‘O Independente foi estrangulado pelo Governo’

Dia 1 de Setembro, quinta-feira, faz cinco anos que a última edição de O Independente foi para as bancas. Saudades?

imensas. o independente foi o primeiro jornal, em portugal, que, no fundo, criou um movimento cultural. as pessoas recordam-se mais do jornal pela política, mas não é justo. o miguel esteves cardoso e o caderno 3 – que se chamava vida – criaram um movimento cultural. isso é muito raro acontecer a partir de um jornal. o independente conseguiu transformar uma geração e digo isto sem nenhum exagero.

lembra-se do seu primeiro trabalho?

na primeira ou na segunda semana de estágio escrevi uma artigo de duas páginas, que era uma comparação entre os dois candidatos à distrital de lisboa do psd – o pedro santana lopes e o pedro roseta. o editor não esteve de modas e pôs como título ‘dois pedros para uma inês’. o independente era mesmo assim. fiquei para morrer a pensar que tinha sido escolhida para escrever aquilo só porque me chamava inês.

havia uma espécie de cultura dos títulos n’o independente…

completamente. às vezes saíam coisas geniais, outras vezes nem por isso.

há um título que recorde em especial?

lembro-me de um, numa notícia que fiz sobre murteira nabo. ficou ‘nabo ao léu’. muitas vezes, os títulos surgiam porque as pessoas desatavam a dizer coisas para o ar. saíam 20 disparates e às tantas lá saía uma coisa genial.

era um jornal de direita, mas sempre teve redacções de esquerda…

sim, até com comunistas. era muito mais defensável e inatacável um jornal de direita se fosse feito por gente de esquerda. e a verdade é que até o pcp tinha algum carinho pel’o independente. a entrevista que o paulo portas e o miguel esteves cardoso fizeram a álvaro cunhal ficou nos anais. logo depois dessa entrevista, encontrei-o num congresso e ele, muito simpático, veio falar comigo. eu disse-lhe que tinha gostado muito da entrevista e que ele tinha dado a volta à direita. a resposta dele foi: ‘os rapazes portaram-se bem comigo. eles mereciam’. o paulo e o miguel tinham uma adoração e uma reverência enormes pelo doutor cunhal.

ao longo dos anos, contaram-se muitas histórias sobre excessos na redacção. mitos ou verdades?

até era uma redacção um bocadinho betinha. não, não havia aquela coisa de escrever com os copos ou com drogas. sempre foi muito mais a fama do que o proveito. o paulo, por exemplo, era completamente workaholic e tinha uma notável humildade. se, por acaso, num dia de fecho, não estava na redacção antes do meio-dia, quando chegava ia pedir desculpa às pessoas. ‘desculpa, não pude ajudar-te. adormeci’. e tinha adormecido porque tinha saído de lá às cinco ou às seis da manhã. a grande marca distintiva da redacção era que todos adorávamos o que fazíamos. ninguém estava lá por frete. toda a gente trabalhava com alma e divertia-se ao mesmo tempo.

dos trabalhos que fez, há algum que a tenha marcado mais do que todos os outros?

timor. profundamente. até porque tive a sorte de assistir ao julgamento de xanana gusmão, em 1992. e fui quando estava de licença de parto. se não gostássemos muito do que fazíamos n’o independente seria impensável abandonar uma bebé recém-nascida para ir trabalhar para a outra ponta do mundo. passei por episódios absolutamente caricatos, como quando dispararam sobre mim. estava a dizer ‘please don’t shoot’ quando, de repente, o fulano das milícias disparou mesmo e eu pensei que tinha morrido. vi a vida toda a passar-me à frente, tal e qual como nos filmes. depois, abri os olhos e o homem estava a olhar para o chão, para onde tinha caído a munição – era uma daquelas pistolas artesanais. estava com um grupo de jornalistas e acabámos por ser salvos pelo exército indonésio.

a ideia dele era disparar para matar?

era. depois entrevistei um padre, em baucau, que me contou que lhe tinha acontecido a mesma coisa. a única diferença foi que o meu tiro foi um bocadinho mais afastado do que o dele. eu estava dentro de um carro e o senhor das milícias estava no passeio. o dele foi a menos de meio metro.

ainda no plano internacional, tem uma história engraçada com uma entrevista a fradique de menezes, presidente de são tomé e príncipe…

muito engraçada. a meio da entrevista zanguei-me, desliguei o gravador e disse: ‘se o senhor continuar a falar desta maneira, vou-me embora e não lhe faço entrevista nenhuma’.

e ele?

chamou-me malcriada. ‘malcriada? malcriado é o senhor’. depois disto saiu-se com: ‘você parece a minha advogada’. ‘a sua advogada? porquê? ela é malcriada como diz que eu fui?’. ‘é’. ‘então deve ser a maria joão’. ‘como é que sabe?’. ‘porque ela foi minha colega de escritório’. era a maria joão bessa de carvalho. a partir daí, a conversa correu bem e fiquei amiga dele.

mas ele estava a responder como, para a entrevista ter descambado?

dizia ‘ó minha senhora’ no início de cada resposta. ‘e se eu lhe disser ó meu senhor? eu não sou a sua senhora’.

como directora do jornal teve momentos muito difíceis na fase final…

foi a pior fase da minha vida. e, passe o mau gosto da declaração, o que eu fiz foi eutanásia. fui eu que fui pedir a declaração de insolvência. mas consegui, pelo menos, que as pessoas recebessem os ordenados até ao fim.

perdeu muitas oportunidades de negócio por notícias que foi publicando?

muitas. e sofri muitas represálias. toda a gente sabe, embora não o diga, que o independente foi estrangulado comercialmente pelo governo. não tenho o menor problema em afirmá-lo.

pelo governo de sócrates?

sim. pessoa por quem eu, aliás, continuo a ter alguma consideração. zangou-se comigo várias vezes, uma delas por causa do freeport, mas depois percebeu, acho eu, que eu estava a fazer o meu trabalho. ele também estava a fazer o dele, o problema é que achou que o dele podia incluir fechar o independente e fechou. conseguiu. mas não quero dizer isto como se fossem queixinhas, como se a culpa fosse deles. não foi. o jornal já estava a definhar e isso foi apenas a estocada final.

jose.fialho@sol.pt