Amy Winehouse: A morte podia esperar

Ficou na história da música, não só pelo incontestável talento, mas também pela espiral de decadência em que viveu nos tempos mais recentes. Mais um mito que partiu demasiado cedo, aos 27 anos.

no ano de 2014, amy winehouse não estará afastada da música e apenas empenhada em tomar conta do marido e dos seus sete filhos. mesmo que não fosse essa a sua convicção profunda, jamais lhe passaria pela cabeça quão erradas estavam as previsões para o seu futuro quando, em 2004, confidenciou ao the observer em que papel se imaginava dali a uma década. morreu três anos antes, sem filhos, divorciada e desfeita numa luta contra o álcool e as drogas.

se ela e blake fielder-civil, o seu ex-marido, nunca se tivessem cruzado naquela noite, num bar em londres, no ano de 2005, talvez o mítico álbum back to black não tivesse a mesma densidade emocional, mas talvez winehouse não tivesse entrado tão depressa na espiral de decadência que a afastou do seu destino como dona de casa e que a arrastou para a morte, aos 27 anos, no dia 23 de julho de 2011.

pouco passava das 16h do último sábado quando a polícia foi chamada pelo serviço de ambulâncias ao número 30 de camden square, na zona norte de londres, dando conta do cadáver de uma mulher.
a última aparição pública de winehouse acontecera dois dias antes, num concerto da sua afilhada, dionne bromfield, inserido no itunes festival. subiu ao palco e foi aplaudida, mas limitou-se a balbuciar algumas palavras e a vaguear por ali, trémula, como se o chão fosse feito de gelatina.
o desastroso concerto que deu em belgrado, na sérvia, a 18 de junho, ficará na história como o seu derradeiro espectáculo. mais uma vez estava visivelmente alterada. esqueceu-se das letras. deixou cair o microfone e saiu e entrou do palco várias vezes. foi assobiada. atirou um sapato contra o público. era a primeira noite de uma digressão europeia com 12 datas – uma delas em portugal, no sudoeste, agendada para dia 5 de agosto –, mas acabou por ser a única. todos os espectáculos foram cancelados e ficaram aniquiladas as esperanças de que amy estava a recuperar.

um mês antes dera entrada voluntária numa clínica de reabilitação onde esteve uma semana, prometendo que seguiria o plano de tratamento como paciente externa. e em março tinha estado no estúdio de abbey road, a gravar um dueto com tony bennett para um disco de colaborações que deverá ser editado em setembro. «chegou sóbria, bronzeada e com um aspecto saudável. disse que estava nervosa porque em anos era a primeira vez que entrava num estúdio e cantou de forma extraordinária», revelou neil mccormick, crítico de música do telegraph, que assistiu às gravações. talvez não tenham sido mais do que as melhoras da morte, um último sopro do seu inegável talento.

os resultados da autópsia, divulgados na segunda-feira, mostraram-se inconclusivos e será ainda preciso esperar cerca de quatro semanas para que novas análises toxicológicas revelem a causa da morte.

menina do papá

amy jade winehouse nasceu a 14 de setembro de 1983, no seio de uma família judia, e cresceu em southgate, no norte de londres. apesar das raízes culturais e religiosas, talvez o swing lhe tenha sido sempre mais sagrado do que a tora. «fui criada com jazz», disse numa das suas primeiras entrevistas – lembra o the observer.

filha de janis, uma farmacêutica, e de mitch, um taxista melómano e apaixonado por jazz – que depois do sucesso da filha se lançou numa carreira como cantor –, amy cresceu a ouvir standards de frank sinatra, ella fitzgerald e dinah washington.

