Agora já fui

Nunca fui a Nova Orleães. Mas não me custa imaginar as ruas a transbordar de jazz, bares a cada esquina abertos até de madrugada com músicos do outro mundo a transpirar notas que lhes estão coladas à pele, botequins com pratos de jambalaya a fumegar, as ruas tomadas pelas pessoas como raras vezes se vê…

nunca fui a nova orleães. mas agora já sei como é. graças a ‘treme’ – a série da hbo, surgida das cabeças que inventaram ‘the wire’, e por um absurdo qualquer das leis do universo ausente da televisão portuguesa. localizada temporalmente na ressaca da tragédia do katrina (três meses depois, para ser exacto), ‘treme’ – que vai buscar o seu nome ao bairro tremé, de uma tipicidade fora do alcance dos guias turísticos – explora de forma não menos do que magistral a dolorosa reconstrução de uma cidade acompanhada de várias dolorosas reconstruções pessoais. e ao longo dos episódios, a música que atravessa tudo isto é o correspondente perfeito – aquele equilíbrio delicado entre o lamento e a alegria do dixieland, uma mescla de ragtime, blues e música crioula que se confunde com a identidade local.

a vida dos músicos povoa com elevada densidade o centro da acção, mas o vislumbre que aqui temos do que é tocar profissionalmente em nova orleães, sendo humanizado, não é, de todo, glorificador. monumental ode à cidade, às suas gentes e ao apego sentido do povo à sua terra, ‘treme’ põe igualmente o dedo na ferida quanto à responsabilidade do governo na catástrofe de 2005, ainda que sem usar da causticidade de spike lee no documentário ‘when the levees broke’. é como a jambalaya – uma variedade de ingredientes improvisados e picante na medida justa.