para o seu bom nome.

a dita peça, ao contrário do livro em que se baseia, teria posto o major silva pais como ordenante ou mandante da morte do general. o tema saltou dos tribunais para a opinião pública e está a excitar – neste tempo de troikocracias e acertos de contas da festa democrática – as agora eleitoralmente melancólicas hostes antifascistas.

não sou um especialista no tema, mas estudei-o por causa da biografia de salazar(*). ao contrário de estaline, de saddam hussein e de inúmeros ditadores reaccionários ou progressistas, salazar nunca mandou perseguir ou matar inimigos políticos no exterior. não tinha esse costume e seria estranho que, com 76 anos, fosse iniciar vida nova.

não havia móbil: em 1965, o general humberto delgado era um elemento ‘fraccionista’ na oposição antifascista.

estava em guerra aberta com os comunistas, que nunca o tinham estimado muito, apesar de o terem tentado usar em 1958 como candidato frentista de recurso. estava, também, em guerra com outros grupos de oposicionistas: por isso lhe estavam a cortar apoios em argel.

matá-lo – e ainda por cima em espanha, um país e um regime com os quais havia relações pessoais e políticas ao mais alto nível – não tinha pés nem cabeça.

quando silva pais contou o acontecido a salazar, sabe-se que este ficou furioso, consciente da gravidade do crime e dos seus efeitos políticos. foram estas as conclusões dos tribunais que julgaram o caso depois do 25 de abril.

por que é que, naquele dia, delgado se foi encontrar naquele lugar com uma brigada da pide? com certeza que não foi levado por salazaristas ou fascistas da sua confiança. quem o convenceu que ia avistar-se com um grupo de antifascistas que o meteriam em portugal para liderar um golpe ou uma revolução? e quem disse à pide que o general se ia entregar? ‘arrependido’ seria uma boa peça de propaganda para o regime.

são estas as questões polemicamente levantadas por henrique cerqueira depois do 25 de abril, e é desta ‘dupla armadilha’ que nasce a situação: delgado percebe que quem o espera não é quem ele esperava e, corajoso, reage prontamente.

casimiro monteiro (antigo guarda prisional no estado da índia, considerado por muitos um natural born killer, homem de gatilho fácil), quando vê o general pronto a disparar, dispara primeiro e mata-o. depois, porque ‘um abismo chama outro abismo maior’ – e no que deve ter sido uma dessas cenas descontroladas com medo e instintos à solta –, matam a testemunha e acompanhante de delgado, arajaryr campos.

umberto eco tem um texto nos seis passeios pelos bosques da ficção sobre as regras do romance histórico: d’artagnan pode passear em paris por uma rua que talvez não existisse ali no século xvii, mas os mosqueteiros não podem matar richelieu, porque sabemos que o cardeal morreu em casa, tranquilo e em paz.

pode a ficção pôr o major silva pais a ordenar a morte de humberto delgado, quando concluímos que tal morte era absurda na perspectiva dos interesses que ele próprio defendia e que nada indica que o tenha feito?

será isso um crime ou apenas uma ‘liberdade dramática’ antifascista, aceitável de acordo com a regras dos ‘bons’ e ‘maus’ desta nossa história?

sabíamos já que um director da pide não poderia nunca ter bom nome. ficámos a saber que não tem sequer direito a um nome menos mau, podendo e devendo imputar-se-lhe toda a espécie de crimes, independentemente da sua veracidade, como quem passeia por um bosque. e sem que os descendentes possam reagir.

* jaime nogueira pinto, antónio de oliveira salazar – o outro retrato, a esfera dos livros, lisboa, 2010, 7.ª edição, pgs. 210-214.