aos nove anos, com o divórcio dos pais, sentiu o primeiro abanão da realidade. ficou a viver com a mãe e com o irmão, quatro anos mais velho, mas manteve sempre uma relação próxima com o pai e já adulta viria mesmo a tatuar a expressão ‘daddy’s girl’ – ‘menina do papá’ – no ombro esquerdo. «isso sou eu a tentar analisar a dificuldade do meu pai em ser fiel a uma mulher, a tentar perceber por que razão fez certas coisas», diria mais tarde, numa entrevista ao the observer, referindo-se ao tema ‘what is it about men’, uma das canções do seu álbum de estreia, frank, editado em 2003. «hoje percebo-o perfeitamente. as pessoas gostam de fazer sexo».

expulsa por um piercing


aos 10 anos, amy e a juliette ashby, a melhor amiga de então, formaram um duo rap, inspirado nas salt-n-pepa e baptizado de sweet-n-sour. mas os seus sonhos de menina ingénua não passavam pela música. queria ser, lembra a revista rolling stone, uma empregada de mesa com patins, como aquelas que havia visto no filme nova geração (american grafitti, 1973).

nunca se deu bem na escola e aos 14 anos viria a ser expulsa da prestigiada sylvia young theatre school, pela atitude provocatória e pelo desrespeito que demonstrou pelas regras da instituição ao fazer um piercing no nariz. um ano mais tarde, aos 15, fazia a primeira de inúmeras tatuagens: uma betty boop, nas costas. «não era uma miúda mal-comportada, mas sempre fez aquilo que lhe apetecia», afirmaria o pai à rolling stone, em 2007.

de costas viradas para os estudos, amy recebeu a primeira guitarra aos 13 anos e começou a compor e a cantar aos fins-de-semana em bandas de jazz. foi então que um amigo na indústria musical lhe ofereceu tempo de estúdio para gravar algumas maquetas que servissem de apresentação para as editoras. não tardou muito até, aos 18 anos, assinar um contrato com a island records, companhia detida pela universal music.

em 2003, acabada de sair da adolescência, amy winehouse editou o seu primeiro álbum, frank, com uma sonoridade marcada pelo jazz e pelo hip-hop. com ele chegou o êxito, ainda que nada comparável ao estrondoso sucesso a nível mundial que se abateu sobre a cantora depois do lançamento de back to black, três anos mais tarde.

o álbum de estreia chegou a disco de platina no reino unido e valeu-lhe um prémio ivor novello. a crítica mostrou-se entusiasmada e surpreendida com a nova revelação britânica. «winehouse soa como se já tivesse cantado mil vezes em clubes de jazz repletos de fumo. é por isso uma surpresa constatar que tem apenas 19 anos e que cresceu no norte de londres. com uma sonoridade entre nina simone e erykah badu, é ao mesmo tempo inocente e suja», escreveu beccy lindon, no guardian, em outubro de 2003.

ainda que nessa época amy já cometesse alguns excessos com bebida e erva, estava muito longe do descalabro que se seguiria. foi em 2005 que a vida começou a fugir-lhe.


atracção fatal

amy e blake fielder-civil – assistente de realização na área da música – conheceram-se num bar, em camden town. «era o meu sítio. passava lá muito tempo a jogar snooker, a ouvir música da jukebox e a fumar erva». bateu-lhe forte a paixão e iniciaram uma relação. quase em simultâneo com o florescimento do novo amor, começaram a aparecer nos jornais as primeiras imagens de amy completamente bêbada e em situações confrangedoras. «quando se tem uma personalidade propensa para o vício facilmente se passa de um veneno para outro. e, como ele não consumia erva, passei a beber mais e a fumar menos», admitiu winehouse, numa entrevista à rolling stone, em 2007.

a relação tornou-se obsessiva. blake tatuou o nome dela por trás da orelha direita e ela inscreveu o dele no peito, sobre o coração. e os dois auto-infligiram cortes idênticos no braço de forma a ficarem com tatuagens gémeas.

um ano depois do início do romance deu-se a separação. blake voltou para a ex-namorada e amy caiu em depressão. mas a tristeza profunda em que se afundou potenciou o seu talento criativo e foi de coração partido que compôs todos os temas de back to black. «todos os dias acordava, começava a beber, chorava e ouvia as shangri-las [grupo pop norte-americano dos anos 60]. como não me queria limitar a fazer isso comecei a escrever canções», explicou a cantora ao los angeles times.

