Da Islândia, com terror

Três corpos e uma cabeça decapitada soterradas pelas cinzas do vulcão. A Islândia será capaz de ser perversa? Yrsa Sigurdardóttir imagina um lado negro

com pouco mais de 300 mil habitantes, a islândia pode orgulhar-se de ser um país seguro. com uma média de um homicídio e meio por ano (esclareça-se: num mau ano serão três, num bom ano nenhum ) e, habitualmente, em cenas de pancadaria motivadas pelo álcool em que alguém, inadvertidamente, acaba por morrer, poucos motivos parecem existir para a criação literária de um crime violento, premeditado e cruel. de facto, a par da irlanda e do japão, a islândia é um dos países do mundo com menor taxa de homicídios.

no entanto, a realidade não impediu a islandesa yrsa sigurdardóttir de imaginar escabrosos assassínios nos seus romances, sempre com a islândia como pano de fundo. a escritora tem 48 anos, é engenheira civil, casada, mãe de dois filhos, avó de uma criança pequena. escrevia livros infantis (publicou cinco) mas agora imagina crimes sórdidos e urde mistérios pela noite dentro, que coloca no papel. foi a primeira autora islandesa de ficção policial, um território antes totalmente masculino – agora já existe pelo menos mais uma mulher islandesa a dedicar-se a este género.

yrsa estreou-se com o último ritual, seguiu com ladrão de almas (os dois publicados em portugal pela gótica) e, agora, é a vez de cinza e poeira ser editado em português, desta feita com o selo da quetzal (entretanto, yrsa já publicou outros dois romances policiais, ainda não publicados entre nós).

o passado assombrador

depois da erupção do vulcão eldfell nas ilhas westmann, em 1973, heimaey, uma das ilhas do arquipélago ficou soterrada em cinzas e lava, tendo sido completamente evacuada. apenas uma pessoa morreu. foram depois precisas mais três décadas até que se decidisse avançar com uma escavação arqueológica que permitisse descobrir as casas soterradas pela cinza.

é nesta paisagem inóspita que yrsa decide situar cinza e poeira. durante a escavação arqueológica, três corpos são descobertos numa das casas soterradas. tudo indica que tenham sido assassinados e aí colocados pouco depois da erupção. a confirmar esta suspeita está uma caixa junto aos cadáveres: nela encontra-se uma cabeça decapitada. o resto do corpo está desaparecido, à excepção dos órgãos genitais (masculinos), que foram colocados dentro da sua boca.

thora (personagem principal dos livros de yrsa), avó de um bebé e mãe solteira de dois filhos, é a advogada do principal suspeito. para o ilibar, vai ter que mergulhar em antigos segredos familiares de uma comunidade fechada e em nada disposta a partilhar as suas memórias mais íntimas. esse recuo ao passado para melhor compreender o presente tem sido uma constante nos livros da escritora. «gosto de ter elementos históricos nos meus livros», diz yrsa ao sol, numa passagem por lisboa. «interessa-me a noção de um erro antigo não poder permanecer na sombra. as pessoas devem ser castigadas pelo que fazem de mal. e nem sempre isso acontece. os erros deveriam voltar sempre para nos assombrar».

quem eram, afinal, aqueles quatro homens agora mortos? como é que, num país com tão poucos habitantes, três pessoas podem desaparecer sem que ninguém as procure? quem teria interesse em matá-los e o sangue frio necessário para os esconder durante uma perigosa erupção vulcânica? para essas e outras perguntas procura thora uma resposta, numa busca incansável pela verdade. e como se estes não fossem ingredientes suficientes para uma receita policial de sucesso, a autora junta-lhe uns ‘temperos’ especiais: uma adolescente anoréctica que chega ao extremo obsessivo de comer a própria carne e uma equipa de cirurgiões plásticos dedicados a aumentar seios e paralisar e esticar caras. a yrsa interessa-lhe uma literatura que explore temas sociais e que não se limite a traçar um caminho feito de pistas em direcção ao assassino.

mas como é que alguém que se dedica a construir barragens durante o dia e cuida da família à noite, ainda encontra tempo para tecer crimes cruéis? a resposta de yrsa é pragmática: «nunca vejo televisão», diz em tom sério. é de noite, terminados os afazeres diários, que se dedica à escrita. interessam-lhe os impulsos humanos que levam as pessoas a cometer os actos mais terríficos. «o mal está instalado em todas as sociedades. na islândia também. interessam-me essas pulsões como o ódio, a ganância e, por vezes, o amor louco, que nos levam a cometer crimes. elas têm origem nesse mal, mas ainda não consigo compreender o que leva as pessoas a cometerem actos cruéis». é através da escrita que yrsa coloca interrogações e procura respostas.

banqueiros não entram

interessa-lhe mais debruçar-se sobre a condição humana do que sobre questões da actualidade mediática (embora trate de uma erupção vulcânica, cinza e poeira foi escrito e editado em 2007, antes da explosão do eyjafjjallajökull, em 2010, ou, claro, do grimsvötn, há uns meses). por isso, não quer escrever sobre os crimes dos banqueiros islandeses. «não os quero nos meus livros. estou farta deles e da confusão que geraram. que fiquem nos jornais». nem mesmo sobre o único serial killer que a islândia conheceu nas últimas décadas. «matou duas crianças, afogando-as. na primeira ficou conhecido como um herói, porque disse que a tentou salvar. mas quando a situação se repetiu na semana seguinte, percebeu-se tudo. tinha dez anos também ele. era uma criança. daria uma boa história, claro, mas não a vou escrever. é demasiado trágica, sobretudo para as famílias envolvidas. mas talvez ainda escreva sobre uma criança assassina».

na islândia, yrsa acabou um livro de terror, uma história de fantasmas (segundo a autora, a primeira a ser escrita no país, onde grande parte da população ainda acredita em elfos). agora voltará a thora, para uma investigação sobre um iate que dá à costa mas cuja tripulação desapareceu na sua totalidade. o mistério continuará, então, a chegar-nos directamente da fria escandinávia. podemos descobri-los no calor da praia e do verão português.

rita.s.freire@sol.pt