Eduardo Barroso: ‘Um beijo pode fazer mais que um antibiótico’

Na primeira parte de uma grande entrevista, o médico-cirurgião explica porque não gostava de ser ministro e diz ter sido vítima de uma campanha mediática orquestrada para o liquidar.

gostaria de ser ministro da saúde?

o meu feitio não dá para ministro. com a imprensa de hoje não resistiria sequer 12 horas. não tenho essa ambição, mas acho que poderia ser um grande assessor para a área hospitalar.

gostaria de desempenhar esse papel?

de certa forma desempenhei-o com o correia de campos, porque éramos amigos e porque ele me ouvia. não se esqueça que, durante um ano, fui director-geral da autoridade para os serviços de sangue e da transplantação (asst). e muito sinceramente acho que fiz um grande trabalho. depois acabei por sair por razões que são públicas. não estive para aturar campanhas desonestas contra mim.

está a falar do caso dos incentivos?

sim. essa campanha foi de tal forma orquestrada que uma colega sua, jornalista, me avisou que ela ia acontecer. ela própria tinha sido contactada para fazer o trabalho que outro jornalista acabou por aceitar. isto não é uma construção da minha cabeça. quando vi aquela capa da visão que falava no ‘lado obscuro dos transplantes’ e que me apresentava como um mercenário fiquei para morrer.

só teve noção disso quando viu a revista?

não. quando o seu colega veio falar comigo a mão tremia-lhe porque ele sabia a maldade que estava a fazer. percebi o que estava em causa quando ele me perguntou se era verdade que eu não fazia um transplante renal há cinco anos – já não fazia há dez ou há 12 – e logo a seguir me confrontou com o facto de também receber incentivos pelos transplantes renais. expliquei-lhe que no hospital não funcionamos dessa maneira – não é quem faz que recebe. há um bolo comum que depois distribuímos em função das responsabilidades e do trabalho de cada um. mas nesse momento da conversa percebi qual era a ideia que se queria lançar para a opinião pública.

nessa altura já tinha sido avisado pela tal outra jornalista?

não. só depois é que a sua colega, gentilmente, me telefonou.

também da visão?

não. telefonou-me e disse que tinha sido contactada por uma pessoa.

por uma pessoa ou por uma entidade?

por uma pessoa, mas não vou nunca divulgar o nome. disseram-lhe que lhe queriam passar uma bomba para liquidar o eduardo barroso.

sabe quais eram as motivações?

sei, mas não vale a pena pensar nisso.

era uma questão pessoal?

foi uma pessoa que preparou aquilo para me tentar liquidar, para tentar afectar a minha reputação. e eu não estive mais para aturar aquilo. para fazer o número de transplantes que fazemos, se recebêssemos por horas extraordinárias e não por incentivos – tendo em conta que tinha de ter de prevenção, todos os dias, oito ou nove enfermeiros, oito ou nove cirurgiões, dois hepatologistas e dois ou três anestesistas – seria uma fortuna. sairia muito mais caro ao estado. com os incentivos as pessoas só recebem se fizeram transplantes. aqui há uns meses, houve um mês em que só fizemos dois transplantes hepáticos e três renais. estivemos preparados para fazer 30, mas só ganhámos por aqueles que fizemos. parece caro, mas é a fórmula mais barata e mais justa. o dinheiro dos incentivos é entregue aos hospitais e depois há uma parte que é distribuída pelos profissionais que fazem parte da equipa de acordo com um esquema de distribuição.

quando estava na asst era sua intenção criar um tecto para os incentivos?

sim, pretendia que, a partir de um determinado volume já recebido, os incentivos revertessem para investimento no hospital.

mas isso não chegou a avançar, pois não?

não porque votei sozinho. eu, que era a única pessoa a quem o tecto podia afectar, fui o único a votar favoravelmente. todos os outros votaram contra e defenderam que esse tecto seria a antítese dos incentivos. e tinham alguma razão. se os incentivos são para fazer mais transplantes não faz sentido limitá-los.

não pode haver um momento em que fazer mais significa fazer pior?

pode acontecer se não tivermos capacidade de resposta. há uns largos anos, houve um verão em que só fiquei cá com outro cirurgião e num fim-de-semana fizemos cinco transplantes. reconheço que se calhar não deveríamos ter feito o último.

correu mal?

estávamos completamente exaustos. não correu como deveria ter corrido, mas estou à-vontade para falar porque fui eu o cirurgião. estava, de facto, demasiado cansado. o problema é que um órgão é um capital tão valioso que perder um dador é obsceno.

em traços gerais, qual é o panorama dos transplantes em portugal?

somos líderes mundiais nos transplantes de fígado e de rim por cada milhão de habitantes.

isso deve-se a quê? por que razão países como a alemanha ou os eua não conseguem resultados melhores?

porque nos organizámos muito bem e tivemos uma pessoa fantástica à frente da recolha de órgãos. quando entrei para a asst tínhamos à volta de 19 dadores por milhão de habitantes e a maria joão aguiar conseguiu fazer subir esse número para 30.

isso conseguiu-se trabalhando junto dos hospitais?

sim. sensibilizando para o não desperdício de órgãos e fazendo cursos de formação.

somos líderes a nível mundial na quantidade de transplantes do fígado e do rim por milhão de habitantes. e em qualidade?

temos resultados perfeitamente sobreponíveis aos melhores em termos de sobrevida. se quiser saber os nossos resultados eles estão publicados. basta ir ao registo europeu e comparar com os outros centros.

o que define um bom cirurgião?

há um mínimo de qualidades manuais que são importantes. já vi pessoas muito bem preparadas, com grande capacidade teórica, que depois não conseguem traduzir essa capacidade numa destreza manual mínima. de qualquer forma, com trabalho, a destreza adquire-se. quando fui para cambridge, aos 35 anos, não fazia nós com a mão esquerda. para aprender andei com uns fios no volante do carro e ia treinando nos semáforos. tudo se treina. aquilo que define um grande cirurgião é a cabeça. o cirurgião é a pessoa que pensa, que sabe o que deve fazer e quando se deve fazer. conheço alguns cirurgiões que são de uma capacidade técnica brutal, mas eu não deixaria que eles me operassem. muitas vezes o mais difícil é decidir o que se deve fazer e quando se deve fazer. um cirurgião é 90% cérebro e 10% trabalho manual.

a parte humana é muito importante?

claro que é. a parte humana é decisiva na prática da medicina. é preciso sempre pôr o doente em primeiro lugar.

é possível um médico ser bom sem criar empatia com os doentes?

não. mas há empatias e empatias.

uma palavra pode ser mais forte do que um analgésico?

às vezes um beijo na testa de uma doente pode fazer mais do que um soro ou um antibiótico. eu defendo isso. é preciso termos ternura pelos doentes. claro que às vezes é difícil porque é difícil ter empatia com toda a gente. mas a vertente humana na relação com os doentes é muito importante.

jose.fialho@sol.pt