ao mesmo tempo que os males de amor a inspiraram para as letras, a bebida iluminou-lhe a arte da composição. «a mentalidade associada à erva é muito hip-hop e quando fiz o meu primeiro disco ouvia muito jazz e muito hip-hop. é também uma mentalidade muito defensiva, muito ‘vai-te foder, que não me conheces’. já a mentalidade associada à bebida é muito mais ‘uau, adoro-te, vou amar-te sempre mesmo que nunca olhes para mim’», disse à rolling stone, explicando a mudança de uma sonoridade jazzística – em frank – para o ambiente rhythm and blues dos anos 60 que preenche o álbum back to black.

com o segundo trabalho discográfico, produzido por mark ronson, amy conquistou o planeta: vendeu mais de 10 milhões de cópias, arrecadou cinco grammys e escalou até ao sexto lugar na tabela de vendas nos eua – nunca uma cantora britânica chegara tão alto.

ao mesmo tempo que o mundo se rendia à sua voz de contralto, triste e quente, «como um coração partido que marinou durante muito tempo em uísque e fumo de cigarro» – escrevia a rolling stone –, a decadência física provocada pelo consumo de drogas e álcool tornava-se cada vez mais nítida. sucediam-se os concertos em que amy se revelava incapaz de cantar e proliferavam na comunicação social fotografias e vídeos reveladores de uma mulher desfeita e prestes a cair aos pedaços.

a reconciliação com blake e o casamento-relâmpago que ambos celebraram em miami, em 2007, não serviram para esconder os sintomas, muito pelo contrário. pouco tempo depois das juras de amor, surgiram imagens dos dois a discutir no soho, em londres, ambos ensanguentados e visivelmente alterados. nesse mesmo ano fielder-civil foi preso e condenado a 27 meses de cadeia por agredir o dono de um bar e por depois tentar suborná-lo com 200 mil libras para que não apresentasse queixa.
em 2008 a degradação de winehouse era tão evidente que os pais da cantora começaram a antecipar o pior. «estamos a vê-la matar-se aos poucos. é como assistir a um acidente de carro. já me mentalizei da sua morte o suficiente para lhe perguntar em que cemitério quer ser enterrada», comentava a mãe numa entrevista.

o divórcio, assinado em 2009, também não serviu para afastar os demónios que a atormentavam. entrou e saiu de várias clínicas de reabilitação, cancelou concertos e aniquilou aos poucos as esperanças que todos depositavam na sua recuperação.

por ironia ou capricho negro, a morte chegou quando a vida parecia voltar a sorrir-lhe. «há muito tempo que ela não estava tão feliz. tinha um novo amor e queria ultrapassar a dependência de drogas. saber que ela não estava deprimida e que morreu alegre faz com que nos sintamos um pouco melhor», sublinhou o pai durante o funeral da cantora na passada terça-feira.

os dois álbuns que lançou em vida chegaram para amy winehouse reservar um lugar na história da música. «foi um dos melhores artistas que este país alguma vez produziu», sentenciou o britânico elton john. para lady gaga, amy mudou para sempre a música pop. «lembro-me de sentir que havia esperança apenas porque ela existia. ela viveu o jazz. ela viveu os blues», acrescentou a cantora de ‘poker face’. só não viveu o suficiente para ver crescer os filhos que não teve.

o telegraph lembrava no fim-de-sema passado uma entrevista de amy, concedida antes do inferno que tomou conta da sua vida. «sempre fui uma mulher do lar. sei que tenho talento, mas não fui posta aqui para cantar. fui posta aqui para ser uma mulher, uma mãe e para tomar conta da minha família. adoro cantar, mas a música não é o início nem o fim de tudo». o fim de tudo acabou por chegar demasiado depressa. a morte podia ter esperado.

jose.fialho@sol.pt